Valor Econômico - 16/07/2013
Por Matías M. Molina
Na "Tribuna da Imprensa" e com acesso à televisão e ao rádio, Carlos
Lacerda orquestrou campanha sistemática contra a "Última Hora" de
Samuel Wainer, por suas relações com o governo Vargas
A "Última Hora" não chegou a ser o jornal brasileiro de maior
circulação nem o de maior prestígio. Mas é, certamente, o que mais
atenção vem recebendo no mundo editorial. Em torno de uma dúzia de
livros já foi publicada sobre ele e nada indica que a curiosidade que
suscita tenha diminuído. Esse número é muito superior ao de obras
dedicadas a diários extremamente influentes em sua época, como o
"Jornal do Commercio" e a "Gazeta de Notícias", ou, mais recentemente,
"Correio da Manhã" e "Jornal do Brasil", no Rio de Janeiro, ou "A
Gazeta", "O Estado de S. Paulo", "Folha de S. Paulo".
O livro mais recente é "O caso Última Hora", de Aloysio Castelo de
Carvalho. Apesar do título, seu foco não é precisamente a "Última Hora",
mas a discussão das diferentes concepções de opinião pública e de
liberdade de imprensa de alguns jornais do Rio, de 1951 a 1954, e a
percepção que tinham do sistema político - governo, partidos políticos e
sindicatos. A estrutura do livro pressupõe que o leitor tenha
conhecimento prévio sobre a fundação e evolução da "Última Hora" e sobre
seu fundador, Samuel Wainer.
A obra se concentra na campanha contra Wainer, quando foi criada a
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da "Última Hora", em 1953, para
examinar o financiamento que recebeu do Banco do Brasil. Foram
examinados editoriais, artigos assinados, colunas e reportagens. A
imprensa passou a questionar-se sobre si mesma, seu papel e suas
relações com os poderes públicos e a sociedade.
O autor escolheu os pontos de vista de três diários do Rio que
combatiam Wainer e seu jornal: a "Tribuna da Imprensa", de Carlos
Lacerda, "O Globo", de Roberto Marinho, e "O Jornal", o órgão líder dos
Diários Associados de Assis Chateaubriand. Como contraponto a eles, os
da "Última Hora". Não são explicados os motivos que o levaram a
selecionar esses jornais. Certamente, foram importantes na campanha
orquestrada por Lacerda contra a "Última Hora". Mas o leitor pode
estranhar a ausência do "Correio da Manhã" e do "Diário de Notícias", na
época talvez os jornais mais influentes do Rio, e do "Diário Carioca".
O livro, que tem como origem uma tese de doutorado, não é leitura
fácil. Está permeado de conceitos abstratos, aos quais o autor
acrescenta digressões e citações de filósofos, que vão de Hobbes, Locke
e Hume a Maquiavel, passando por Rousseau, Montesquieu, Ortega y
Gasset, Adam Smith, Habermas, Tocqueville, Stuart Mill, Bobbio, Isaiah
Berlin. Aparecem também autores menos conhecidos, como Koselleck. Dada a
preocupação do autor com a precisão da linguagem, e com a divulgação
de expressões como polissemia - "O ter uma palavra muitas
significações", segundo o Aurélio -, soa estranho o uso, como se fossem
sinônimos, dos conceitos "liberal" e "conservador", quando escreve a
respeito dos jornais.
Como outros jornais, a "Última Hora", era marcadamente anticomunista e pela manutenção do PCB na ilegalidade
Embora com frequência a opinião da "Tribuna da Imprensa", de "O
Globo" e de "O Jornal" seja apresentada como se formassem um bloco
homogêneo, o autor também mostra que discordavam em algumas questões
essenciais. Os três queriam acabar com o concorrente "Última Hora",
mas, enquanto a "Tribuna da Imprensa" negava legitimidade ao governo de
Getúlio Vargas, ele era defendido pelos jornais de Marinho e
Chateaubriand. "O Globo" escreveu a respeito do presidente: "Suas
palavras, de respeito aos poderes constituídos da República, foram as
de um patriota. A demagogia, a dubiedade (...) estiveram agora
completamente ausentes". Ante a ameaça de "impeachment", disse:
"Getúlio Vargas é o presidente eleito do Brasil e, como tal, cabe-lhe
exercer o mandato até o término do prazo para o qual foi eleito". "O
Jornal", por sua vez, afirmou que Vargas, quando fez o contrário do que
diziam aqueles que imaginavam que provocaria uma revolução social
depois da posse, começou a tranquilizar e despertou evidente confiança.
Todos os jornais, inclusive a "Última Hora", eram marcadamente
anticomunistas e favoreceram a manutenção do PCB na ilegalidade; todos
combatiam o peleguismo sindical. A "Última Hora", que defendia a
intervenção do Poder Executivo na imprensa por meio de subsídios,
quando foi criada a CPI denunciou a interferência do Legislativo nos
assuntos privados do jornal. O livro também mostra que, em sua defesa
de Getúlio Vargas e em seu empenho em transformá-lo num mito, a "Última
Hora" deixou de lembrar seu passado de ditador e defendia que o Poder
Legislativo respondesse às demandas de um governo cujo presidente foi
eleito acima dos grupos e dos partidos.
A respeito da criação da Petrobras, tanto "O Globo" como "O Jornal"
se manifestaram contra o monopólio estatal. Mas, diferentemente do que
diz o autor, a "Tribuna da Imprensa" não apenas não se opôs ao
monopólio estatal como o defendeu desde o começo. No mesmo mês,
dezembro de 1951, em que o governo divulgou o projeto inicial, que
previa a participação do governo estrangeiro na Petrobras, o jornal
escreveu que isso significava entregar "aos "trustes" o controle da
indústria sem risco nem despesa". Foi o primeiro de vários artigos da
"Tribuna", alguns escritos por Lacerda, a favor do monopólio. Há outros
deslizes, de menor importância, como a afirmação de que Jânio Quadros
foi vencedor das eleições à Prefeitura de São Paulo em 1954 - ele se
elegeu prefeito em 1953 e governador em 1954.
