domingo, 22 de março de 2015

Psicanálise, ética e poder

O clima de beligerância na política brasileira extrapola os conflitos partidários e a crise. As cenas de ódio remetem a fantasias e impulsos primários identificados por Freud


Inez Lemos
Estado de Minas: 21/03/2015 




Entre as ações impossíveis de serem realizadas plenamente, Freud destacou a de governar. Embora a psicanálise não tenha formulado uma teoria da política e do poder, ela reforça que o governo não pode desconsiderar o sujeito desejante – sujeito fundado nas pulsões. Como inserir o sujeito no campo da ética, da política e do poder? Como conciliar as pulsões e a civilização? A problemática da política está em mediar o campo social, a ordem simbólica e mítica das relações, uma vez que cada cidadão chega atravessado por traços culturais, convicções e atavismos. Cada sujeito porta registros simbólicos que o singularizam. O pacto social exige a equivalência simbólica das forças – Estado e sociedade.

Quando os governos lançam projetos políticos que rompem com o imaginário social propondo mudanças historicamente petrificadas, sofrem forte resistência. Toda ruptura no campo psíquico provoca uma contratransferência, uma rejeição aos modelos que contrariam os códigos internalizados, seja de governos ou pessoas. Diante da proposta socialista, por exemplo, Freud, embora compartilhasse do sonho por sociedades mais justas, não acreditava na sua viabilidade, uma vez que a relação dos sujeitos com a riqueza se inscreve no circuito pulsional que regula o gozo. Perder dinheiro significa perda de gozo, e, para tanto, poucos estão preparados. A transformação do estatuto simbólico dos bens materiais implicaria mudanças culturais e de valores, como também na circulação do gozo.

A instituição de uma sociedade menos desigual pressuporia a imposição de um limite ao gozo absoluto, operando como um interdito simbólico. Quando o sujeito é interditado em suas pulsões narcísicas, diante do imperativo do gozo se instala o mal-estar. Os conflitos entre interesses, muitas vezes explicados por motivos econômicos, geraram guerras e revoltas, desconstruindo o conceito de civilização universal e progresso. Contudo, a política deve transitar entre o universal (público) e o relativo (subjetivo). Daí a governabilidade ser um desafio que nunca se realiza completamente por se contrapor às demandas de gozo do sujeito. O conflito entre interesses, classes e ideias dificulta a democracia, uma vez que o narcisismo, a pulsão e o mal-estar na civilização fundam a desarmonia entre os cidadãos.

ÓDIO Como entender o ódio que se disseminou na sociedade brasileira a partir da ultima eleição para presidente da República? A questão é aprofundar o olhar sobre o sintoma “ódio ao PT” para além da realidade, extrapolando os conflitos partidários. Corrupção deve ser sempre combatida. Embora ela sempre tenha integrado o cenário político brasileiro, como explicar a onda de moralização, o furor por denúncias justo agora? O que subjaz à crise política que vivemos extrapola análises objetivas. A felicidade de uma nação não pode ser absolutizada, não é um valor universal, mas um valor relativo que remete às exigências pulsionais. Até que ponto as diferenças individuais e pulsionais inviabilizam a construção de um pacto social? Hegemonia prevê que a maioria dos participantes se una em torno de um valor universal.

Ao criticar políticas públicas de transferência de renda, como o Bolsa-Família, devemos estender o olhar às questões subjetivas – as diferenças se singularizam entre gozo e desejo. E o desejo se fixa na fantasia, que por si só tem algo de utópico. Não há nada de absoluto no campo das subjetividades, e a política administra fantasias humanas, cuja função é atuar na produção do desejo. Quando o desejo do sujeito é reconhecido, o cidadão abandona a fantasia de excluído e adquire um lugar na pólis – conquista pertencimento. Conquistar identidade é conquistar poder.

Os obsessivos por poder geralmente mantêm uma relação insana e perversa com a política. Manipulam e cometem crimes ao promover lobbies e garantir o “queijo intacto”. Brigam movidos por fantasias de riqueza, vaidades, poder. Há algo no psiquismo que dificulta avançar nas propostas de redução da pobreza. No Brasil, a retórica da democracia sempre se opôs às políticas públicas de amplo alcance social. Os projetos desenvolvimentistas ocorreram com dinheiro público em empreendimentos privados. Sempre convivemos com o Bolsa Boi, Bolsa Empresário, com o crédito ao agronegócio e às empresas. Contudo, o descontentamento com os investimentos do governo atual na área social deflagra a relação fálica de posse que o sujeito estabelece com os bens materiais. A lógica do lucro dificulta a aceitação, sem oposição, à expansão dos direitos sociais. Quando esses se estendem à maioria dos cidadãos, há perda de privilégios – a igualdade fere a fantasia fálica de acumulação.

OSTENTAÇÃO O gozo do sujeito contemporâneo está na ostentação da riqueza e na espetacularização da posse – a imagem de rico e poderoso. O projeto de felicidade fundado na pós-modernidade e centrado na tecnologia reforça a cultura narcísica, individualista. O ideal de acumulação em que a riqueza material ganha primazia, muitas vezes, não consegue produzir satisfação, uma vez que o viver em sociedade provoca interdições e renúncias pulsionais. É quando o sujeito se vê diante de propostas que contrariam a ordem simbólica – orientação internalizada de ostentação.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud enuncia que o homem é um animal de horda e não um animal de massa. Há algo no sujeito que o leva a rejeitar o social, a resistir aos processos de coletivização. No meio da massa, ele se entrega aos impulsos primários, abandona as interdições e, como animal feroz, defende seu naco de carne.

Ao defender com violência o seu espaço, seu patrimônio e seu partido, o sujeito demarca território. É o narcisismo, que, ao impor singularidade, rejeita a igualdade. Freud, ao refletir sobre as guerras, cunhou a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ele explica os conflitos entre os cidadãos – fonte do ódio entre partidos, torcidas, nações. A “guerra entre partidos”, a conduta beligerante do atual Congresso Nacional expõe a obsessão pelo poder: digladiar por um lugar de destaque na arena política. A corrupção, o desejo de se locupletar de forma ilícita, inscreve-se no circuito pulsional – é sintoma que escapa. Os perversos sempre rodearam o poder, lugar onde os atos espúrios são protegidos.

