Morre aos 85 anos a atriz e cantora que foi musa do Cinema Novo, aderiu à bossa nova, abandonou a carreira e dedicou as últimas décadas de sua vida à prática do budismo
Carolina Braga
Estado de Minas: 05/02/2015
A atriz Odete Lara, que faleceu ontem, aos 85 anos, vítima de infarto; corpo deve ser cremado hoje em Nova Friburgo (RJ) |
Foram 40 filmes, cinco novelas e uma vida digna de ser registrada em livro e pelo próprio cinema, arte pela qual nunca escondeu a predileção. Odete Lara faleceu na manhã de ontem em uma casa de repouso no Rio de Janeiro aos 85 anos de idade. As últimas duas décadas foram de recolhimento, oração e paz.
Odete Righi, que posteriormente adotou o sobrenome Lara, nasceu em 17 de abril de 1929, em São Paulo e era filha única de um casal de imigrantes italianos. Teve uma vida familiar marcada pela tragédia. A mãe suicidou-se quando a filha tinha seis anos.
Odete foi enviada a um orfanato e, depois, criada pela madrinha, já que seu pai, diagnosticado com tuberculose, não podia se aproximar dela. Ainda assim, eles eram muito apegados. Giuseppe Bertoluzzi também se suicidou, quando a filha tinha 18 anos.
Na época, Odete já trabalhava como datilógrafa. A carreira nas artes começou na moda. Depois de participar de um teste de manequim, foi escalada como modelo para o primeiro desfile do Brasil, realizado no Masp. Logo tornou-se garota-propaganda da TV Tupi e deu início à carreira de atriz.
No teatro, participou do Teatro de Vanguarda e foi integrante do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A estreia no cinema foi com Uma certa Lucrécia (1957), de Fernando de Barros, filme no qual contracenava com Dercy Gonçalves. Nunca escondeu a predileção pela sétima arte.
Foram 40 filmes, entre eles, trabalhos com expoentes do cinema brasileiro. Atuou para as câmeras de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Anselmo Duarte.
Se no início da carreira atuou ao lado do popular Mazzaropi em comédias como O gato de madame (1957), foi musa em Otto Lara Rezende ... ou Bonitinha, mas ordinária (1963), Boca de ouro (1963), Noite vazia (1964), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), Vai trabalhar, vagabundo (1973) e tantos outros. O último longa-metragem foi O princípio do prazer (1979), com direção de Luiz Carlos Lacerda, o Bigode.
CANTORA
Na década de 1960, ao lado de Vinicius de Moraes, ela estreou como cantora no show Skindô. Como a experiência deu certo, repetiu-a na gravação do show Eles e ela, no qual dividiu os vocais com Sérgio Mendes, Chico Buarque e Sidnei Miller. Deixou registrados dois discos que perpetuam a atuação vocal, Vinicius e Odete e Contrastes, este com composições de Vinícius e Tom Jobim.
Odete foi casada com o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho e com o diretor Antonio Carlos Fontoura, mas não teve filhos. Foi premiada no Festival de Gramado por sua contribuição ao desenvolvimento do cinema brasileiro e ganhou o prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 1975 pelo conjunto da obra. O último trabalho na televisão foi na novela Pátria minha (1994).
Ao abandonar a carreira de intérprete, dedicou-se ao budismo, à meditação e à literatura. Escreveu quatro autobiografias: Eu, nua (1975), Minha jornada interior, e Meus passos na busca da paz (1997) e Vazios e plenitudes (2009). O último é dividido em duas partes. A primeira, uma compilação de 42 textos reflexivos, e a segunda, relatos de viagens feitas para a Turquia, China e Tibete.
Além disso, traduziu diversas obras ligadas ao budismo, sobretudo volumes do monge vietnamita que se exilou na França Thich Nhat Hanh.
Em 2002, a atriz e diretora Ana Maria Magalhães adaptou Eu, nua para o cinema. A atriz Christine Fernandes foi escolhida para interpretá-la.
Christine se manifestou ontem no Twitter. “RIP #OdeteLara mulher intensa, sensível, artista complexa que tive o privilégio de conhecer e interpretar no cinema. Descanse em paz, Deusa”, escreveu.
Odete Lara sofreu um infarto por volta das 7h15, na clínica de repouso onde vivia. Numa queda anterior, ela havia fraturado o fêmur. Após velório no Parque Lage, o corpo da atriz deve ser levado hoje para Nova Friburgo, onde será cremado.
