sábado, 20 de julho de 2013

Oncologistas e matemáticos unem forças

Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
O tratamento do câncer está prestes a sofrer uma reviravolta. Para melhor. Matemáticos especializados em teoria da evolução e biologistas moleculares demonstraram que o tratamento simultâneo com duas ou mais drogas pode levar ao desaparecimento de tumores antes incuráveis. A lógica que permitiu o controle do HIV talvez funcione para eliminar tumores.
Há décadas sabemos que o câncer é causado pelo aparecimento de células com mutações em genes que controlam sua divisão. Essas mutações foram descobertas na década de 1980, mas demorou 30 anos para surgirem drogas capazes de matar de maneira específica células que carregam essas mutações.
Nos últimos anos a quimioterapia foi revolucionada pelo uso dessas drogas. Quando usadas em tumores que possuem a mutação para a qual foram desenvolvidas, matam rapidamente as células e o tumor diminui rapidamente. Mas, com o sucesso, veio a frustração.
Em praticamente 100% dos casos o tumor volta, pois surgem células com novas mutações, resistentes à droga já usada. Um segundo "round" de tratamento é iniciado, com outra droga, e ele inicialmente funciona. Mas o tumor volta, agora com uma terceira mutação, resistente às duas primeiras drogas. Se existir uma droga para a terceira mutação, um novo ciclo de químio é iniciado. A guerra continua até o médico não dispor de mais armas. Aí o câncer vence. O resultado é que a sobrevida do paciente aumenta, mas a taxa de cura não se altera.
Nos últimos anos, para desespero dos médicos, foi descoberto que já no tumor original pode estar presente um número pequeno de células resistentes à primeira droga. Em outros casos, as células resistentes surgem durante o tratamento. Essas descobertas levaram muitos oncologistas a considerar a possibilidade de utilizar mais de uma droga já no inicio do tratamento. Mas essa ideia gerou muita discussão: o custo do tratamento aumenta e o médico deixa de ter uma segunda "arma" a sua disposição caso perca a primeira batalha.
A novidade é que matemáticos especializados em modelagem de processos evolutivos se associaram a biologistas moleculares que estudam as mutações que causam o câncer e sua resposta aos novos quimioterápicos. O objetivo foi construir um modelo matemático capaz de descrever o surgimento de novas mutações nas células presentes em um tumor e prever como as diversas populações (cada uma com um grupo diferente de mutações) se comporta quando submetida a diversas combinações de quimioterápicos.
Os modelos foram construídos e calibrados usando dados obtidos durante o tratamento de 20 pacientes com tumores sólidos como melanomas, câncer de cólon e de pâncreas. A velocidade com que as células se dividem, o número de células presentes, a frequência de cada tipo de célula, a taxa de surgimento de mutações novas e a velocidade com que as células morrem durante cada tratamento foram determinadas experimentalmente e colocadas no modelo.
Em seguida, o modelo foi usado para prever o que acontecia com os pacientes ao longo do tempo quando submetidos a diferentes tratamentos. Os resultados demonstraram que o modelo explica e prediz o desenvolvimento da doença.
Validado o modelo, ele foi usado para entender qual a melhor combinação de drogas, em que ordem devem ser administradas e como tumores de diversos tamanhos e composição respondem aos diferentes tipos de combinação. Os resultados são impressionantes. Aqui vai um exemplo. Se o paciente tiver no seu corpo um melanoma com 9,8 x 1010 células (cem bilhões de células cancerosas), espalhadas por oito metástases, a chance de curar esse paciente com tratamentos sequencias, usando uma droga de cada vez, é zero. Mas, se forem usadas duas drogas simultaneamente, a chance de cura sobe para 88%. E esse resultado se repete com diversos tipos de tumores e drogas. O uso combinado de mais de uma droga, já na primeira batalha, parece aumentar muito as chances de cura.
Esse modelo torna possível prever o que deve ocorrer se diferentes estratégias de tratamento forem utilizadas. Isso facilita o planejamento de novos estudos e permite adequar a estratégia para cada paciente.
Nos próximos anos é provável que esse modelo seja testado e aperfeiçoado, o que seguramente permitirá planejar e acompanhar de maneira científica o tratamento de cada tumor, aumentando a taxa de sucesso. No curto prazo, os resultados preliminares provavelmente vão convencer muitos médicos a testar protocolos que utilizam duas ou mais drogas simultaneamente logo no início do tratamento.
O uso de um coquetel de drogas foi o que permitiu o controle do HIV, o vírus que causa a aids. E a lógica por trás de seu uso é exatamente a mesma.
Esses modelos só puderam ser desenvolvidos porque matemáticos foram financiados durante décadas para construir modelos capazes de estudar processos tão diferentes como o altruísmo em populações, o problema do dilema dos prisioneiros e o surgimento de processos cooperativos nas sociedades. É um exemplo da importância de se financiar projetos que aparentemente têm pouco uso prático. Quando menos se espera, esses conhecimentos podem revolucionar algo tão prático e importante como a cura do câncer.   * MAIS INFORMAÇÕES: EVOLUTIONAY DYNAMICS OF CÂNCER IN RESPONSE TO TARGETED COMBINATION THERAPY. ELIFE 2013;2:E00747   É BIÓLOGO