O livro mostra como "O Globo", para atacar a "Última Hora",
transcreveu um texto de "El Universal", do México, segundo o qual a
luta pela liberdade de imprensa era a luta "contra o governo e os
grandes grupos econômicos". Faltou dizer que, precisamente, "El
Universal" era sustentado pelos subsídios do governo.
As armas mais fulminantes na campanha contra a "Última Hora" não
foram os editoriais dos jornais - que pouca gente lê -, mas os meios
audiovisuais: a TV Tupi, de Chateaubriand, e a Rádio Globo, de Marinho,
usados por Lacerda com habilidade e agressividade que mobilizaram a
opinião pública.
Coincidentemente, outro livro tem um título quase idêntico, "Caso
Última Hora", de Maikio Guimarães, que se concentra no mesmo período do
jornal, os primeiros anos da década de 1950. Mas seu foco, o
personagem principal do livro, ao contrário do que diz o título, não é
precisamente a "Última Hora", mas Carlos Lacerda. Ele diz ter percebido
a superficialidade e fragilidade das críticas que lhe eram feitas e
saiu em sua defesa. O autor faz a chocante afirmação de que nenhum
crítico pode dizer que Lacerda tenha mentido em algum episódio, que ele
foi superficialmente analisado e que suas ideias e opiniões pouco são
levadas em consideração por seus detratores. Escolheu, para estudar sua
pessoa, o "caso Última Hora", basicamente o período em que o jornal e
Samuel Wainer foram atacados pelo resto da imprensa e em que foi
formada a CPI a respeito do financiamento à "Última Hora". Assegura que
os detalhes do "caso" nunca foram revelados em sua plenitude e que o
episódio "ficou perdido nos desvãos da história", mas que deve ser
resgatado e discutido. É o que ele se propôs fazer.
As fontes são conhecidas, basicamente artigos de Lacerda e Wainer - o
livro informa brevemente sobre a vida dos dois -, autos do inquérito
da CPI, além de obras já publicadas.
O autor utiliza as fontes de maneira acrítica. Por exemplo, afirma
que Wainer foi cobrir em 2 de fevereiro de 1951 a primeira reunião
ministerial comandada por Getúlio Vargas e ficou surpreso ao perceber o
desinteresse dos demais veículos pelo novo governo, numa "conspiração
do silêncio". Conversando com Vargas, teria saído daí a ideia de lançar
um jornal para defender o presidente. A informação foi extraída da
autobiografia de Wainer. O evento teria acontecido em Petrópolis.
Uma rápida pesquisa mostraria que dificilmente poderia haver uma
reunião ministerial em Petrópolis em 2 de fevereiro. Vargas estava no
Rio, onde foi homenageado pelas missões diplomáticas estrangeiras e
pronunciou um discurso; nesse dia, almoçou com Adhemar de Barros.
Também nesse dia tomaram posse do cargo os ministros da Justiça, da
Educação e da Viação e o presidente do Banco do Brasil, com a presença
do vice-presidente da República, Café Filho.
As conclusões do livro são que Lacerda tinha razão quanto ao
financiamento da "Última Hora" pelo Banco do Brasil - fato sobre o qual
nunca houve dúvidas - e sobre a nacionalidade de Wainer, nascido na
Bessarábia. Afirma o autor que seu livro lançou luz sobre um episódio
esquecido da nossa história - embora tenha sido divulgado
repetidamente. Ele quis também resgatar dos seus detratores as ideias e
a figura de Lacerda. É possível, diz, que, com o tempo, o papel de
Lacerda seja repensado, questionado, discutido e criticado. Segundo o
autor, sua própria observação, livre de preconceitos, enxergou uma
figura complexa e dona de grandes gestos.
Foi na TV e no rádio que Carlos Lacerda desfechou os ataques de maior repercussão contra o jornal de Samuel Wainer
Mas Lacerda já foi enxergado como uma figura situada à extrema
direita do espectro político, um admirador de ditadores como Salazar em
Portugal, sempre disposto a inventar acusações contra seus
adversários, reais ou imaginários. Lacerda abriu uma campanha contra
Otto Maria Carpeaux, acusando-o de "fascista". Atacou Nelson Rodrigues
como desagregador da família brasileira, pelo simples fato de escrever
na "Última Hora". Fez uma campanha contra "os comunistas do Itamaraty" e
conseguiu a expulsão de João Cabral de Mello Neto e de Antônio Houais.
Cláudio Abramo disse que Lacerda foi o responsável pela decadência do
jornalismo político carioca, ao cunhar a expressão "sindicato da
mentira" para referir-se aos jornalistas Carlos Castello Branco,
Villas-Bôas Corrêa e Pompeu de Sousa.
O autor afirma que Lacerda tem sido tratado nas mais diversas
publicações como o "grande vilão", apesar de a principal obra sobre
ele, escrita por John W. F. Dulles, ser uma verdadeira hagiografia.
Lacerda, uma pessoa cuja extraordinária inteligência foi superada por
uma ambição ainda maior, merece uma obra menos engajada.
Certamente, os livros resenhados não esgotam o enorme manancial que
foi um diário inovador como a "Última Hora", mas cujas relações com o
poder não são um bom exemplo para a imprensa. E há também outros
jornais ainda mais importantes e interessantes à espera de um autor que
escreva sobre eles.