Quando governos tentam inovar com políticas sociais que rompem com o ideário da elite conservadora, que sempre determinou os investimentos públicos, há que se tentar uma intervenção e transformação no sistema de valores e na produção do desejo coletivo. Não é possível entender a resistência ao Bolsa-Família – programa que não se resume a transferir renda, mas garantir educação, saúde, saneamento, eletricidade e moradia aos mais pobres – pelo viés da razão moderna. Há algo no psiquismo que inviabiliza a construção de um modelo iluminista de cidadania baseado no bem comum, uma vez que ele se oporia ao projeto universal de felicidade, quando as riquezas seriam mais bem distribuídas.

CORROSÃO Quando a política não consegue dialogar com as diferentes subjetividades, não oferece outras formas de laço social senão as clássicas inseridas pelo mercado e poder econômico, o efeito é a evidente corrosão entre Estado e tecido social. Tudo isso aponta para uma crise estrutural de valores, provocando uma dicotomia, a ruptura no ideal de nação. De um lado, os defensores do status quo – riquezas e privilégios –, de outro a população, que anseia por projetos que lhes garantam qualidade de vida. Uma população mais educada, saudável e com acesso a bens e serviços é pré-requisito ao desenvolvimento mais sustentável e menos desigual. A inclusão social e produtiva dos mais pobres é benéfica para o conjunto da sociedade.

Conclui-se que a relutância às políticas sociais, cujos impactos positivos na economia foram reconhecidos, aponta a dificuldade de se romper com a tradição simbólica que permeia as relações humanas, cristalizadas no preconceito e na resistência em conviver com a mobilidade social. Como socializar os espaços de convivência e democratizar o acesso ao patrimônio público. Quando uma classe é ameaçada de perda de privilégios, ela sofre intervenção na relação fálica de posse, é privação do gozo.

O mal-estar que se instalou no país não pode ser explicado apenas pela corrupção na Petrobras (uma vez que ela remonta a várias décadas), tampouco pela alta do dólar e da gasolina. É efeito de algo maior e que escapa às análises econômicas – diz da demanda de gozo do sujeito. Governar, educar e analisar são profissões infindáveis e incompletas.

Inez Lemos é psicanalista.
E-mail: inezlemoss@gmail.com

Poetas são outros

No romance Fernando Pessoa - O cavaleiro de nada, Elisa Lucinda funde sua voz à do escritor para revelar a beleza dramática da obra do gênio da língua portuguesa


Severino Francisco
Estado de Minas: 21/03/2015 



 (Almada Negreiros/reprodução)
Fernando Pessoa se autointitulava o “supra-Camões”. E, de fato, enquanto Os lusíadas cantou as aventuras marítimas portuguesas da era imperial por continentes desconhecidos, Pessoa é o poeta das aventuras do espírito, das viagens subjetivas, das navegações cotidianas e dos acidentes da vida moderna. O caso dele é singularíssimo. Na vida comum, empenhou-se em ser o mais anônimo dos mortais, um burocrata autor de cartas comerciais enredado na rotina mais trivial. A sua biografia factual é insignificante e completamente destituída de lances espetaculares. Queria, deliberadamente, tornar-se ninguém para ser muitos na ficção. Como escrever a biografia de um personagem que se coloca no lugar de ninguém? Esse é o desafio que Elisa Lucinda enfrenta no romance intitulado, significativamente, Fernando Pessoa – O cavaleiro de nada.

O repto é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. Verdadeiro porque Elisa é, na vida real, uma espécie de anti-Pessoa: mulher, negra, bela, exuberante, atriz e amante dos palcos. Os poetas costumam ser personagens meio alheados dos aspectos pragmáticos do cotidiano. Mas Pessoa radicalizou essa condição e transformou a imagem do escritor inadaptado a um mundo de relações cada vez mais mercantilizadas em um arquétipo de marginalização voluntária.

Lucinda supera o primeiro desafio ao fundir a sua voz na do poeta e tornar Pessoa um heterônimo seu: “Sinto-me viver vidas alheias em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, individuado por uma suma de não eus sintetizados num eu postiço”.

O desafio é falso porque Fernando Pessoa é íntimo de Elisa, ela conhece ou intui as leis secretas que regem o processo de criação, as sutilezas da relação entre vida e arte, as dissimulações e os dilemas do poeta: “Vi-me com apenas 11 anos, entre os meninos de 13, criado para ser um gentleman vitoriano; porém franzino por fora e infinito por dentro”, diz o narrador Fernando Pessoa. “(Ó, é sem modéstia que o digo). Não me invejem, ser infinito por dentro pode não ser bom”. Em outro trecho, a voz do próprio escritor é invocada para iluminar o drama de sua vida: “Em algumas, cheguei até a fazer estilo. Porém, nem por isso sofro menos. Um homem tanto pode sofrer vestido de seda como coberto de um saco ou cobertor roto”.

A narrativa de Lucinda desliza ardilosamente entre a ficção, a autobiografia, a fotobiografia e o ensaio. Ela acompanha a vida de Pessoa em uma sequência quase linear, do nascimento até a morte, passando pela infância, a morte do irmão Jorge às vésperas de completar um ano de vida, o rio da aldeia, a ilha da palavra, a amizade com Sá Miranda, a dramaturgia dos dias. Funde a voz na de Pessoa. No entanto, faz questão de distinguir, com muita clareza, por meio de um sinal gráfico, o próprio discurso e as citações do poeta.

REFERÊNCIA AFETIVA A personagem da avó, Dionísia Estrela, rotulada de louca, é uma referência afetiva e espiritual relevante no tecido da narrativa e na identificação do poeta inadaptado, alfabetizado no idioma inglês, mas que tinha a língua portuguesa na condição de pátria: “Escrever versos em inglês faz um efeito diferente na alma. Já escrever a palavra em português dava-me um conforto de terra firme no espírito.” A avó Dionísia tem a função quase de pitonisa grega, a desfiar comentários delirantes e incisivos: “Sua mãe que não é rainha de nada está a reclamar de quê? Ora, viva a sua língua, filho, e deixe que as más línguas se mordam!”.