Alexandre Vidal Porto

folha de são paulo
Democracias de mentira
Democracia que não admite dissenso é só uma tirania eleita. Conhecemos várias, e nenhuma delas é bonita
Ser minoria é complicado. Não deveria, mas é. Os alunos de uma escola coreana em Kyoto aprenderam essa lição quando um grupo ultranacionalista japonês organizou protestos contra a utilização por eles, alunos, do parque adjacente à escola.
Para os manifestantes, o parque era só para japoneses. Filhos de estrangeiros não deveriam usá-lo.
Isso foi em 2008. Desde o começo deste ano, porém, a frequência das ações dos ultranacionalistas japoneses aumentou. Recentemente, houve manifestações em que se exigia a saída dos estrangeiros do país, sob pena de serem "massacrados".
A virulência fez com que o parlamentar Yoshifu Arita apresentasse projeto de lei criminalizando o discurso de ódio contra minorias.
A iniciativa do parlamentar é positiva. O nível da proteção estendida às minorias é indicativo da qualidade de um regime democrático.
O membro de uma minoria, seja ela étnica, política, religiosa ou sexual, tem direitos que não podem ser ameaçados ou suprimidos.
Um regime democrático que desrespeita os direitos das minorias se enfraquece. Foi o que aconteceu com Mohammed Mursi, o primeiro presidente eleito do Egito, deposto por militares no começo do mês.
Mursi e seu grupo político, a Irmandade Muçulmana, viram nas eleições uma oportunidade para impor ditames religiosos sobre toda a população, limitando os direitos individuais de quem não pensava como eles. Acabaram depostos, em resposta a milhões de pessoas que foram às ruas pedir sua saída.
Para quem controla a máquina estatal, suprimir minorias é fácil. A história está cheia de exemplos de líderes que, ao chegarem ao poder, governaram autocraticamente, desprezando visões oposicionistas.
Alguns, como Mursi, haviam sido eleitos por voto popular. Nesses casos, quem perde é a democracia.
Líderes eleitos governam para todos --para os que com eles concordem ou não. Achar que as urnas asseguram o direito de ignorar os eleitores derrotados é autoritário.
Trata-se de visão simplista, convenientemente deturpada, que considera a existência de eleições fator suficiente para conferir caráter democrático a um regime político.
Acontece que, para o verdadeiro exercício da democracia, eleições são só o começo. É preciso, também, o respeito a uma ordem constitucional pluralista, imprensa e instituições livres, e um sistema judiciário que aplique a lei com equidade.
Sobretudo, democracia pressupõe garantia aos direitos individuais. Sem isso, não adianta querer posar de democrático.
A intransigência que inviabilizou o governo de Mohammed Mursi e aleijou a democracia egípcia pode ser observada em diversos lugares.
Líderes eleitos com instintos autoritários parecem acreditar que a vitória alcançada nas urnas lhes confere permissão para suprimir direitos aos que a eles se opõem.
Com o objetivo de se eternizarem no poder, destroem o próprio sistema que os habilitou a governar.
Democracia que não admite dissenso é só uma tirania eleita. Conhecemos várias, e nenhuma delas é bonita de se ver.

    Walter Ceneviva

    folha de são paulo
    Francisco e o direito canônico
    Além de ser chefe de sua igreja, o papa é soberano do Estado do Vaticano, assim reconhecido pela ONU
    A visita próxima do papa Francisco, primeiro desse nome, primeiro sul-americano e, além do mais, argentino, sugeriu o tema. As questões da segurança do papa predominam no noticiário, mas, nesta coluna, em termos jurídicos, parece oportuno examinar no diálogo com o leitor o debate suscitado quando se pergunta como e quando aplicar o direito canônico, em face do direito brasileiro.
    A questão cabe porque prepondera, em nosso país, a liberdade religiosa e de todos os cultos. É assegurada no sexto e no sétimo incisos do art. 5º da Constituição. Garantem inviolabilidade de crença, livre exercício dos cultos, proteção de locais de culto e liturgias, bem como a assistência religiosa a entidades civis e militares de internação coletiva. Logo, é livre a manifestação de alegria ou de contrariedade, de cada brasileiro, com a visita.
    O oitavo inciso do art. 5º impede que alguém seja privado de direitos por motivos de crença religiosa, o que não significa a liberdade de ofender a crença alheia ou os representantes dela.
    As perguntas óbvias sobre disposições constitucionais, que parecem dizer o contrário, têm lembrado feriados religiosos que privilegiam denominações cristãs e casamento religioso com efeitos civis, celebrados por dignitários das religiões reconhecidas. A norma republicana de 1891 definiu a liberdade religiosa, inexistente no Império --quando só era admitida a religião católica, sendo proibidos até templos de outras denominações. Não subsiste no presente.
    Voltando ao casamento religioso, para ficar no exemplo mais característico da interação dos direitos constitucional e religioso (por exemplo, na sagração de pessoas das mais variadas correntes religiosas, como titulares da correspondente pregação), invoca a possibilidade de se integrar o direito canônico com o direito comum. A denominação "canônico", porém, traz no Brasil a marca exclusiva da Igreja Católica, não aplicável a cidadãos de outras crenças. Na Inglaterra, o "canon" se liga à Igreja Anglicana.
    Também podem ser lembrados outros exemplos de religiosos de diversas correntes da fé, alheios ao direito canônico.
    A garantia do pluralismo religioso é uma das belezas da verdadeira democracia, até na admissão integral do ateísmo, daquele que nega toda credibilidade a um ser supremo, que nós chamamos Deus. Voltando aos papas: as homenagens que lhes serão prestadas no Brasil compõem tratamento constitucional, porque, além de ser chefe de sua igreja, Francisco é também soberano do Estado do Vaticano, assim reconhecido pela Organização das Nações Unidas.
    Em síntese: o direito canônico não se liga, não se subordina nem é subordinado ao direito comum. A conclusão inclui o tratamento ao papa em visita, por isso mesmo integralmente apropriadas as homenagens oficiais prestadas ao Estado Vaticano.
    O leitor perguntará: como fica o direito? A resposta dos estudiosos é variada. Os doutrinadores católicos veem no direito canônico a expressão dos termos em que o cristianismo o sustenta, com valores transmitidos a todos os católicos. Os não católicos discordam em grande parte, como é natural. É de lembrar a origem comum, no Velho Testamento, de cristãos, islâmicos e judeus.
    Enfim, não há solução para uma paz definitiva.

