segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Chatices - Eduardo Almeida Reis

Tiro e queda Depois de muitos anos frequentando reuniões e festas, você tem condições de fazer uma lista de chatos inesquecíveis

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 27/10/2014
Chatices

É meio difícil que uma pessoa tenha consciência de sua própria chatura, mas há indícios que podem funcionar como chatômetro, instrumento para medir o valor do chato. Depois de alguns muitos anos frequentando reuniões e festas, você tem condições de fazer uma lista de chatos inesquecíveis. Guilherme de Figueiredo escreveu o Tratado geral dos chatos, livro que não esgotou o inesgotável assunto. 

Com o advento das aulas a distância, o brasileiro ressuscitou o adjetivo presencial, no português desde o século 14. Ainda há pouco, antes de ligar o computador, vi na tevê um jovem empresário dizendo que havia marcado um encontro presencial. Pois é: o encontro, ato de encontrar(-se), de chegar um diante do outro ou uns diante de outros, agora pode ser presencial ou a distância. O mesmo se aplica ao chato, que pode ser presencial ou informático.

Foi-se o tempo em que havia um Raymundo da Motta de Azevedo Corrêa poetando sobre a dor que mora n’alma de gente cuja ventura única consiste em parecer aos outros venturosa. Vivemos dias cuja ventura única de milhões de pessoas consiste no entupimento das caixas postais dos outros com e-mails absolutamente idiotas. São os chatos informáticos, que não excluem a renovação do time de chatos festeiros. Você vai jantar na casa de um grande advogado e topa com um chato que mastiga de boca aberta e fala sem parar. Asneiras, o que é mais nojento.
Quem me vê assim a falar dos chatos pode pensar que sou um amor de philosopho, mas tenho motivos para acreditar que sou chatíssimo. Minhas três filhas fogem do pai feito o diabo da cruz. Passam dias sem me telefonar. Uma ligação leva dois minutos e custa uma tuta e meia. Fazer o quê?

Redações

O melhor e mais caro colégio aqui da aldeia anda empenhado em fazer que os seus alunos de 12 anos escrevam textos complicadíssimos e frequentem cursos de redação, sobre os quais devo confessar que sou meio reticente. Pode-se ensinar a escrever? Antoine Albalat disse: “Pode-se ensinar a escrever a quem não sabe, desde que tenha o necessário para saber”, isto é, aptidão natural que a vocação denuncia. E Carmelo Bonet completa: “...ensina-se ‘a arte de escrever’ e cada um chega até onde pode, pois há graduações no que concerne ao domínio da expressão: desde a frase simplesmente correta da pessoa culta, até o impacto verbal do estilista”. Resumindo: a pessoa culta pode escrever bem, enquanto o estilista tem aquele algo mais que não se aprende na escola.

Muita gente compõe textos de 300, 500, 900 palavras sem erros de português, articulados, inteligíveis, respeitando a norma culta. Todo santo dia temos na mídia textos assim, geralmente insuportáveis. Isto porque o escriba faz tudo direitinho, mas lhe falta um negócio chamado talento. Pode até ser lido e citado por diversas pessoas, que não têm condições de distinguir o certo do excelente. Aí é que está: o escriba pode ser corretíssimo sem genialidade, como pode ser talentosíssimo sem a correção exigida pela norma culta.

Hippolyte Taine (1828-1893), em sua Filosofia da arte, avisa aos discípulos: “Em matéria de preceitos, não existem mais que dois; o primeiro é que se deve nascer com gênio, e isto é assunto dos vossos pais, não meu; o segundo aconselha a trabalhar muito ‘a fim de dominar a arte’: é assunto vosso e tampouco é meu”.

Ainda que de longe, tenho acompanhado os tais cursos de redação. Acho que pecam ao esquecer que a leitura de bons autores, ainda que pelas ortografias diferentes da recomendada pelo Acordo assinado pelo honoris causa da Silva, é fundamental na ensinança da escrita. O Enem não pede redações ecianas, machadianas, euclidianas, mas alunos que escrevam com alguma correção textos inteligíveis.

O mundo é uma bola

 27 de outubro de 312: Batalha da Ponte Mílvio, onde Constantino diz ter visto a frase In hoc signo vinces (Sob este signo vencerás) junto com as letras gregas XP (Chi-Rho, as duas primeiras letras de Cristo) entrelaçadas com uma cruz enfeitando o Sol. Foi através dessa visão que Constantino se converteu ao cristianismo. Em 1443, o promontório e as vilas de Sagres são doados por dom Pedro ao seu irmão, o infante dom Henrique. Humanista, diplomata, príncipe da Dinastia de Avis, Dom Pedro (1392-1449), duque de Coimbra e regente do Reino de Portugal, no quadro que nos chegou parece uma senhora gorda. Em 1429, casou-se com Isabel de Aragão numa união de amor, dizem os historiadores.

Em outubro de 1904: inauguração do metrô de Nova York; o de BH vem aí. Em 1912, inauguração do bondinho do Pão de Açúcar. Jovem repórter, fiz matéria  fantasiado de turista alemão, em companhia de amigas alemãs. Encontrei um brasileiro que falava alemão e passei apertado. Em 1951, primeira utilização de radioterapia com bomba de cobalto. Em 1982, as águas chegam às comportas do vertedouro de Itaipu. Em 1991, independência do Turcomenistão, onde se fala turcomeno.

Ruminanças
Os velhos sabem o que querem, mas não podem; os moços querem e podem, mas não sabem” (Marquês de Maricá, 1773-1848).

O PT chega ao quarto governo - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico - 27/10/2014


Reeleita, Dilma terá de reverter o estilo, delegando e dialogando mais. Precisará fazer política. Quererá? Conseguirá?