Portugal sempre manteve relações estreitas com a África durante o período colonial e Lucinda estabelece esse embate com Fernando Pessoa ao contrabandear falas que colorem o drama de novas cores: “Na subjetividade, sou o mais branco dos zulus. E também o mais preto dos lusitanos por linhagem de mistérios. Há uma aldeia de tambores dentro de mim. Batuques. Escrevo beirando o abismo de tudo perder o sentido.”

A narrativa não encerra a vida de Pessoa às voltas com o próprio umbigo. No decorrer da trajetória, a relação com Portugal é abordada de maneira crítica e dramática: “Trágico Portugal, como és belo! Na tarde triste ouve-se o murmúrio do Tejo, o rio de minhas veias”. Ela explora recantos obscuros da alma portuguesa de um povo de espírito sonhador, mas de instinto predatório, despreocupado da construção paciente de projetos de desenvolvimento, nostálgico das aventuras ultramarinas: “Nessa história, pelo que vejo, não produzimos é nada. Ficamos sugando diariamente ouro, tabaco, traficando escravos e tirando suco das colônias sem plantar riqueza aqui. A Inglaterra já estava animada e firmando-se na onda da Revolução Industrial, nas locomotivas etc., e nós, viciados em chupar o sangue das terras que conquistamos, sem perceber que esse jeito de ganhar dinheiro sem fazer esforço podia sair-nos caro no futuro. Estou nostálgico. Um misto de saudade do que não houve de tristeza”.

DESLIMITES Esse romance é um ato de amor de Lucinda por Fernando Pessoa. E o olhar amoroso produz conhecimento. É um exercício de compreensão que ilumina dimensões delicadas e obscuras do poeta. A discussão sobre os limites do gênio e da doença percorre a trama. Fernando Pessoa se multiplicou nos heterônimos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Ricardo Campos, entre outros: “Hoje, entre uma bebedeira e outra, indago-me se sou gênio mesmo ou se o que me falta é medicação. Talvez eu ouça vozes. E daí? O que vale é que, dramaturgo do desfile de vozes da minh’alma, descrevo aqui a oficina onde armei o jogo da vida”.

Em vida, Pessoa sentiu-se, quase sempre, um estrangeiro na sua pátria e no seu tempo. Teve raros amores e amigos. O livro é uma bela iniciação a Fernando Pessoa. A mirada afetuosa, cálida, lúcida e lírica de Lucinda fulmina as incompreensões coladas à imagem do poeta português, o supra-Camões das aventuras cotidianas da modernidade: “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Ó minha vila natal em Portugal, tão longe! Por que não morri eu criança quando só conhecia a ti”. Lucinda protege Pessoa dos julgamentos rasos: “Prefiro a incompreensão pelo silêncio. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão”.

É uma homenagem amorosa de poeta para poeta. Lucinda roça a sua língua na língua de Pessoa: “A maior boca é a do Álvaro, mas todos têm rios a nascer das línguas”, escreve o narrador de O cavaleiro de nada. Ela sustenta o fôlego da língua elegante, fluida e luxuosamente precisa ao longo de mais de 400 páginas. Pessoa acumulou inúmeras biografias. Lucinda se apropriou de todo esse legado para traduzi-lo na língua epifânica da poesia, a língua de nascimentos e renascimentos.

Ao fim da leitura, ergue-se aos olhos do leitor um retrato complexo, dramático e pungente do poeta português. Com O cavaleiro de nada, Lucinda se torna uma verdadeira contemporânea de Fernando Pessoa: “Penso às vezes que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, essas frases que escrevo durarem com louvor, eu teria enfim a gente que me ‘compreenda’, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado”, escreveu, profeticamente, o poeta.
 (RECORD/REPRODUÇÃO)

FERNANDO PESSOA O CAVALEIRO DE NADA

• De Elisa Lucinda
• Editora Record
• 403 páginas, R$ 55

A idade da razão

A balada de Adam Henry, romance do britânico Ian McEwan, mostra os dilemas de uma juíza e reflete sobre o envelhecer, a fé e a razão do homem contemporâneo


Nahima Maciel
Estado de Minas: 21/03/2015



Ian McEwan consultou magistrados aposentados antes de escrever seu novo romance (Nir Elias/Reuters)
Ian McEwan consultou magistrados aposentados antes de escrever seu novo romance


Ian McEwan primeiro pensou A balada de Adam Henry como uma novela de 40 mil palavras. Foi um pouco além, mas não se pode dizer que o novo romance do escritor britânico não seja uma novela. Lê-se rápido, de um fôlego (o mesmo que impede pausas em Amor sem fim e Desejo e reparação), a história da juíza que precisa decidir sobre o destino de um adolescente. O livro é também sobre o envelhecimento, a idade, a fé e como a razão não é um porto seguro.

Fiona Maye é uma juíza de pouco mais de 50 anos, extremamente comprometida com o trabalho, em crise no casamento com Jack e no auge da atuação profissional. Entre casos corriqueiros de divórcios, guarda de filhos e heranças, ela precisa decidir se Adam, de 17, testemunha de Jeová, é capaz de optar sozinho por não receber a transfusão de sangue que irá salvá-lo no tratamento de uma leucemia.

McEwan apresenta ao leitor uma personagem cujas certezas podem não repousar em sólida convicção, supostamente natural para uma mulher da idade e projeção profissional de Fiona. Ela é brilhante ao redigir suas sentenças e tomar decisões, mas a base sobre a qual o faz não está tão enraizada assim. O casamento atingiu o estágio da apatia e Jack quer uma reação da mulher, que se fecha diante da ameaça de um caso extraconjugal. Na corte, a juíza ultrapassa as fronteiras da toga ao estabelecer com Adam uma relação para além do tribunal, mas mantém certa frieza, nem sempre penetrável.

McEwan afrouxa a corda ao mesmo tempo em que a retém. Não há nada de moralmente questionável em Fiona, que carrega características capazes de confundi-la com o alterego do próprio autor. Como McEwan, a juíza é aficcionada por música clássica, mas, ao contrário de seu criador, é capaz de reproduzi-la (com alguma competência profissional) ao piano. Também é muito culta e traz da erudição o conhecimento que sustenta suas sentenças.