    LIVROS JURÍDICOS
    PILHAGEM
    AUTORA Ugo Mattei e Laura Nader
    EDITORA WMF Martins Fontes (0/xx/11/3293-8150)
    QUANTO R$ 74 (450 págs.)
    "Quando o Estado de Direito é Ilegal" é o subtítulo desta obra imperdível, denominada "Plunder", no original. Para os autores (italiano e americana) significa "propriedade roubada por meio de fraude ou de força", encontrada no chamado Estado de Direito. A pilhagem, fenômeno do neoliberalismo é roubo pelos governos.
    PEDIDO DE SUSPENSÃO DE DECISÕES CONTRA O PODER PÚBLICO
    AUTORA Caio Cesar Rocha
    EDITORA Saraiva (0/xx/11/3613-3344)
    QUANTO R$ 112 (250 págs.)
    Gilmar Mendes, no prefácio, lembra que a suspensão dos efeitos de decisão proferida é "uma forma de precaução em face da morosidade da Justiça". Dissertação percorre o caminho das alternativas possíveis, até a suspensão na nova lei do mandado de segurança.
    LIMITES OBJETIVOS E EFICÁCIA PRECLUSIVA DA COISA JULGADA
    AUTOR Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes
    EDITORA Saraiva
    QUANTO R$ 58 (154 págs.)
    Tese de doutorado (Fadusp) avança de elementos básicos do processo à sentença e sua disciplina, em três capítulos (coisa julgada, tutela jurisdicional e eficácia preclusiva). Sua referência bibliográfica apoia estrutura e o objeto do processo. Afasta limite da coisa julgada do dispositivo da sentença.
    SEGURANÇA JURÍDICA E CRISE PÓS-MODERNA
    AUTOR Ricardo Dip
    EDITORA Quartier Latin (0/xx/11/3101-5780)
    QUANTO R$ 56 (159 págs.)
    Para Renato Nalini, quem assimilar a lição de Dip terá "receita para um novo paradigma profissional do direito", desde crise do direito atual às questões do constitucionalismo. Esgota o binômio segurança jurídica e juridicidade. Sete páginas conclusivas precedem valioso apêndice sobre o niilismo jurídico pós-moderno.
    CURSO DE PROCESSO PENAL DIDÁTICO
    AUTOR Levy Emanuel Magno
    EDITORA Atlas (0/xx/11/3357-9144)
    QUANTO R$ 124 (928 págs.)
    O adjetivo "didático" bem qualifica a obra e o percurso do autor, tanto para o estudante, quanto para o candidato a concurso, a contar das notas introdutórias.
    DIREITO DISCIPLINAR
    AUTOR Léo da Silva Alves
    EDITORA Edipro (0/xx/11/3107-4788)
    QUANTO R$ 65 (288 págs.)
    "Guia de controle da disciplina" para concursos jurídicos tem, tratado por um especialista, desde visão do ambiente processual, situação a enfrentar, às perguntas e respostas.

      Norueguesa denuncia ter sido estuprada em Dubai e é julgada

      folha de são paulo
      Jovem foi condenada por ter feito sexo fora do casamento no país
      DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIASA norueguesa Marte Deborah Dalelv, 24, foi condenada a um ano e quatro meses de prisão pela Justiça de Dubai após denunciar ter sido vítima de estupro durante viagem aos Emirados Árabes Unidos. Ela foi condenada por fazer sexo fora do casamento, atentar contra a decência e ingerir álcool.
      A sentença provocou indignação na Noruega. O governo do país prometeu apoiar judicialmente a jovem.
      "A sentença em Dubai [...] é contrária a nosso sentido de justiça. Daremos a ela apoio no processo de apelação", escreveu o chanceler norueguês, Espen Barth Eide.
      Dalelv fez a denúncia em março, quando estava em viagem de negócios pelo país e após ir a uma festa.
      De volta ao hotel, sob os efeitos do álcool, ela foi levada por um companheiro ao quarto dele, em vez do dela. Segundo ela, o estupro ocorreu no local.
      A jovem decidiu prestar queixa, mesmo sendo advertida de que a acusação não tinha chances de prosperar.
      Longe de conseguir o tratamento que esperava, a vítima passou vários dias em uma cela, até conseguir entrar em contato com parentes e o consulado norueguês. Graças ao empenho do consulado, conseguiu ser libertada para esperar o julgamento --e agora a apelação.

        Painel - Vera Magalhães

        folha de são paulo
        Occupy Leblon
        Aliados de Sérgio Cabral (PMDB) veem uma série de erros do governador do Rio na negociação com os manifestantes que ocupam a frente de seu prédio, no Leblon. O principal deles teria sido a retirada de ativistas, o que fez com que a ocupação recrudescesse. Para tentar reverter o desgaste, a ordem no governo é apontar a participação de criminosos nos protestos. Serviços de inteligência da polícia teriam detectado que até ex-policiais vinculados a milícias se infiltraram nos atos.
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        Zen A aliados, Cabral declarou que é preciso manter a serenidade diante de provocações, mas manifestou preocupação com os danos que atos de violência podem causar à imagem do Rio.
        Quem avisa... Insistindo na vulnerabilidade da segurança do papa Francisco ao Brasil, o governo recomendou ontem pela segunda vez a emissários do Vaticano trazer o papamóvel blindado ao país. A proposta foi recusada.
        Ansiolítico 1 Pesquisa encomendada pelo governo, com 2.000 entrevistas, mostrou aprovação ao programa Mais Médicos, lançado na semana passada e bombardeado por entidades do setor.
        Ansiolítico 2 Segundo a pesquisa, 78% aprovam a criação do segundo ciclo, pelo qual estudantes de medicina têm de atuar dois anos no SUS antes de se formar. Já a contratação de médicos estrangeiros é mais polêmica: 51% são a favor e 45% contra.
        Padrão global Usando a hashtag de "Amor à Vida" nas redes sociais, médicos contrariados com o Mais Médicos pedem hospitais do mesmo nível de excelência da instituição do personagem Cesar, vivido por Antonio Fagundes na novela da Globo.
        Alfinetada Da ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil), sobre a comparação feita por peemedebistas entre ela e a Barbie: "Achei graça porque a boneca é mais querida e popular que muito deputado".
        Vem... Deputados petistas tentarão aprovar uma moção na reunião de hoje do diretório nacional do partido para retirar Cândido Vaccarezza (PT) da coordenação do grupo de trabalho da reforma política na Câmara.
        ...pra rua A bancada alega que o PT precisa insistir na realização de um plebiscito ainda este ano, o que não é o foco da comissão. Até ontem, 40 dos 89 deputados do partido haviam assinado nota contra a permanência de Vaccarezza no grupo.
        W.O. Nenhum deputado do PMDB prestigiou a visita de Dilma Rousseff ao Ceará, na quinta-feira. A bancada, afinada com o líder Eduardo Cunha (PMDB-RJ), boicotou deliberadamente a agenda.
        Álibi O senador Eunício Oliveira (CE) justificou a ausência pela necessidade de acompanhar a filha em exames médicos nos EUA.
        Sintonia... Em conversa ontem, Dilma e Joaquim Barbosa voltaram a falar de reforma política e da simpatia de ambos por uma lei de iniciativa popular sobre o tema, para valer ainda em 2014.
        ...fina Segundo interlocutores, o presidente do Supremo Tribunal Federal defende que um eventual projeto trate do recall, em que a sociedade poderia retirar o mandato de políticos eleitos.
        Agenda Integrantes do PPS receberam notícia de que a assessoria técnica do TSE concluiu um parecer sobre a distribuição de tempo de TV e fundo partidário para novas siglas --pendência para concretizar a fusão com o PMN.
        Numa nice PPS e PMN dizem que a distribuição de cargos no MD não é entrave à fusão e negociam apenas o prazo de registro da sigla.
        com ANDRÉIA SADI e BRUNO BOGHOSSIAN
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        TIROTEIO
        "Se Lula lesse jornal, saberia que o PSDB propôs o fim da reeleição para 2018. Aliás, quem tem medo da Dilma em 2014 é o PT."
        DO LÍDER DO PSDB NA CÂMARA, CARLOS SAMPAIO (SP), sobre o ex-presidente ter dito que os tucanos querem o fim da reeleição por medo de enfrentar Dilma.
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        CONTRAPONTO
        Meu pirão primeiro
        Em reunião da cúpula paulista do PMDB nos anos 80, o então deputado Aloysio Nunes Ferreira apresentou um pedido de intervenção no diretório do partido em um pequeno município do Estado. Para isso, precisou telefonar para o presidente nacional da sigla, Ulysses Guimarães.
        Constrangido por incomodar o dirigente com um assunto aparentemente irrelevante, Aloysio pediu desculpas e disse que tomaria as providências. Ao perceber que a cidade em questão tinha lhe dado muitos votos na eleição anterior, Ulysses protestou:
        --Nesse caso, eu peço vista! Vamos decidir com calma!