Foi duro, exigiu nervos de aço, mas o PT ganhou sua quarta eleição presidencial. Mas fica o risco de ter sido uma vitória de Pirro, para lembrar o rei do Épiro que vencia os romanos, porém a tal custo que alguém lhe disse: "Mais três vitórias como esta, e estamos perdidos"... Examinemos o que pode acontecer de agora em diante. Não será fácil para a vitoriosa.

Sua primeira dificuldade é com a mídia e a opinião pública. Uma comentarista de televisão teria dito há um tempo que a população (ou o povo) vai de um lado, e a opinião pública de outro. A "opinião pública" é contrária ao PT, mas o povo deu vitória a este partido em seguidas eleições. A mídia, o empresariado, a classe média sobretudo paulista, mas não só, destoam do que a maioria de pobres quer. A sociedade está dividida, com os mais vocais na oposição, os silenciosos (ou silenciados, como dizia Fernando Morais) a favor do governo. Não tivemos conflito dessa magnitude desde 1989, quando Collor venceu Lula com golpes baixos, mas na ocasião a mídia não fechou tanto assim com o vencedor. Pode Dilma vencer o ódio? A forma usual - que é chamar alguém da oposição para integrar o ministério - soa improvável.

Somem-se as dificuldades da presidenta com a política. Ela foi escolhida por Lula, dentre outros nomes possíveis, porque mostrou qualidades como gestora, além de ser a pessoa mais simpática no primeiro escalão à produção e aos empresários. Hoje é criticada pela gestão, a produção cresce pouco e o patronato não gosta dela. Um de seus problemas seria que não dialoga, manda.


Que medidas econômicas Dilma tomará?

Isso afeta as relações com os empresários, mas também com os políticos e com o próprio povo. São três dimensões autônomas nas quais é preciso fazer política, isto é, não dar ordens, mas escutar e dialogar. A dimensão dos empresários não é bem democrática, porque o peso econômico deles depende do capital - mas negociar com eles é uma imposição da realidade. Depois, temos os políticos eleitos que, por mais que se desconfie deles, representam o povo e nesta condição tomam parte nas decisões.

Já a conversa com o povo, que deixei em terceiro lugar, é a mais importante no plano democrático, mas foi desconsiderada pelo PT fora do período eleitoral. Aqui está o eixo das dificuldades de comunicação de Dilma. O problema não é gaguejar, não está na construção das frases. Está na capacidade de conquistar o povo. FHC ganhou a classe média, Lula arrasava no povão. Dilma ficou atrás de ambos. Para um governo popular, a comunicação não é mera técnica, é da essência das coisas. Mas o PT desistiu dela. Não tanto por falta de uma hipotética "lei de meios de comunicação", mas porque renunciou a disputar a hegemonia das consciências. Preferiu ganhar votos pelo aumento (necessário, justo) do consumo, em vez de dar nova vida ao ponto que fez sua glória na oposição: o do caráter ético da luta contra a miséria.

Dilma precisaria do beneplácito pelo menos do patronato e do Congresso, e de um apoio decidido - e organizado, senão orgânico - do eleitorado. Com nenhum deles, porém, priorizou o diálogo durante o primeiro mandato. Quererá mudar? Conseguirá?

Há também o ministério. Ao contrário da equipe de Lula, que brilhava, temos um grupo discreto, em que até as estrelas do governo precedente - como Celso Amorim - empalideceram. A presidente se disporá a delegar mais, a confiar mais? Parará de corrigir os auxiliares em público? Esta não é só uma questão de método. É essencial para que o governo funcione. Se os ministros não tiverem senso de iniciativa, pouco farão e isso repercutirá em todo o sistema.

Vamos ao espectro político.

Por um lado, temos uma oposição que, mesmo perdendo, sai das urnas reforçada. Nem que seja sobretudo pelo ódio. Cada lado armazena um estoque enorme de insultos ao outro. Parei de ver programas políticos porque me sentia diante de uma briga infantil. Os dois lados reclamavam do clima de ódio, mas cada um acusava o outro de ter começado. Parecia coisa de criança:

"Ele puxou o meu cabelo!"

"Mas ela deu primeiro um chute na canela!"

Foi um espetáculo triste - e infelizmente pode continuar.

Então, suponhamos que Dilma faça um gesto de grandeza na direção do outro lado. Será aceito? Em que consistirá? Hoje, a simples boa educação não basta. Não dá mais para desejar feliz aniversário a FHC ou levar todos os ex-presidentes no avião oficial para o enterro de Mandela. Será preciso efetuar concessões. Mas quais? O melhor seria comprar o que puder da agenda econômica da oposição. Não o aumento de juros, a redução de gastos públicos, com arrocho salarial e social - mas pelo menos uma desburocratização intensa, regras claras e estáveis para o investimento privado, fim de qualquer criatividade contábil. Mais que isso é difícil, porque seria renunciar aos fundamentos mesmos da divergência com o PSDB.

E há outro problema. Nossos governos de centro-esquerda se elegem com votos decisivos da esquerda, mas depois governam com os deputados necessários da direita. Em São Paulo, duas vezes o PT apoiou Mario Covas no segundo turno, para depois ele governar com o então PFL, que nas eleições apoiara a direita. Em sua campanha, Dilma contou com o apoio decidido de quem defende a liberdade gay - mas no primeiro mandato ela vetou o kit anti-homofobia. Para que lado irá? Uma possibilidade seria uma agenda avançada na questão dos costumes, abrindo-se para a esquerda, e um gesto de conciliação para a direita empresarial, que está mais interessada na economia do que em questões comportamentais. Mas isso exigirá mais habilidade e gosto políticos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
E-mail: rjanine@usp.br