Gente que faz
Pontos de cultura, iniciativa criada
durante a gestão de Gilberto Gil no MinC, já são mais de 170 em Minas.
Trabalho mostra bons resultados, mas burocracia ainda é problema
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 02/02/2014
|
|
A estudante Fernanda Carvalho começou a frequentar o ponto de cultura como participante de oficinas e hoje é atriz e monitora |
Na
entrada do projeto Casa do Beco, no Morro do Papagaio/Aglomerado Santa
Lúcia, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, está afixada uma placa que é
uma espécie de prêmio: “Ponto de cultura – Um espaço cultural a serviço
da comunidade”. A associação promove desde 2003 o desenvolvimento
humano e a transformação social, utilizando como ferramentas atividades
artísticas, especialmente o teatro. Há três anos, foi uma das
selecionadas para fazer parte desse projeto do Programa Cultura Viva do
Ministério da Cultura (MinC).
“A partir do momento que você vira
ponto de cultura, é uma prova de que tem um trabalho diferenciado. Não
deixa de ser um título, uma chancela. Querendo ou não, abre portas,
porque você passa a ter mais credibilidade. Antes de ponto de cultura, a
Casa do Beco era um grupo de teatro. Depois, os benefícios que ele
trouxe nos permitiram ser um espaço de verdade para que a comunidade
usufruísse”, salienta o criador e coordenador da instituição, Nil César.
O
ponto de cultura é a ação prioritária do Programa Cultura Viva, que
surgiu em 2004, na gestão do então ministro Gilberto Gil. Na época, ele
apelidou a iniciativa de “do-in antropológico, que massageia pontos
vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo
cultural do país”. O projeto é referência de uma rede horizontal de
articulação, recepção e disseminação de iniciativas culturais. Como um
parceiro na relação entre Estado e sociedade, o ponto agrega agentes
culturais que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas
comunidades.
Não modelo único, seja de instalações físicas,
programação ou atividades. Um aspecto comum a todos os espaços é a
ampliação do conceito de cultura, abrangendo várias áreas, e a gestão
compartilhada entre poder público e a sociedade civil. O ponto de
cultura agrega todas as formas de expressão, como música, poesia,
literatura, artes plásticas, visuais e dança. São cerca de 3,6 mil em
todo o país, desde aldeias indígenas e quilombos até sedes de grupos de
experimentação em linguagens artísticas contemporâneas.
Nas
gestões de Gilberto Gil e de seu sucessor Juca Ferreira, os pontos
funcionaram a todo o vapor. A iniciativa deu uma esfriada na época em
que Ana de Hollanda e Martha Suplicy assumiram a pasta, de acordo com
participantes dos pontos de cultura. Com isso, houve algumas
modificações no projeto, entre elas a descentralização da gestão, que
passou a ser compartilhada entre o governo federal, estados e
municípios.
Todos os pontos são escolhidos a partir de editais e o
último deles foi publicado em 2009. Na época, só em Minas Gerais, foram
selecionados 100. Há a expectativa de que nova convocação pública seja
feita em abril, como lembra Cesária Macedo, representante do MinC em
Minas. “De forma alguma esse programa está parado. Ele ficou dois anos
sendo avaliado, redesenhado, e há a possibilidade de ele ser até
ampliado. O novo edital vai abrir oportunidades para quem quiser renovar
ou mesmo se tornar um novo ponto de cultura”, assegura.
Palco da vida
|
|
Nil César, coordenador da Casa do Beco |
A Casa do Beco, de Nil César, colhe os frutos de ter se tornado um
ponto de cultura. Com os recursos, ele conseguiu comprar equipamento de
som, luz, mobiliário e, principalmente, ampliar a programação das
oficinas e investir em projetos internos e na produção de espetáculos.
Sem falar na criação de uma rede de comunicação entre pontos do Brasil
inteiro. “Essa troca de informações e experiências é fantástica. Você
está com um problema ou quer tirar uma dúvida, manda para o nosso
mailing e na mesma hora alguém te retorna. Facilita muito quando fazemos
turnês com o grupo, já que você chega a uma cidade e um ponto de
cultura de lá ajuda com equipamento, estrutura. Isso até otimiza
recursos. Contato é tudo”, defende Nil.
Uma das beneficiárias da
iniciativa é a estudante e atriz Fernanda Carvalho, de 19 anos. Moradora
do Conjunto Santa Maria, próximo ao Hospital Luxemburgo, na Região
Centro-Sul, ela se tornou uma multiplicadora do processo iniciado por
Nil César. Fernanda sempre se interessou por teatro e, quando se deparou
com uma das oficinas oferecidas pelo projeto em sua escola, descobriu
ali sua verdadeira vocação.