          Francisco propõe um catolicismo místico e crítico do consumismo - FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO

          folha de são paulo
          ANÁLISE
          SE CRISTO NÃO É NECESSÁRIO, SEM DÚVIDA É MELHOR FICAR COM A ESPIRITUALIDADE FÁCIL DA PÓS-MODERNIDADE
          FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETOESPECIAL PARA A FOLHATalvez poucos reconheçam, mas duas coisas estão em jogo na primeira viagem internacional do papa Francisco, para a Jornada Mundial da Juventude: o legado de João Paulo 2º e Bento 16; e o sentido da opção pelos pobres e da crítica à sociedade de consumo para o futuro da igreja.
          Se tomarmos o "Documento de Aparecida", que leva a marca clara de Bergoglio, apesar de ser um texto dos bispos latino-americanos, e as colocações iniciais de Francisco, concluiremos que o papa vê os temas e o legado dos pontífices anteriores em sintonia com a opção pelos pobres --ainda que deixe clara a necessidade de uma conversão à pobreza no interior das cúpulas da Igreja Católica.
          Dos papas anteriores, Francisco incorpora a necessidade de um catolicismo místico, centrado no encontro com Cristo --um dado espiritual que muda a vida do fiel. E particularmente Bento 16 dedicou sua pregação a mostrar que o catolicismo reduzido a doutrina moral ou a organismo político perde seu sentido. Francisco assume integralmente este discurso ao dizer, logo no início de seu pontificado, que a igreja sem Cristo corre o risco de se tornar uma "ONG piedosa".
          Este discurso cristocêntrico, que dialoga com a crise de sentido e as angústias do indivíduo na sociedade atual, determina a razão de ser da igreja no século 21.
          Afinal, se Cristo não é necessário, sem dúvida é melhor ficar apenas com o compromisso ético e social das pessoas de boa vontade e com a espiritualidade fácil da pós-modernidade.
          Em todo o mundo, a militância da maioria dos movimentos católicos jovens compreendeu essa questão. Mas ela ficou distante de grande parte da população, que continuou a ver a pregação do papa como defesa da moral conservadora.
          No conclave, os cardeais viram a simplicidade e o compromisso com os pobres de Bergoglio como aquilo que faltava para quebrar esta dificuldade de comunicação que vinha enfrentando. Até aqui sua opção parece ter sido mais que acertada.
          Por outro lado, o compromisso de Francisco com os pobres relança a igreja nas questões sociopolíticas dos anos 60 e 70. Uma volta já presente na "Caritas in veritate", de Bento 16. Mas isto não pode significar um retorno nostálgico a um passado que não existe mais, pois a pobreza continua a desafiar a consciência de todos, mas o contexto político mudou muito nestas décadas.

          Ricardo Mendonça

          folha de são paulo
          Reaproximação
          O ex-presidente Lula notou uma tendência. No "New York Times", escreveu que o PT precisa recuperar as ligações com os movimentos sociais. Não será fácil. Tome como exemplo um segmento específico, combate ao trabalho escravo, área em que a sigla reinava sozinha.
          Assim como na política de transferência de renda, o marco inicial dessa ação não é petista. Foi em 1995 que FHC reconheceu oficialmente o problema diante da ONU. Nascia o grupo de fiscalização móvel, eficiente instrumento para libertar trabalhadores.
          Mas, tal qual o Bolsa Família, foi sob Lula que a política ganhou corpo e alcance. Já em 2003, o total de pessoas resgatadas saltou para 5.223, mais que o dobro do recorde tucano. Em oito anos, foram 33.287 libertações, seis vezes mais que nos oito anteriores.
          Além das operações, foi criada a lista suja de exploradores, permitindo que a circulação de mercadorias de origem escravagista fosse exposta. Bancos cortaram empréstimos. Empresas passaram a romper com fornecedores delituosos. Até o ultracapitalista Walmart aderiu.
          No fim da gestão Lula, porém, ocorreu uma tentativa de enfraquecimento da política. A Advocacia-Geral da União fez um acordo inédito para impedir um retorno da Cosan à lista suja. Maior produtora de álcool do país, ela era a estrela da campanha do etanol.
          Em 2012, novo susto. Ativistas perceberam uma articulação no governo para ajudar a construtora MRV --estrela do Minha Casa, Minha Vida-- a sair do cadastro. Com uma liminar, a firma acabou não precisando do favor. Nesse caso, o Judiciário foi rápido.
          Enquanto isso, em São Paulo, algo novo surgia. O deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB) aprovou uma lei que cassa inscrição estadual de empresa flagrada. Na prática, inviabiliza sua atuação. Para os entendidos, é a ação mais ousada contra o escravismo hoje. E o fim da primazia petista no setor.
          Para regulamentar a lei, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, aproveitou um evento do Judiciário e de ONGs sobre o tema. É significativo que, confirmada no programa, a ministra petista Maria do Rosário (Direitos Humanos) não tenha aparecido.
          Esse tipo de inversão em área que o PT surfava sozinho não é inédito. Ambientalistas e militantes da causa indígena desembarcaram junto com Marina Silva. Entre os gays, Marta Suplicy foi trocada pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) como porta-voz. Sobre drogas, a nova referência é FHC.
          Para a reaproximação que Lula quer, ativistas dirão que o petismo deve rever a opção pelo desenvolvimentismo a qualquer custo e certas alianças "pela governabilidade". Alguém acredita nisso?