REFLEXÕES O envelhecimento é tema de reflexão constante – e McEwan, de 66, já deu sinais de que pretende trazer a velhice para a sua escrita. Em um belo e sincero trecho, Fiona reflete sobre seu relacionamento e a proximidade dos 60: “E também havia a idade. Não a deterioração total, ainda não, mas seus primeiros indícios começavam a transparecer, assim como sob determinada luz é possível vislumbrar o adulto no rosto de um menino de 10 anos”.

A dinâmica dos tribunais ocupa a cabeça do autor britânico há algum tempo. Uma das vantagens de envelhecer, disse ele durante a divulgação do novo livro no Reino Unido, é poder se cercar de juízes aposentados e compreender os bastidores da profissão. A balada de Adam Henry é inspirado em um caso narrado pelo amigo, o ex-juiz sir Alan Ward. “Amo profissões. Sempre gostei de pesquisar e adoro as especialidades das pessoas. É por isso que gosto de sets de filmes. As pessoas adoram falar sobre seus trabalhos”, declarou ele ao The Guardian.

Admirador confesso do cinema, McEwan não hesita em trazer para seus romances a ideia de um clímax longamente arquitetado durante a narrativa. Difícil esquecer a surpresa final de Desejo e reparação. Impossível ignorar o fato de que Fiona conduz o leitor para uma espécie de tragédia desconcertante.


A BALADA DE ADAM HENRY

De Ian McEwan

Companhia das Letras

196 páginas, R$ 37,90  

Orelha

Orelha


Estado de Minas: 21/03/2015




 (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)


Os impérios
de Pepetela



O premiado escritor angolano Pepetela (foto) acaba de lançar Lueji – O nascimento de um império (LeYa). O romance, publicado originalmente em 1989, une as trajetórias de Lu e Lueji, personagens que vivem em Angola, distantes 400 anos no tempo. Lueji, no período colonial, e Lu, no final do século 20, formam um retrato da história do país, que se tornou independente de Portugal em 1975. Pepetela convida à reflexão sobre a história contemporânea do país e os problemas que a sociedade enfrenta. São dele também os livros Predadores, uma crítica áspera das classes dominantes de Angola; O quase fim do mundo, uma alegoria pós-apocalíptica; e O planalto e a estepe, que examina as ligações entre Angola e outros países ex-comunistas.

Maçarocas



O jornalista André Zuliani autografa Maçarocas reais (Editora Letramento), hoje, às 10h, na Quixote Livraria, na Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi. As relações humanas e o universo feminino são os temas mais abordados no livro de crônicas de André, cujo prefácio é assinado por Leo Cunha.

Nomes da história


A Editora Amarylis prossegue publicando biografias de personalidades da história mundial. Este ano, sairão livros sobre Hitler, Bismarck, Gorbachev e Beethoven. São trabalhos de grande porte que unem pesquisas extensas e minuciosas a um texto fluente somado a belo projeto gráfico, além de caprichado acabamento editorial. Os lançamentos começaram em 2013, com Alexandre, o Grande, passando por Napoleão e Karl Marx.

Castello e Clarice



 (Record/Divulgação)


O escritor e jornalista José Castello (foto) estará em Belo Horizonte na segunda e terça-feira para participar do projeto Letra em cena, promovido pelo Centro Cultural Minas Tênis Clube (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes). O evento oferece debates, palestras e lançamentos. A abertura do programa contempla a obra de Clarice Lispector (1920-1977), uma das maiores escritoras do país. Castello vai ministrar a oficina “Clarice Lispector – entre a bruxaria e a filosofia”, que busca compreender por que a autora causa tanta dúvida e perplexidade. Segundo a teórica francesa Hélène Cixous, a escritora não fazia literatura, mas filosofia. O mineiro Otto Lara Resende sentenciou sobre a amiga: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria”.

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A oficina será realizada na segunda-feira, das 19h às 22h, e na terça-feira, das 9h30 às 12h30. Preço: R$ 80 (sócio do Minas Tênis Clube) e R$ 120 (não sócio). As inscrições podem ser feitas na bilheteria do Teatro Bradesco ou no site www.ingresso.com. Informações: (31) 3516-1027.

Chatô liberado


A juíza Elaine Faria Evaristo, da 20ª Vara Cível de São Paulo, considerou improcedente uma ação movida contra a Companhia das Letras por ter publicado o livro Chatô – O rei do Brasil (1994), biografia do empresário e jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968) escrita por Fernando Morais. A autora da ação, Helena Borges da Rocha, empregada doméstica do empresário, alegava que o livro ofendia sua honra ao afirmar que ela foi amante dele e por publicar sua fotografia. Ela pedia a destruição de todos os exemplares no mercado, a proibição de novas edições e indenização por danos morais. “Existe um legítimo interesse público em conhecer a vida de pessoas públicas e notórias (...) Pelo menos nesse tempo em que a vida da autora e a vida de Chateaubriand se encontraram, entendo legítima a exposição de fatos e de imagens na biografia”, considerou a juíza.


Edições de bolso


Clássico da literatura mundial, Os lusíadas (Record), de Luís de Camões (1524-1580), ganha nova edição de bolso. Publicado em 1572, este marco do classicismo de Portugal enaltece em 10 cantos a coragem do povo português ao desbravar o Oceano Atlântico a fim de encontrar uma nova rota para as Índias. A nova edição inclui prefácio inédito de José Paulo Cavalcanti Filho, vencedor do Prêmio Jabuti.

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Mestre dos mares (Record), de Patrick O’Brian (1914-2000), também ganha edição de bolso com preço acessível (R$ 22). O capitão Jack Aubrey e o médico Stephen Maturin vivem aventuras no navio britânico HMS Sophie ao enfrentar embarcações francesas durante as guerras napoleônicas, no início do século 19. O livro foi adaptado para o cinema em 2003, com Russell Crowe e Paul Bettany nos papéis principais.