Ela se destacou tanto que passou a
participar de outras oficinas da Casa do Beco, encenou peças e hoje o
papel se inverteu: foi convidada para ser uma das monitoras da
iniciativa. “Tento conciliar minha vida de estudante de ciências
contábeis com as aulas e o teatro. Mas a arte é a grande paixão, apesar
de eu saber da instabilidade do setor. Fiquei muito surpresa quando fui
inserida no projeto e isso é o bacana. Eles investem bastante em quem
tem potencial”, afirma.
A atriz revela que o ingresso na turma
dos 100 atuais pontos de cultura de Minas Gerais fez com que a Casa do
Beco se consolidasse de verdade. É visível, garante Fernanda, a evolução
no número de oficinas e espetáculos. “Quando iniciei, era mais difícil.
Depois que virou ponto, as coisas começaram a mudar. Tudo o que vivi e
vivo aqui foi fundamental para me direcionar na conquista do meu grande
sonho. Fiz cursos, ganhei bolsa da Casa do Beco e não poderia estar mais
feliz”, comemora.
PONTO E PONTO3.663
pontos de cultura no Brasil
178
pontos conveniados em Minas
96
municípios mineiros envolvidos
22
pontos em Belo Horizonte
2009
ano de publicação do último edital
Informações:
www2.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura/Fonte: Ministério da Cultura
Cidadania é uma arte
Projetos que se integraram aos pontos de
cultura vão da estética experimental ao apoio a pessoas com limitações.
Participantes relatam experiências que mudaram suas vidas
Ana Clara Brant
|
|
O cineasta Helder Quiroga e o músico Vítor
Santana, da ONG Contato, durante oficina de cerâmica. Entidade foi
pioneira em Belo Horizonte |
A geração
inaugural dos pontos de cultura conseguiu algo inovador, que foi receber
diretamente, sem intermediários, recursos do governo federal. A ONG
Contato, que funciona no Bairro da Serra, em BH, foi uma das primeiras a
serem contempladas. Os coordenadores da entidade, o músico Vítor
Santana e o cineasta e produtor Helder Quiroga, enumeram as vantagens
deste ingresso, como “entrar no mailing do Ministério da Cultura” e, a
partir daí, passar a receber informações relevantes, como editais,
encontros, reuniões. Por meio do dinheiro repassado, é possível também
concretizar projetos e melhorar a infraestrutura da organização.
“A
gente se aproximou de outras entidades, do próprio ministério, e
conseguimos trazer gente de fora e do Brasil inteiro para Belo
Horizonte. Promovemos uma série de oficinas de audiovisual, música e
cerâmica. A gente chegou a ganhar o Prêmio Cultura Viva como um dos
pontos de cultura de maior destaque. E mesmo que institucionalmente não
sejamos mais um ponto, ficamos como referência nesse sentido. Ainda
participamos de encontros, coordenamos eventos e, apesar de não receber
mais recursos, nos consideramos um eterno ponto de cultura. Esse título
está muito intricado na nossa identidade”, comenta Vítor.
Na
opinião de Helder, o grande mérito do Cultura Viva, e um dos seus eixos
principais, os pontos de cultura, foi ter reconhecido iniciativas que já
existiam no setor cultural. Ele salienta que o modelo foi tão vitorioso
que acabou sendo adotado por outros países. “Construir tijolos é
importante, no entanto, mais importante ainda é apoiar o que já está
construído, pronto, e incentivar o trabalho de quem já desenvolvia uma
produção artística. Além de ter criado um rede no Brasil inteiro,
articulando movimentos sociais. Ao longo dos anos, o ponto de cultura se
tornou uma das maiores chancelas dessa política cultural do governo e
reinventou a maneira de se fazer cultura no Brasil. Tanto é que o modelo
foi exportado para Argentina, Peru e outros países”, diz.
Para ampliar horizontes
|
|
Na Associação Crepúsculo são oferecidas atividades de música, teatro e dança, além de acompanhamento clínico e pedagógico |
Outra
instituição que ganhou bastante ao se transformar em ponto de cultura
foi a Associação Crepúsculo, cujo projeto Diversidade em Ponto
proporcionou a continuidade e a ampliação das atividades artísticas e
culturais desenvolvidas, como oficinas inclusivas de artes plásticas,
contação de histórias, musicalização, dança e teatro. Diretora artística
da entidade, a bailarina e terapeuta ocupacional Luciane Kattaoui conta
que o projeto foi criado com o intuito de atender a todo tipo de
deficiência ou limitação, seja física, cognitiva ou mental. Ela percebeu
que os diversos tipos de linguagem poderiam auxiliar seu público. “Às
vezes a pessoa chega aqui para fazer um curso de teatro ou dança, mas
precisa de fonoaudiologia, alfabetização, acompanhamento mais clínico e
pedagógico. E isso tudo é ofertado aqui”, diz.