            Obra do escritor e compositor Luís Capucho revigorou a literatura gay brasileira - Paulo Bentancur‏

            Obra do escritor e compositor Luís Capucho revigorou a literatura gay brasileira. Os três romances do capixaba emocionam pelo lirismo brutal e por sua apurada linguagem 


            Paulo Bentancur

            Estado de Minas: 20/07/2013 


            No começo de 1990, Luís Capucho despontava como um compositor dos mais desafiadores, capaz de chamar a atenção de Ney Matogrosso e Nana Caymmi, e de levar Cássia Eller a gravar sua canção Maluca. Gravado em 1995 no extinto Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro (voz e violão, mais intérprete que cantor no restrito sentido técnico), seu show seria aparição meteórica se o coma a que foi levado por uma toxoplasmose em consequência do vírus HIV o impedisse de voltar à tona e de gravar dois CDs, Lua singela (2003) e Cinema Íris (2012), e ainda publicar três romances, Cinema Orly (Interlúdio, 1999), Rato (Rocco, 2007) e Mamãe me adora (Vermelho Marinho, 2012). Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, em 1962, o capixaba Capucho reside em Niterói há 37 anos. Artista na linha da geração beat, dispensando inclusive selos como esse, o escritor, com apenas três narrativas longas (novelas, para sermos específicos), sacudiria a bem comportada literatura gay, se compararmos escritores como os que a ela se filiam, mesmo em suas diversidades.

            Cinema Orly Quando estreou na ficção com Cinema Orly, Capucho não pediu licença ao literato que poderia ser, e fez de sua condição extrema verdade humana sem contemplações, um espetáculo despido de qualquer artifício – sobretudo se considerarmos que o gênero atende todas as vozes (prosa, poesia, teatro) e, no entanto, raramente consegue se despir de uma afetação inversamente proporcional à literatura feita por machos que pensam em fêmeas durante 24 horas por dia. Esse surpreendente escritor arquitetou sua narrativa como se a beleza fosse o blefe que, aliás, a beleza costuma ser. Um capricho, uma convenção confortável.

            Bem ao contrário, em Cinema Orly temos afinal uma espécie de Jean Genet dos trópicos. E para que se ampliem as correlações estéticas, um Rabelais (1494 –1553) não glutão, mas luxurioso, com uma perversão que quase não seria exagero chamar de santa, adorando falos num cinema pornô onde os tipos mais estranhos do Rio de Janeiro, em plena Cinelândia, vão fugir do tédio e da loucura para se entregar ao que parece vício, mas antes de mais nada é libertação. Ninguém ali está de brincadeira. Mentira alguma encontrará espaço.

            Do aparente voyeurismo parte-se para a pegação, ninguém é de ninguém e nem por isso todos são de todos. Há rígidos códigos de conduta, e quem os rege é a legitimidade que só o desejo individual sustenta. Dessa forma, Cinema Orly tem a tensa e densa atmosfera de um inferno. Entretanto, é o paraíso do qual o frequentador quase diário não consegue se afastar.

            O que marca, fundamentalmente, nesse romance de estreia é a linguagem. Luís Capucho não quer nem saber. Diz tudo o que sente e pensa com todas as letras, todas as palavras, numa espécie de acintoso despudor que, na forma e no fundo, nada mais é que a poesia (ainda que negra) de uma prosa que goza em dissolver-se no mais brutal dos lirismos. Estilo de quem, por absoluta coragem, não tem razões para usar o freio numa hora tão reveladora.

            Rato Morando numa cabeça de porco, expressão carioca para cortiço, o narrador e a mãe (no segundo volume, elementos autobiográficos são tão evidentes que até nos parece frágil dar-lhe o nome de literatura de confissão) foram deixados administrando uma casa onde se alugam quartos para os sujeitos menos recomendáveis. A mãe de Luís – sim, eis uma autoficção e, assim, o narrador só pode mesmo ter o nome do autor e viver, talvez com algumas outras palavras, o que este vive –, a mãe de Luís, fundamental que se frise, é uma figura quase anódina não fosse a generosidade de uma alma jamais invasiva. O protagonista se perturba, página a página, ante a visão de homens que espia ensaboando-se no banheiro e, até nesse caso, sente o peito estilhaçar-se ainda que frente a figuras decadentes, distraídas, ausentes mesmo, desde que possa entrever nelas – ou adivinhar, pela fantasia – um sexo talvez disponível.

            Trata-se do melhor livro de Capucho, o mais bem-estruturado e escrito. Nele, a fluência da linguagem coleia menos, segue rumo mais direto. Nele, enfim uma relação de namoro se dá. O afeto não se perde na milleriana disposição esfaimada para o gozo (o Henry Miller dos anos 1960). Em Cinema Orly, os frequentadores anônimos na penumbra do cinema eram chamados de répteis. Aqui, são ratos que ocupam a cabeça de porco até que mãe e filho acabem enxotados do próprio negócio e vão morar num porão cedido pela compreensão de um amigo.

            Ironicamente, nesse livro não se faz presente nenhuma espécie de ressentimento. Os que levam a vida ou a vida a levar aqueles que nela estão à mercê, cavando suas oportunidades, são da mesma natureza. Ratos. Uma ninhada. Mas só um deles tem voz para contar.

            Mamãe me adora No terceiro e mais recente livro de Capucho, o drama da Aids, do coma sofrido e do qual se recuperou não sem sequelas (mancando de uma perna, a dicção comprometida), os limites entre o que é narrado e as vivências do escritor definitivamente provam que estavam dissolvidos desde o livro de estreia. Mais poético que Rato, mais liberto que Cinema Orly, Mamãe me adora é novela para a qual é fundamental ir-se de alma aberta. Atravessa-a, quase metade dela, uma viagem do Rio de Janeiro a Aparecida do Norte. A mãe fez 75 anos. O filho nota os primeiros sinais de cansaço dela, sua decadência física. Talvez familiarizado com a própria, tornou o imenso amor que sente pela mãe uma forma de força adicional que, esta sim, o ajuda a auxiliá-la com o peso de uma existência, quando sempre quem o carregou foi ela – e o peso dos dois.