Muito além da missão francesa

Livro organizado por Fabiana Werneck Barcinski oferece novo olhar sobre a arte brasileira. Ensaios abordam de gravuras pré-históricas à produção dos anos 1960


Antonio Gonçalves Filho
Estado de Minas: 21/03/2015



Albert Eckhout, que chegou ao país com a missão holandesa, retratou a tropicalidade brasileira no século 17 (Albert Eckhout/reprodução)
Albert Eckhout, que chegou ao país com a missão holandesa, retratou a tropicalidade brasileira no século 17
A tela Arrufos, exposta em 1887 por seu autor, Belmiro de Almeida, marcou uma revolução estética dois anos antes da Proclamação da República. No lugar do imperador e figuras ilustres, o pintor, ainda que por influência dos realistas europeus, pinta um casal burguês após uma discussão. A mulher chora sobre o sofá, enquanto o marido, indiferente, exerce seu papel de patriarca arrogante. Não era um tema comum para a sociedade brasileira da época, assumindo que o pintor toma a defesa da mulher ao retratar o marido como um chauvinista. Por que o pintor, que não ignorava a academia, desprezou os temas históricos para se ocupar de cenas domésticas?

A resposta está em Sobre a arte brasileira (Editora WMF/Martins Fontes e Edições Sesc), que chega às livrarias em abril. Com organização de Fabiana Werneck Barcinski e participação de diversos especialistas, o volume pinta um panorama completo da arte brasileira, da pré-história aos anos 1960, a década prodigiosa que alterou definitivamente os rumos artísticos de um país historicamente marcado pela presença estrangeira.

Já no primeiro capítulo é possível atestar o empenho dos autores em promover uma revisão histórica, ao incluir nele gravuras rupestres e artefatos indígenas. É legítimo falar em “arte brasileira” com características próprias e espaço definido sem tocar no assunto? O historiador Francisco Alambert, que defende a necessidade de uma história social da arte brasileira, lembra a urgência de reavaliar todo o processo que desemboca na modernidade para que, no futuro, os escolares não sejam obrigados a engolir mais uma vez que a arte brasileira começa com a vinda da missão francesa ao Brasil.

A respeito do olhar estrangeiro e da representação do Brasil por artistas franceses como Debret ou holandeses como Eckhout, um capítulo inteiro analisa as circunstâncias históricas da vinda dessas comitivas ao Brasil, propondo uma questão curiosa: por que não é conhecida nenhuma representação visual da natureza na colônia por um artista português em data anterior ao século 18? – a exceção fica por conta do frei franciscano Cristóvão de Lisboa. Resposta: porque a noção de desenho, entre os portugueses, estaria estreitamente vinculada à manufatura, ao caráter instrumental das academias militares, defendem os autores. Portugueses treinavam desenho com base em manuais, não a partir da observação da natureza. Ao contrário do desenho naturalista de Debret, o português tendia a geometrizar as formas.

Pode parecer boutade, mas isso talvez explique algo a respeito da “vocação” construtiva da arte brasileira. No capítulo dedicado às relações entre a academia, a natureza e a política (entre 1816 e 1857), parece estranho aos autores que dom João VI, de uma família expulsa da Europa por Napoleão, tenha convocado uma missão artística francesa no lugar de seus compatriotas portugueses – o crítico Mario Pedrosa defendia que os franceses vieram por conta própria, sem convite. Seja como for, a arte brasileira já existia antes de Debret e Taunay e da fundação da academia.

Da mesma forma, a arte moderna brasileira não nasceu na França nem o concretismo ou a arte experimental dos anos 1960 são frutos da clonagem da arte estrangeira. É o que mostra o livro, que traz um capítulo sobre a arte popular, prova da riqueza e diversidade brasileira.

O legado de Anita

Camila Molina
Estado de Minas: 21/03/2015 



Tropical, quadro de Anita Malfatti (Pinacoteca de São Paulo/divulgação)
Tropical, quadro de Anita Malfatti

O livro De Anita ao museu, do escritor, crítico e advogado Paulo Mendes de Almeida (1905-1986), lançado originalmente em 1961 pelo Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, estava, há tempos, esquecido. Era lembrado apenas por especialistas. “Refere-se exclusivamente à evolução da arte moderna em São Paulo”, definiu o autor no prefácio da primeira edição da obra, realizada pela reunião de artigos publicados por ele entre 1958 e 1959 no jornal O Estado de S.Paulo. “É o testemunho vivo de um tempo”, diz a historiadora e crítica Aracy Amaral sobre o mérito maior dos escritos, considerados, desde então, parte de uma historiografia “não acadêmica” do modernismo e que agora saem em novo volume pela Editora Terceiro Nome.

Recorrendo à memória, Paulo Mendes de Almeida repassa episódios fundamentais de um período e destaca importantes interlocutores da cena artística paulista desde o impacto da exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917 até os desdobramentos da realização da 1ª Bienal de São Paulo de 1951. De algumas passagens, o crítico e escritor foi o observador; de outras, o participante ativo, como dos bailes da Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam), das reuniões do Clube de Artistas Modernos (CAM) e da história do Museu de Arte Moderna (MAM).

“Sempre usei muito o livro do Paulo como referência, mas ninguém mais o conhece, o que é muito triste”, afirma Ana Luisa Martins, que conheceu o crítico. “Ele era engraçado, rápido, irônico, grande imitador, pessoa extremamente afetiva”, rememora a filha do jornalista Luís Martins e coordenadora editorial da nova publicação. O lançamento está marcado para hoje, na Pinacoteca do Estado, na capital paulista.

IANELLI Na verdade, trata-se da terceira edição do livro. Em 1976, a Editora Perspectiva, por sugestão de Aracy Amaral, havia relançado De Anita ao museu em versão ampliada, acrescida de textos dos anos 1960. A diagramação do volume foi feita pelo pintor Arcangelo Ianelli, grande amigo do autor, e por João Kon. Entretanto, há anos a obra estava restrita aos sebos.

A atual edição vem possibilitar que estudiosos e interessados tenham acesso a um título referencial. Fruto de minucioso trabalho, De Anita ao museu traz a reprodução ampliada de imagens de obras e exposições citadas nos textos (todas elas em cor), além de apresentar novos retratos e documentos históricos.

O livro tem estreita relação com a cidade de São Paulo e privilegia acervos públicos para que os leitores possam visitá-los. A apresentação de cuidadosas notas se destaca, assim como legendas que contextualizam os artigos. Idealizada em parceria com a Fundação Dorina Nowill, a versão em audiolivro também será disponibilizada.

