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Correspondência do presidente norte-americano Abraham Lincoln está reunida no Arquivo Nacional, em Washington |
Nestes
tempos em que a comunicação a distância praticamente só se dá por meio
das redes sociais, foram-se embora as cartas, tão presentes na história
da humanidade. No Brasil, tornou-se célebre a correspondência de Mário
de Andrade com Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião e Henriqueta
Lisboa, entre outros escritores. Muito oportunamente, a Geração
Editorial acaba de lançar Cartas da humanidade – Civilização escrita à
mão. Por meio de 141 textos editados em ordem cronológica, o leitor
viaja em cinco mil anos de história.
O organizador do
livro é o escritor e compositor mineiro Márcio Borges, autor de Os
sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina. Para realizar o
trabalho, ele se baseou em documentação extraída de jornais, revistas,
livros e da própria internet. Cartas à humanidade... é um documento
precioso, que vale a pena ser conhecido. Abrange um grande período da
saga humana, desde muito antes do nascimento de Cristo.
Podem
ser lidas cartas trocadas por reis, políticos, artistas, intelectuais,
religiosos e sábios. Estas páginas contêm de tudo um pouco: história,
religião, dramas, guerras, política, filosofia, amor e ódio. O livro
começa com um documento sobre o bem e o mal a partir da visão de
Zaratustra, criador do zoroatrismo.
“As influências
espirituais de Zaratustra sempre afetaram o pensamento e o raciocínio
humanos – sua meta, mostrar aos homens nossa conexão com uma criação e
nossa ligação com a fonte única”, explica Márcio Borges. Na primeira
estrofe compilada, pode-se ler: “Agora falarei com aqueles que me
ouvirem/ De coisas que o iniciado deveria se lembrar/ Elogios e oração
da Boa Mente ao Senhor/ E a alegria que verá na luz quem se lembrou dele
– o Bem”.
Dos provérbios de Ki-en-gir (Suméria, 2600 a.C.), o
autor extrai pérolas: “Quem adquiriu muitas coisas deve vigiá-las de
perto”. “A raposa, tendo urinado no mar, disse: o mar inteiro é minha
urina”. “Riqueza é difícil de alcançar, mas pobreza está sempre à mão”.
“Quem come muito não consegue dormir”.
Um detalhe curioso
torna o livro mais atraente. Não é preciso lê-lo em sequência, da
primeira à última página. Abra-o na página 383, por exemplo. Lá está a
famosa carta- testamento deixada pelo presidente Getúlio Vargas,
divulgada depois de seu suicídio, em 1954. “Mais uma vez, as forças e os
interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam
sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me
dão o direito de defesa”, desabafa o líder gaúcho.
Outra
correspondência histórica: a carta de Pero Vaz de Caminha enviada a dom
Manuel, rei de Portugal, logo depois da chegada da frota de Pedro
Álvares Cabral ao litoral baiano. “Senhor, posto que o capitão-mor desta
vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a
notícia do achamento desta vossa terra nova, que se agora nesta
navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa
Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para bem contra e falar –
o saiba pior que todos fazer...!”, relatou o escrivão da armada.
Outro
marco da história brasileira, a declaração de renúncia de Jânio Quadros
à Presidência da República, em 1961, está no livro. “Desejei um Brasil
para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a
covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições
de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém,
esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou
infamam, até com a desculpa de colaboração”, desabafa o 22º presidente
do país.
A crise deflagrada por Jânio culminou na ditadura
militar, que castigou o mineiro Juscelino Kubitschek, outro
ex-presidente do país. Em correspondência enviada à amiga e conterrânea
Vera Brant, em 1973, JK não esconde a depressão causada pelo ostracismo.
“Brasília, nesses anos tempestuosos que o destino me impôs, deprimia-me
quando aí, por uma circunstância ou outra, tive de estar. Possivelmente
minha capacidade de assimilar vacilasse entre o esplendor do passado,
quando então a construímos, e estas intermináveis horas de borrasca.”
O
elenco de missivistas é multifacetado: vai de Maria Antonieta e Joana
d’Arc a Orson Welles, Fernando Pessoa, Alfred Nobel, Lênin, Che Guevara,
Michael Moore e Barack Obama. Coube ao atual presidente dos Estados
Unidos fechar as 466 páginas. Em 2008, ao deixar o Senado para comandar a
Casa Branca, assim ele se despediu do povo de Illinois, que o elegera:
“Hoje termino uma jornada para começar outra”.
A GUERRA
Uma
carta que se tornou famosa foi escrita em 1864 pelo presidente
norte-americano Abraão Lincoln à senhora Lydia Bixby, cujos cinco filhos
morreram durante a Guerra Civil americana. Anos depois, aquelas
palavras inspirariam o filme
O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg.
“Cara Senhora
A
mim foi mostrada nos arquivos do Departamento de Guerra uma declaração
do general adjunto de Massachusetts que a senhora é a mãe de cinco filhos que morreram gloriosamente no
campo de batalha.
Sinto
quão fraca e infrutífera deve ser qualquer palavra minha que tente
iludir a aflição de uma perda tão subjugante. Mas não posso me conter de
enternecer na senhora a consolação que pode ser encontrada no
agradecimento da República pela qual eles morreram para salvar.
Rezo
que nosso pai divino possa suavizar a angústia de sua perda e deixe
apenas a apreciada memória dos amados e perdidos, e o solene orgulho que
deve ser o seu por ter deitado tão custoso sacrifício no altar da
liberdade.
Seu, muito sincera e respeitosamente, sra. Bixby
A. Lincoln.”