            A descrição da viagem de ônibus: os inúmeros fatos que a compõem, desde os passageiros, o motorista sedutor, a mãe e seu alheamento crescente, os campos em redor, as cidades por que passam à margem, as rodoviárias com pausas para eventuais lanches, e destacadamente a figura de Nossa Senhora Aparecida, encontrada no mar por pescadores e, desde então, figura mítica ligada às águas.

            Quando ao final chegam à cidade, descem antes da última parada para acompanhar a procissão. A mãe leva um tombo. Nem o narrador nem o leitor dão-se conta; tudo parece tão somente um acidente de percurso, uma trapalhada em meio à multidão somada à sensibilidade, tocada agora de outra forma.

            No hotel, destinados ao quarto dos fundos, são convidados por um casal com quarto de frente para a catedral e os romeiros. Assistem a tudo. Até a manhã seguinte, quando, sem tomar o café da manhã, a mãe inapetente respeita apenas o horário de seus remédios. A seguir, vão ver a imagem da santa. Banhados de luz que naturalmente é filtrada pelos vitrais, mas que, para Luís e a figura materna, representa a aura de algo mais. Ele declara acreditar em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
            Em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.

            A mãe lhe pede que compre umas velas. Ele sai apressado. Na volta, já a encontra agonizante, os olhos sem vida. Pede ajuda, numa das cenas mais marcantes da literatura contemporânea. O impacto reside na cena propriamente, e não caberia aqui reproduzi-la.

            Lida em retrospecto, a sensação que nos dá é que a literatura de Capucho se liquefez. Que ele buscou sempre o sumo onde tantos outros inventaram amores, deuses, tramas e até personagens que os superassem. Luís declarou em dois de seus três livros: “Sou um fodido”. Despido de medo, enriqueceu uma literatura acovardada, viciada em se esconder em performances por meio das quais sempre acreditou dizer enfim a sua verdade. Não era.


            Paulo Bentancur é escritor e crítico


            CONFIRA

            emc 7R112
            Interlúdio/reprodução

            . CINEMA ORLY
            Editora Interlúdio
            144 páginas, R$ 56


            emc 7R113
            Vermelho Marinho/reprodução

            . MAMÃE ME ADORA
            Editora Vermelho Marinho
            120 páginas, R$ 36

            emc 7R114
            Rocco/reprodução

            . RATO
            Editora Rocco
            128 páginas, R$ 26


            Distribuição do autor. Informações: luiscapucho11@gmail.com

            João Paulo - Cada vez mais gauche ( Drummond)‏


            Cada vez mais gauche 

            Estado de Minas: 20/07/2013 



            Carlos Drummond de Andrade,  em bronze, observa a Copacabana do século 21

            Imagine que você vai ler agora, pela primeira vez, o livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), publicado originalmente em 1930, quando o poeta tinha 28 anos. O desafio pode se tornar uma forma interessante de avaliar a universalidade da poesia: afinal, o que tinha sentido há mais de 80 anos ainda tem o que nos dizer hoje?. A primeira coletânea de poemas de Drummond, Alguma poesia, acaba de ser relançada no projeto das obras completas que vem sendo realizado pela Companhia das Letras. Como os demais volumes, o trabalho é excelente na fixação do texto, na oferta de imagens da época e no estudo crítico, desta vez de Eucanaã Ferraz, que destaca o humor peculiar de Drummond, sempre um exercício de inteligência.

            O livro inaugural do poeta, a despeito de críticos que gostam de separar a obra em fases mais psicológicas, mais formais ou mais políticas, chega ao leitor exibindo a maturidade inacreditável para um homem tão jovem. O autor tem o que dizer sobre o mundo, sobre a poesia e, sobretudo, sobre si mesmo. É uma estreia espantosa, principalmente no momento de consolidação do primeiro modernismo, ao qual o jovem chega e se emparelha a poetas mais velhos e experientes. No livro, há todos os traços do estilo que revolucionava a literatura brasileira de então, mas com uma marca pessoal que se tornou identificável, singular, drummondiana.


            Sendo um livro essencialmente modernista (na linguagem coloquial, no antissentimentalismo, na fanopeia, no humor, na crítica ao convencionalismo, na ironia jogada sobre o provincianismo), ancorado em seu tempo e no programa político e existencial do período, o que Alguma poesia tem a nos dizer? Não se trata de defender a utilidade da poesia, longe disso, mas de buscar na leitura de um dos livros mais importantes da nossa literatura, inspiração para decifrar alguns signos do nosso tempo e encontrar pistas para entender o coração angustiado das pessoas que o habitam. “Poema de sete faces”, que abre o livro, era a seu tempo uma apresentação do poeta, uma espécie de cartão de visitas. Em seu cubismo (para usar expressão da época) ou composição fractal (conceito que se tornou conhecido muito depois), Drummond fragmenta para buscar a unidade impossível de um “eu todo retorcido”. Cada uma das sete faces é um modo de ser que é também um modo poético. Talvez seja também um modo histórico. Acompanhemos o poeta, passo a passo.

            Quando nasci, um anjo torto,
            desses que vive na sombra
            disse: Vai Carlos, ser gauche na vida.

            O poeta se apresenta, de cara, como um desajustado, um gauche mineiro, que saiu do interior em busca da cidade, levando consigo as experiências da província e seu desajustamento. Tema clássico da poesia, desde Baudelaire, ganha aqui um tom menor, já que nosso personagem nem desafia o mundo nem é réprobo de deuses, mas apenas um homem desditado por um desimportante anjo torto. Quem não se sente gauche no mundo de hoje, com as demasias da felicidade ditada pelo consumo, levante a mão. Mesmo sem a dimensão trágica da queda, que o cinismo doce do poeta ameniza, há certa convocação, com pitadas de estoicismo e rebeldia, a desafiar o destino tão sem graça em que nos metemos. Que a palavra “gauche” signifique ainda “esquerda” é uma provocação a mais para quem, cansado da ética pragmática do egoísmo e mesmo sem anjo torto confiável no horizonte da política (já que estão todos tão iguais), anda em busca de saídas mais coletivas.