Elogio à memória - Martha Medeiros

ZERO HORA 22/03/2015

O médico britânico Richard Smith gerou polêmica, recentemente, ao afirmar que o câncer é a melhor forma de morrer. Aos que já perderam alguém para essa doença infeliz, a pergunta que fica no ar é: como assim? Dr. Smith explica que, entre a morte súbita, a falência múltipla de órgãos, a demência ou um câncer, este último estaria em vantagem por dar ao paciente a oportunidade de se despedir dos seus afetos e prazeres, de refletir sobre a vida, de visitar certos locais pela última vez e de se preparar para a partida conforme suas crenças.
A polêmica se acirrou mais ainda quando ele disse que os investimentos para pesquisar a cura do câncer deveriam, ao menos em parte, ser direcionados a estudos sobre as doenças da mente.
A primeira vez que enxerguei o câncer com olhos menos dramáticos foi ao ler o livro Por um Fio, do dr. Dráuzio Varella, em que ele relata sua comovente experiência como oncologista. Agora, ao assistir ao filme Para Sempre Alice (que achei meio fraco, diga-se), reforcei a ideia de que o câncer dispõe mesmo de alguns benefícios nessa competição macabra.
A atriz Julianne Moore ganhou o Oscar de melhor atriz ao interpretar uma mulher de 50 anos que sofre do mal de Alzheimer. Ela perde palavras, não reconhece feições, esquece com quem estava conversando, e sobre o quê. Menos mal que ainda consegue produzir flashbacks, lembrar a infância e acontecimentos remotos. Porém, nos casos em que a memória vai inteirinha para o brejo, de que adiantou ter vivido?
Não faz sentido atravessar tantos conflitos e amores, ter cometido tantos erros e acertos e não poder, lá adiante, contabilizá-los. No inventário de uma vida, vale o que se fez e o que se sentiu. Se tudo for esquecido, esvaziam-se nossos 80 anos, nossos 90 ou 100. Qualquer longevidade passará a valer um segundo.
Espero um dia olhar para fotos antigas e me reconhecer no sentido mais amplo, recordar o que eu vivia naquele momento do clique, dizer “parece que foi ontem” sem sofrimento. Quero lembrar sabores, sorrisos, gestos, enfim, os flashes que iluminam a estrada atrás de nós. Quero inclusive lembrar os arrependimentos e as dores, que vistos de longe parecerão bem menores – e essenciais. Quero rir muito de mim, me recordando de trás pra frente.
Porque, se não for assim, nossa vida terá valido para os outros, os que nos lembram, mas não terá valido para nós mesmos. Seremos uns desmemoriados sem alicerces, vagando num presente ilusório, desaparecendo a cada minuto que passa.

Se temos que morrer um dia (que jeito), que seja abraçados a nossas recordações. A integridade de uma vida está em seu reconhecimento, mesmo que, junto às boas lembranças, sejamos obrigados a reconhecer também a proximidade do fim. É o preço. Pior é morrer alienado, sem poder avaliar, através da memória, se valeu ou não a pena.

EM DIA COM A PSICANáLISE » A reforma começa dentro de cada um Como disse Freud, onde há fumaça há fogo

EM DIA COM A PSICANáLISE » A reforma começa dentro de cada um Como disse Freud, onde há fumaça há fogo


Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas : 22/03/2015 



Manifestantes exigem faxina na política (Douglas Magno/AFP
)
Manifestantes exigem faxina na política
Os brasileiros estão cansados. Não aguentam mais encarar o sistema político, ficar impotentes diante de tanto desrespeito. Não podem mais lidar com a falta de representatividade. Deputados e senadores não representam o cidadão. Na verdade, a grande maioria deles está a milhares de quilômetros dos eleitores, cuidando de seus interesses particulares ou numa espécie de limbo inalcançável, enquanto tantos sofrem com a realidade pouco ou nada confortável.

As últimas manifestações reforçaram a impressão de que o Brasil pode estar, de fato, aprendendo o que é democracia, pois ela se faz com mobilização. Mesmo que ainda seja movimento nascido nas redes sociais e, como questionam alguns, com certo ar de superficialidade, pode dar início ao saudável hábito da participação.
Estaríamos nós, brasileiros, dispostos a abrir mão de alguma coisa pelo outro? Estaríamos dispostos a fazer um Brasil melhor submetendo-nos à lei? A lei é reguladora. Eleva a cria humana à dignidade de imortal, funda o desejo e sua aceitação e deve ser um ato de amor, como já disse minha querida mestra, a saudosa Nilza Féres.

E mais: a lei tem duas faces, uma pacificante, que acalma e protege, e outra cruel e obscena, que pune por punir, como a lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Todos precisam de uma lei que funcione para regular o gozo e o abuso de um sobre o outro. Ser protegido é bom. Abrir mão de regalias e privilégios em favor do outro não é tão simples...

A crise nos alcançou. Há certo alarmismo e manipulação da mídia, mas certamente as coisas não andam nada bem. Como disse Freud, onde há fumaça há fogo. Estamos cansados de bandidos à solta enquanto os tememos. De bancar presídios lotados de homens confinados e improdutivos, sustentados por nossos esforços. Da má administração dos recursos naturais demonstrada pela crise hídrica neste país, dono de uma das maiores bacias hidrográficas do mundo.

Vivíamos uma espécie de bonança, enquanto o resto do mundo sofria. Brincamos com fogo, fizemos a Copa do Mundo, as eleições, o carnaval e a evasão de dinheiro público via corrupção. Agora, deparamo-nos com desestabilização econômica, que assusta a todos, com o medo da volta da alta inflação. E com razão.

Entretanto, no que concerne à corrupção, Ricardo Semler revelou, em um artigo, que sua empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 1970. Naquela época, não se vendia nada sem propina, cujo valor caiu de lá pra cá. Ninguém desconhece esse fato no mundo dos negócios, nem os funcionários da estatal. Ele questiona onde estariam os envergonhados do país, que não saíam às ruas para protestar. E ainda aponta a hipocrisia daqueles que atualmente se fazem de inocentes, embora sempre soubessem como as coisas funcionavam.

Semler diz: “Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país”. Verdade. Para fazer um país melhor de fato, a reforma política é pouco. É preciso uma reforma interna. Aceitar perder e dividir, praticar a ética do bem comum, pois há no homem o germe da corrupção. Somos seres dotados de pulsão de vida e morte. É preciso enfrentar o fato de que a corrupção pode alcançar qualquer um de nós.