Desde que se
transformaram em ponto de cultura, mais pessoas passaram a ser atendidas
nos vários programas, já que os recursos bancam os professores e o
material utilizado nas oficinas do período vespertino. “Ser ponto de
cultura nos proporcionou oferecer cinco oficinas gratuitas, com 20 vagas
cada. Os recursos ajudaram a nos equipar, porque conseguimos adquirir
livros, máquinas fotográficas, colchonetes e instrumentos musicais. Para
uma instituição como a nossa, é difícil bancar tudo isso. Nesse período
de três anos que somos auxiliados pelo programa, a gente vem
conseguindo se manter, para depois poder andar com as próprias pernas”,
ressalta.
Luciane garante que nunca teve problemas com atraso no
repasse da verba e que, frequentemente, fiscais do programa fazem
monitoramento e diagnóstico para conferir se tudo está seguindo bem.
“Valorizo demais essa ação. Não tenho do que me queixar”, reitera.
Lucas
Henrique de Oliveira, de 26 anos, é outra pessoa depois que ingressou
nas oficinas do Crepúsculo. Sua evolução e alegria são evidentes, como
destaca a mãe, Jacqueline de Oliveira. O rapaz tem dificuldades de
cognição e de aprendizado, mas os médicos nunca conseguiram dar um
diagnóstico real. Lucas se adaptou tão bem às atividades que hoje
participa dos cursos de culinária, artes, dança e descobriu um novo
talento, a massoterapia.
“Quando ele entrou na associação, eu
não tinha condições de pagar o período todo, e, como as oficinas da
tarde são de graça, ele fica lá das 13h até as 17h e adora. Você não
imagina como ele evoluiu e está satisfeito. O Crepúsculo ajudou muito
meu filho e o mais interessante é que ele saiu da situação de ajudado
para a de ajudante. Ele auxilia os cadeirantes, aprendeu a linguagem dos
sinais e se comunica com os surdos e mudos. Hoje, Lucas pode fazer pelo
outro o que fizeram com ele e pode até ser que, com o passar do tempo,
ele se torne um dos monitores também”, celebra Jacqueline.
Burocracia é a principal queixa
Os pontos de cultura
também têm seus entraves. E a grande reclamação das instituições é a
burocracia excessiva. A diretora da Superintendência de Interiorização e
Ação Cultural da Secretaria de Estado de Cultura de Minas, responsável
pela gestão dos pontos de cultura de Minas, Manuella Machado, explica
que a primeira leva dos pontos, em 2004, era conveniada diretamente com o
Ministério da Cultura. Porém, muitos não conseguiram lidar com toda a
documentação e burocracia, principalmente, na hora de prestar contas. “A
coisa é muito abrangente, porque os pontos reúnem quilombolas,
indígenas, ONGs e gente que não sabe mexer com toda essa documentação,
fazer cotação de preços. Muitos acabaram ficando inadimplentes. Não por
má-fé, mas por desconhecimento mesmo”, esclarece.
A Lei 8.666
(das licitações) regula todo o processo. E como brinca Nil César, da
Casa do Beco, não é à toa que ela leva o número da besta, 666, porque é
um verdadeiro inferno. “Ser ponto de cultura também dá dor de cabeça. E a
lei vale tanto para uma tribo de índios, que nem nota fiscal consegue
para adquirir material, como para uma ONG que tem um CNPJ. O processo
burocrático acaba engessando o processo ideológico”, reclama.
Minas
acabou se tornando referência e exemplo no assunto, porque aqui, como
salienta Manuella Machado, o governo estadual contratou uma empresa
especializada para prestar assessoria aos pontos em questões fiscais e
burocráticas. “Foram oferecidos cursos, advogados, oficinas de gestão
cultural e empreendedorismo, porque muitas entidades não sabiam nem o
que comprar. Por isso, nosso resultado foi muito bom e praticamente não
tivemos inadimplência”, constata.
Todos os pontos de cultura
recebem R$ 180 mil, num período de três anos, sendo esse valor dividido
em três parcelas. No caso dos pontos de cultura de Minas, parte da verba
é do governo federal e outra do governo do estado. A maioria dos
representantes de associações defendem a tese do dinheiro vir em forma
de prêmio, e não de convênio, que seria uma maneira de desburocratizar o
processo.
A representante do MinC no estado, Cesária Macedo,
diz que o governo federal sempre esteve aberto ao diálogo, que sabe da
demanda dos pontos e acredita que ela deve ser levada em consideração.
“O programa é muito debatido e está sendo discutida uma maneira de
facilitar o repasse dos recursos para potencializar suas ações. A
intenção é desburocratizar”, assegura.