            As casas espiam os homens
            que correm atrás das mulheres.
            A tarde talvez fosse azul,
            não houvesse tantos desejos.

            Se a primeira face tem como origem o olhar do poeta, ainda que gauche, agora o mundo invade a cena e quem espia são as casas. O voyeurismo, com sua sugestão erótica, parece mostrar que nós, pobres e paralisados objetos de observação alheia, estamos prestes a ser dissecados pelo olhar do outro. Nossos segredos, mesmo os mais íntimos, já são parte de uma ameaça que nos vigia o tempo todo. Quando se acompanha a atual investida dos EUA sobre os outros países e o avanço das grandes empresas de informação sobre as possibilidades de mercado por meio dos dados monitorados pela internet, é possível perceber que dificilmente as tardes serão azuis daqui para frente. Os desejos são tantos. E há muito deixaram de ser meramente sexuais.

            O bonde passa cheio de pernas:
            pernas brancas pretas amarelas.
            Para que tanta perna, meu Deus,
            pergunta meu coração.
            porém meus olhos
            não perguntam nada.

            Nesta face o poeta parece exprimir nossa incapacidade de dar conta da velocidade. No segundo verso, as cores das pernas não são sequer separadas por vírgulas. É tudo rápido, de uma vez só (e olha que as pernas passam de bonde...). Com isso, o homem fica dividido entre a sensação e o sentimento. O coração pergunta, mas os olhos não estão nem aí. A rapidez, que deixa o poeta ainda mais gauche, é a mesma que nos cobra, a todo momento, mudar de ideia e de objeto de desejo. Não existe nada mais velho que o último modelo de celular. O coração pode até sofrer com sua fraqueza em desafiar desejos que não reais. Mas os olhos não perguntam nada. Onde havia o sofrimento, hoje há sofreguidão.

            O homem atrás do bigode
            é sério, simples e forte.
            Quase não conversa.
            Tem poucos, raros amigos
            o homem atrás dos óculos
            e do bigode.

            Drummond não era fácil. Quando o leitor ia se acostumando com o eu lírico desajustado e cambiante, ele retira o gauche de cena e coloca no lugar um “homem” comum – ainda por cima parecido com ele, com óculos e bigode –, como se fosse um retrato respeitável e insondável. O personagem da quarta face é definido por negativas e limitações: não conversa e tem poucos amigos. Para ser respeitável, o melhor é se isolar em máscaras sisudas e simples. Os tempos são mornos, o ideal é que as pessoas também o sejam. Mesmo a alegria tem hora. Um tempo sem papos e raros companheiros é uma quadra de convenções frias. É sempre melhor deixar para depois, adiar. Quem adia, não arde. Quando não temos bigodes reais disponíveis, fabricamos simulacros para baixar a temperatura da vontade de ser mais.

            Meu Deus, por que me abandonaste
            se sabias que eu não era Deus
            se sabias que eu era fraco.

            Depois de se afirmar com tanta convicção na estrofe anterior, o poeta troca a autossuficiência pela orfandade absoluta. Ao repetir as palavras de Cristo na cruz, o guache materializa sua condenação à liberdade. Não é outra a sensação que hoje parece jogar os homens de um lado para outro em sua relação com a religião. Num momento, afirmamos orgulhosamente a ausência de Deus (movidos pela posse de uma imanência balofa); no outro, usamos os símbolos e a filiação religiosa como uma distinção que parece afirmar que só nossa religião é boa. Os outros são sempre fundamentalistas e rasos. Não temos força para negar Deus, nem fé suficiente para aceitá-lo.

            Mundo mundo vasto mundo,
            se eu me chamasse Raimundo
            seria uma rima, não seria uma solução.
            Mundo mundo vasto mundo,
            mais vasto é meu coração.

            A palavra mundo é repetida seis vezes e ouvida como eco uma vez mais no nome Raimundo. Embora seja vasto a ponto de ter que ser dito tantas vezes, o mundo é menor que o coração do poeta. Esse jogo entre duas vastidões é o tema da sexta face. O choque, no entanto, não admite soluções fáceis, como rimas pobres. Este é o drama em que nos metemos. Quanto maior a dimensão de nossas responsabilidades, maior a tendência a fugir do que diz respeito a todos em direção aos motivos do afeto, que são só nossos, mesquinhos. Em pequenos gestos repetimos sem constrangimentos a negação do mundo pela afirmação do nosso desejo. Renegamos a política porque são todos sujos; paramos o trânsito porque nossa pressa é maior; sujamos o mundo porque temos dinheiro para isso. Assim como há crédito de carbono para poluidores ricos e conservacionistas pobres, parece haver crédito de mundo: pagamos caro e por isso podemos sobrepor nossa individualidade às demandas do coletivo.

            Eu não devia te dizer
            mas essa lua
            mas esse conhaque
            Botam a gente comovido
            como o diabo.

            Em tom de confissão, a última face/estrofe parece desdizer tudo que foi afirmado até então, dando peso culpado e camarada ao momento marcado pela bebida e pela lua. No entanto, se o leitor pensar de outro modo, a circunstância da confissão não nega o que foi dito, antes o justifica ou se desculpa pela sinceridade. Assim, o resultado é uma síntese feita de contrários que se intercambiam o tempo todo, ora mais razão, ora mais sentimento; mais mundo, mais coração; gauche e convenção. “Poema das sete faces” é uma sequência de retratos. De cada lugar que se olhe, o poeta é um, como são os leitores. A soma das partes não é igual ao todo. Não há todo num mundo de homens partidos.


            O “Poema das sete faces”, ao final, não anula as diferenças que dramatiza em cada uma das faces – às vezes com humor, outras com melancolia –, mas mostra que precisamos conviver com os motivos que nos constituem como pessoas. Não pode haver lição mais moderna que a afirmação dos nossos limites. Nem mais necessária para um tempo que pensa que ultrapassou a modernidade pelo fato de ter enterrado as utopias e inventado brinquedos engenhosos, sem se dar conta de que a injustiça sequer foi arranhada com essas aventuras irresponsáveis. No fundo, como revela Drummond, somos mesmos uns desajeitados. E essa é a única salvação.