O problema não está no outro, mas dentro de cada um. É difícil olhar para dentro. Faremos a coisa certa quando ninguém estiver olhando, quando isso não for conveniente ou difícil? Ou faremos porque é preciso fazer? A escolha é do sujeito e ele está sozinho, embora a consequência de seus atos atinja todos.

ROBERTO CARLOS - ROBERT PLANT

BH recebe nesta semana a visita de dois reis em seus respectivos domínios, a MPB e o rock


Mariana Peixoto
Estado de Minas: 22/03/2015 



Um abismo separa Roberto Carlos e Robert Plant. Não há como transpor o universo que habita o maior ídolo popular brasileiro daquele em que vive o cantor que ficou conhecido como vocalista de uma das bandas mais importantes da história do rock, grupo que alicerçou o heavy metal.

Mas não deixa de ser curiosa a vinda dos dois Robertos na mesma semana a Belo Horizonte: o Plant se apresenta na quinta-feira, no Chevrolet Hall, e o Carlos faz show no sábado, no Mineirinho.

Deitado no berço esplêndido que o acolheu há cinco décadas, Roberto Carlos, de 73 anos, vai fazer exatamente o que faz há pelo menos 20. No caso de Robert Plant, 66, o show é uma incógnita. Recusando-se incansavelmente a ceder ao apelo de Jimmy Page de voltar com o Led Zeppelin, o cantor e compositor prefere dar asas à nova produção, que bebe na música étnica.

O público de Roberto Carlos sabe o que pode esperar. Um show que começa com Emoções e termina com Jesus Cristo e suas indefectíveis rosas. A cada nova apresentação, o ritual se repete. Senhoras e senhores, com seus filhos e netos, batem continência e emocionam-se, como se fosse a primeira vez.

Já boa parte, na verdade, a imensa maioria, da plateia de Robert Plant vai vê-lo por causa do Led Zeppelin, que ele deve executar com algum comedimento e novos arranjos, para frustração de muitos pais e filhos.

Roberto Carlos chega a BH após uma pequena turnê pelo interior de Minas: já se apresentou em Governador Valadares e Ipatinga, vai na terça a Montes Claros e na quinta a Divinópolis. Um dos cabeças de chave da quarta edição brasileira do festival Lollapalooza, Plant, antes de tocar no evento paulistano, sábado, se apresenta no Rio (terça) e em BH.

O brasileiro se apresenta com orquestra regida por Eduardo Lages, seu maestro desde o fim da década de 1970. O inglês vem à capital mineira com a Sensational Space Shifters, grupo que montou em 2012 com músicos de diversas nacionalidades.

O EP Esse cara sou eu, com quatro faixas, lançado em dezembro de 2012, é o trabalho mais recente de Roberto a trazer inéditas. A balada romântica que dá título ao trabalho, música-tema dos protagonistas do folhetim global Salve Jorge, vendeu em apenas três semanas um milhão de cópias.

Dois anos após assumir sua nova banda, Plant lançou um trabalho com ela: o álbum lullaby and...The Ceaseless Roar, que veio a público em setembro. Depois de anos vivendo nos EUA, Plant retornou à Grã-Bretanha. Nas 11 faixas, consegue unir o melhor dos mundos: o blues americano com o folk inglês e mais uma pitada de música marroquina.

O show mais recente de Roberto em BH foi há quase dois anos, no Mineirinho de sempre. Como veio por aqui logo na ressaca da explosão de Esse cara sou eu, houve até algumas novidades no repertório. Além desta, ainda cantou outra inédita, Furdúncio, a tentativa do Rei se aproximar das batidas eletrônicas, resultando num funk melody que também entrou em trilha de novela.

Plant debutou por aqui em outubro de 2012 para uma plateia de 10 mil pessoas no Expominas – o show desta semana será para a metade disto, dada a capacidade do Chevrolet Hall. Surpreendeu por apresentar oito canções do Zep, de um total de 15 no show. E foi surpreendido pela recepção da ruidosa plateia. “Não sou mais um cara jovem. Então, é uma surpresa quando faço certas coisas pela primeira vez.”

Senhores de seus respectivos reinos, os dois Robertos, a despeito da passagem do tempo e das incontáveis guerras, continuam imbatíveis. Cabe ao público escolher em qual das batalhas entrar.
 (RC/DIVULGAÇÃO)

Roberto Carlos
Show sábado, às 21h, no Mineirinho (Av. Antônio Abrahão Caram, 1.000, Pampulha, (31) 4003-1212). Ingressos: Arquibancada: R$ 120 e R$ 60 (meia); VIP lateral: R$ 170; VIP azul numerado: R$ 460.

Nascimento:
19 de abril de 1941 em Cachoeiro do Itapemirim

Início:

Em 1957, no Rio de Janeiro, com o grupo The Sputniks, que tinha como integrante Tim Maia

Primeiro sucesso:

Em 1963, com o compacto Splish splash/Parei na contramão. A segunda canção inauguraria sua parceria com Erasmo Carlos

Polêmicas:

É uma coleção. A mais conhecida delas é sobre biografias não autorizadas. Em 2006, Roberto proibiu, por meio de ação judicial, a circulação de Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César de Araújo. O escritor voltou à carga no ano passado, publicando O réu e o Rei, que conta todo o processo. Roberto também é um dos nomes fortes do movimento Procure Saber.

O que não faz:

Ao longo dos anos, parou de cantar algumas músicas (Negro gato, É proibido fumar), trocou a letra de outras (É preciso saber viver). Culpa do transtorno obsessivo compulsivo (TOC). O tratamento o fez voltar a cantar as “proibidas”. Menos uma, até agora: Quero que vá tudo para o inferno.

Influências:

João Gilberto, a quem imitou sem dó em seu álbum de estreia, Louco por você (1961), que acabou renegando. Até chegar ao ponto de se tornar único, Roberto bebeu na fonte das guarânias (o tom anasalado veio de Anísio Silva), na fase Jovem Guarda, bebeu descaradamente do rock inglês e teve como fontes Johnny Alf e Tito Madi.