Carreira
NO CINEMA
» Absolutamente certo (1957), de Anselmo Duarte
» Moral em concordata (1959), de Fernando de Barros
Odete Lara em "Sábado a la noche", cine (1960), de Fernando Ayala |
» Sábado a la noche, cine (1960), de Fernando Ayala
» Otto Lara Rezende ou… bonitinha, mas ordinária (1963), de J.P. Carvalho
» Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khouri
» Copacabana me engana (1968), de Antonio Carlos da Fontoura
Odete Lara em "O dragão da maldade contra o santo guerreiro" (1969), de Glauber Rocha |
» O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha
» Os herdeiros (1970), de Cacá Diegues
» A estrela sobe (1974), de Bruno Barreto
» O princípio do prazer (1979), de Luiz Carlos Lacerda
NA LITERATURA
» Eu, nua (Rosa dos Tempos)
» Minha jornada interior (Editora Best Seller)
» Meus passos na busca da paz (Rosa dos Tempos)
Uma diva atemporal
Luiz Carlos Lacerda*
Apesar de ter trabalhado no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e no Opinião, e ter gravado discos lançando a bossa nova – seguidos de shows com Tom & Vinicius, Odete era uma atriz de cinema. E do cinema brasileiro.
Transitou pela Vera Cruz, ao lado de Maria Della Costa, no neorrealista Moral em concordata, de Fernando de Barros – transposição do espetáculo teatral onde também atuou. Musa do Cinema Novo de O boca de ouro, do mestre Nelson Pereira dos Santos; Copacabana me engana, de Antonio Carlos da Fontoura; O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha; Os herdeiros, de Carlos Diegues, até o filme introspectivo do antonioniano Walther Hugo Khoury, Noite Vazia – seu melhor papel, ao lado de outro mito, Norma Bengell.
Odete é o exemplo único de uma atriz que mergulhou nos movimentos políticos e culturais de seu tempo, desde o engajamento na luta contra a censura, na defesa do nosso cinema, às experiências sensoriais da contracultura.
Viveu intensamente essa época, até retirar-se, em seu refúgio espiritual de um sítio em Muri, nos arredores de Nova Friburgo. Lá, dedicou-se a traduzir livros budistas e escreveu em dois volumes sua biografia – em que a diretora Ana Maria Magalhães baseou-se para realizar o belo filme Lara.
Em 1978, fui buscá-la no seu exílio campestre voluntário – queria tê-la num filme meu, a musa, a amiga, a atriz mítica de tantos filmes. Não poderia deixar de tê-la na minha filmografia, nem deixar de viver a experiência de dirigi-la. Odete sorriu, me deu a mão e respondeu: “Está bem, vai ser meu último trabalho”.
Em Paraty, juntou-se à equipe técnica e ao elenco e divertimo-nos muito filmando O princípio do prazer.
As últimas vezes em que nos encontramos, na Mostra de Tiradentes, onde foi homenageada em 2001, e em seu aniversário, em casa da amiga Letícia Sabatella, já idosa, mas com o mesmo sorriso discreto e característico, cantou sambas que tocavam no violão. Feliz, deu-me a mão, como nos tempos das passeatas, das suas estreias e dos mergulhos na praia de Ipanema – onde reinou, soberana, como uma diva atemporal e realizada.
* Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, é cineasta. Dirigiu o último filme em que Odete Lara atuou, O princípio do prazer (1979)
Transitou pela Vera Cruz, ao lado de Maria Della Costa, no neorrealista Moral em concordata, de Fernando de Barros – transposição do espetáculo teatral onde também atuou. Musa do Cinema Novo de O boca de ouro, do mestre Nelson Pereira dos Santos; Copacabana me engana, de Antonio Carlos da Fontoura; O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha; Os herdeiros, de Carlos Diegues, até o filme introspectivo do antonioniano Walther Hugo Khoury, Noite Vazia – seu melhor papel, ao lado de outro mito, Norma Bengell.
Odete é o exemplo único de uma atriz que mergulhou nos movimentos políticos e culturais de seu tempo, desde o engajamento na luta contra a censura, na defesa do nosso cinema, às experiências sensoriais da contracultura.
Viveu intensamente essa época, até retirar-se, em seu refúgio espiritual de um sítio em Muri, nos arredores de Nova Friburgo. Lá, dedicou-se a traduzir livros budistas e escreveu em dois volumes sua biografia – em que a diretora Ana Maria Magalhães baseou-se para realizar o belo filme Lara.
Em 1978, fui buscá-la no seu exílio campestre voluntário – queria tê-la num filme meu, a musa, a amiga, a atriz mítica de tantos filmes. Não poderia deixar de tê-la na minha filmografia, nem deixar de viver a experiência de dirigi-la. Odete sorriu, me deu a mão e respondeu: “Está bem, vai ser meu último trabalho”.
Em Paraty, juntou-se à equipe técnica e ao elenco e divertimo-nos muito filmando O princípio do prazer.
As últimas vezes em que nos encontramos, na Mostra de Tiradentes, onde foi homenageada em 2001, e em seu aniversário, em casa da amiga Letícia Sabatella, já idosa, mas com o mesmo sorriso discreto e característico, cantou sambas que tocavam no violão. Feliz, deu-me a mão, como nos tempos das passeatas, das suas estreias e dos mergulhos na praia de Ipanema – onde reinou, soberana, como uma diva atemporal e realizada.
* Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, é cineasta. Dirigiu o último filme em que Odete Lara atuou, O princípio do prazer (1979)