Números:

Com 58 discos lançados no Brasil e 100 no exterior, o cantor soma 100 milhões de discos vendidos. É autor de 500 canções, a maior parte delas em parceria com Erasmo.
 (FADEL SENNA/AFP PHOTO)

Robert Plant
Show quinta-feira, às 21h20, no Chevrolet Hall (Av. Nossa Senhora do Carmo, 230, Savassi, (31) 4003-5588). Abertura com St.Vincent. Ingressos: 4 º lote: R$ 320 e R$ 160 (meia).

Nascimento:

20 de agosto de 1948 em
West Bromwich

Início:
Plant tinha 16 anos quando começou a chamar a atenção com apresentações em pubs ingleses. Antes de entrar no Led Zeppelin, em 1968, participou de algumas bandas, como a Band of Joy, que ele reativou no início desta década. Sua estreia em disco foi em compacto em 1966.

Primeiro sucesso:

Gravado em 30 horas pouco após a formação da banda, o primeiro álbum, Led Zeppelin, chegou no início de 1969 aos EUA. Rapidamente, a banda entrou no Top Ten.

Polêmicas:

Stairway to heaven teria sido um plágio de Taurus, música instrumental da banda Spirit, que dividiu palco com o Zep no fim dos anos 1960. O guitarrista Randy California reivindicou a autoria várias vezes. Como ele morreu em 1997, a história só voltou à tona em 2014, graças a um advogado.

O que não faz:

Cantar com o Led Zeppelin.
A última vez foi em 2007.

Influências:

O canto agudo e a voz rasgada, com larga extensão, foram desenvolvidos a partir de bluesmen como Otis Rush, Bukka White e Robert Johnson. Adicione ainda uma pitada de Elvis. A despeito das referências, a interpretação de Plant é só dele. Fez escola, influenciando Freddie Mercury, Axl Rose e Kurt Cobain.

Números:

 A venda da discografia do Led Zeppelin gira em torno de 300 milhões de cópias. O álbum mais vendido é o de 1971, o chamado Led Zeppelin IV, que reúne Black dog, Rock and roll, Stairway to heaven e Going
to California.


 Igual e diferente 

  Enquanto o brasileiro Roberto Carlos chega aos 73 anos mantendo a marca de 'não mudar', o britânico Robert Plant procura se reinventar desde a entrada no Led Zeppelin, há 47 anos

Mariana Peixoto

Roberto Carlos se apresenta no Mineirinho, em 2013 (Tulio Santos/EM/D.A Press)
Roberto Carlos se apresenta no Mineirinho, em 2013

Robert Plant se apresenta no festival Eurockeennes, na França, em 2014 (SEBASTIEN BOZON/AFP PHOTO
)
Robert Plant se apresenta no festival Eurockeennes, na França, em 2014


Ao longo das décadas de 1970 e 1980, o pesquisador e historiador baiano Paulo Cesar de Araújo assistiu a todas as temporadas anuais de Roberto Carlos. Ele o viu no Canecão, a histórica casa de shows carioca, vestido de palhaço em show criado pela dupla Miele e Ronaldo Bôscoli em 1978. Também não perdeu, no mesmo cenário, a temporada de Detalhes  (1987), em que o Rei trocava de roupas em pleno palco, para interpretar canções de fases mais antigas de sua carreira, como a Jovem Guarda.

“Roberto Carlos é um gigante no palco, em disco, na televisão. Por isso ele é um artista maior. É bom em tudo”, afirma Paulo Cesar, lembrando que, quando da chegada da TV no Brasil, houve artistas do rádio que não sobreviveram à tela. “E mesmo sendo bom em tudo, Roberto é um artista do palco, que ele começa a frequentar desde que entra num auditório, aos 9 anos.”

Paulo Cesar já soma 25 anos de dedicação a Roberto Carlos. Começou em 1990 sua pesquisa, que resultou na biografia Roberto Carlos em detalhes, lançada em dezembro de 2006. Roberto entrou com ação contra Paulo Cesar. Caso notório da problemática que cerca a publicação de biografias não autorizadas no país, a obra foi proibida, após decisão judicial envolvendo o cantor, o biógrafo e a editora Planeta, em fevereiro de 2007. Onze mil exemplares foram recolhidos das livrarias na época.

No ano passado, o biógrafo lançou O réu e o Rei (Cia. das Letras), sobre os bastidores de uma disputa que está chegando a uma década. Paulo Cesar espera que uma decisão no Supremo Tribunal Federal possibilite a liberação de seu livro. “Não tem mais cabimento essa proibição. Só lamento o próprio Roberto não tomar essa iniciativa. Como um artista vai, aos 73 anos, carregar a pecha de censor? Isto depois de uma carreira tão linda.”

Há tempos criticado por não se reinventar, Roberto transformou em letra e música (Fera ferida) sua decisão de não mudar. Já para o britânico Plant, a solução é mudar sempre. Sua discografia solo tem início em 1982, dois anos após a dissolução do Zep. Plant já lançou uma dúzia de álbuns, com diferentes formações, desde então.

“A obra solo dele contribui para o desenvolvimento da música popular. É uma tentativa de sofisticar a música atual, onde não existem novos gênios à altura dos grandes do passado, com poucas exceções, como Thom Yorke, do Radiohead”, afirma o jornalista e crítico carioca Jamari França.

Para o jornalista e escritor carioca André Barcinski, a ousadia de Plant vem desde a época do Led Zeppelin. “Foi uma das primeiras bandas do hard rock a ter influência de música indiana, africana. Como estudiosos da música de outros lugares, essa extensão foi natural tanto no trabalho do Page quanto do Plant. Só que o vocalista levou isso mais a sério.”

Independentemente do formato em que se apresenta, Plant terá sempre, na opinião dos dois jornalistas, um lugar no pódio da história do rock. “Seu timbre privilegiado, de grande alcance, serviu de inspiração para milhares de roqueiros. E em termos muscais, o Led influenciou mais do que Beatles ou Rolling Stones, devido ao talento de seus músicos”, afirma França.

Já Barcinski chama a atenção para as características do canto de Plant, que o fazem único. “Ele tentou fazer do rock algo mais dramático. O Led Zeppelin sempre foi influenciado por blueseiros antigos. Só que o vocal do Plant tem uma inflexão teatral. Ouvindo as músicas, percebe-se que ele está ou sofrendo ou apaixonado. Ao adicionar um pouco de drama, ele contribuiu para que a banda se tornasse tão popular.”