            Tesouro a ser prensado - Ruy Castro

            folha de são paulo
            Tesouro a ser prensado
            RIO DE JANEIRO - Em 2000, a cultura brasileira ganhou um senhor presente: a caixa "Noel Pela Primeira Vez", com 14 CDs contendo as gravações originais das 229 composições de Noel Rosa (1910-1937), assinadas ou não. Foi o resultado de um esforço de 11 anos (1987-1998) do professor (de biologia) e pesquisador paulistano Omar Jubran. Ou seja, Jubran levou mais tempo para compilar a obra de Noel do que este para construí-la.
            O que nos EUA costuma ser o trabalho de uma equipe, com o apoio de instituições como a Smithsonian e valendo-se de verbas e arquivos generosos, aqui é a luta de um homem e dos abnegados que se dispõem a ajudá-lo. Num país onde se joga tudo fora, imagine o que seja procurar discos de cera, de 78 rpm, fabricados há 70 anos --alguns de cuja existência o pesquisador só tinha uma vaga referência; outros, de que nem sabia; e todos, ao ser encontrados, exigindo pesada restauração.
            Entre completar seu levantamento de Noel e conseguir que ele viesse à luz, Jubran teve de esperar outros dois anos, até 2000 --quando a caixa finalmente saiu, graças ao interesse da Funarte, da AAD (Associação dos Amigos da Funarte) e da gravadora Velas. Ninguém ganhou dinheiro com isso. Somente o Brasil ficou mais rico.
            Agora, Jubran tem em mãos outro trabalho, ainda maior em extensão e ao qual também dedicou quase dez anos: a obra de Ary Barroso. Pelo equivalente a 20 CDs, lá estão todas os sambas e canções de Ary por seus intérpretes originais --316 fonogramas, quase 100 a mais que os de Noel. Jubran não pediu dinheiro a ninguém para procurar essas raridades. Procurou e achou.
            E, de novo, ele espera que uma instituição queira prensar tal tesouro e pô-lo ao alcance das pessoas. É um projeto caro? Não. Mais barato do que contratar qualquer banda de rock para fazer um show na praia.

            Na cidade e na roça - Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza

            Entre os temas urbanos e a sabedoria dos homens simples do interior, crônicas de Rubem Braga são um marco na literatura brasileira, ainda capazes de emocionar 


            Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza

            Estado de Minas: 20/07/2013 


            Rubem Braga, o capixaba-mineiro-carioca, se estivesse vivo (e está), teria feito 100 anos em janeiro. É um dos melhores cronistas do Brasil – senão o melhor. Ele soube, segundo Alexandre Meirelles, fundamentar sua prosa “numa poética capaz de transfigurar o menor dos acontecimentos em uma experiência das mais significativas”. O conde e o passarinho, O Morro do Isolamento, A cidade e a roça, Ai de ti, Copacabana, As boas coisas da vida, Aventura, Cadernos de guerra e mais outras são antologias da mais fina crônica brasileira.

            Rubem Braga, “o bicho do mato cosmopolita”, como o chamou Tônia Carrero, o “Urso”, como o apelidaram seus amigos, “o máximo dos cronistas”, como o classificou Clarice Lispector, merece para sempre ser louvado. A mim, particularmente, deu-me um presente, justo no mês de seu centenário.

            Foi assim. Fomos a Boa Esperança, terra de minha mulher. Chovia muito. Dia e noite. Não podendo ir logo para a roça, que se acha nos aclives da serra imortalizada por Lamartine Babo, ficamos na cidade.

            Na pequena biblioteca que herdei dos sogros, procurei um livro para passar o tempo. Nada melhor que ler em dia de chuva. Ou em qualquer dia.

            Atraído pela lombada alaranjada e descorada de um livro relativamente fino, peguei-o. Era A cidade e a roça, de Rubem Braga, que eu presenteara a meu sogro no Natal de 1964. Publicado em 1956, pela Editora do Autor (Rio de Janeiro, 2ª edição), tem 32 crônicas a versarem preciosamente sobre os dois ambientes mencionados em seu título: a cidade e a roça, os dois objetivos de nossa rápida viagem.

            Em 89 páginas, cujos originais foram escritos de 1953 a 1955, o homem de Cachoeiro do Itapemirim, o bacharel pela Casa de Afonso Pena, o correspondente de guerra na Itália, o “solteiro feliz” de Ipanema deixou textos de humor, de saudade, de tristeza, de amor e de sabedoria.

            Associando-me às homenagens que estão a se prestar ao grande cronista e, em retribuição ao presente que ele me deu naqueles dias pluviosos, ofereço aos leitores alguns belos trechos de A cidade e a roça

            Em “Opala”, numa tarde-noite urbana, ele fala de amigos e da bela Joaquina:

            “Vieram alguns amigos. Um trouxe bebida, outros trouxeram a boca. Um trouxe cigarros, outro apenas seu pulmão. Um deitou-se na rede, e outro telefonava. E , Joaquina, de mão no queixo, olhando o céu, era quem mais fazia: fazia olhos azuis. (...) À meia-noite, sentimos que o apartamento estava mal apoiado no bairro e derivava suavemente em direção da Lua. (...) Joaquina dormia inocente dentro de seus olhos azuis; o pecado de sua carne era perdoado por uma luminescência mansa que se filtrava nas cortinas antigas. Havia um tom de opala. Adormeci”.

            Ainda em cenário carioca, ao comentar reclamação de seu vizinho sobre barulhos noturnos em seu apartamento, Rubem Braga, com a conhecida verve, envia o seguinte “Recado ao senhor 903”:

             “Eu, 1.003, me limito a leste pelo 1.005, a oeste pelo 1.001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao alto pelo 1.103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis (...). Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. (...) Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.’ E o outro respondesse: ‘Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’”.

            Rio antigo

            Com triste saudade, porque existe saudade alegre... o cronista, em “Lembranças”, escreve ao amigo Zico (Newton Freitas) e fala de um Rio de Janeiro mais antigo:

            “Aqui vamos pelejando neste largo verão. Escrevo com janelas e portas abertas, e a fumaça de meu cigarro sobe vertical. A única aragem é a das saudades. (...) sim, nós éramos estranhos príncipes; e as aflições e humilhações da miséria nunca estragaram os momentos bons que a gente podia surrupiar da vida – uma boca fresca de mulher, a graça de um samba, a alegria de um banho de mar, o gosto de tomar uma cachaça pela madrugada com um bom amigo, a falar de amores e de sonhos. Assim aprendemos a amar esta cidade; se o pobre tem aqui uma vida muito dura, e cada dia mais dura, ele sempre encontra um momento de carinho e de prazer na alma desta cidade, que é nobre e grande, sobretudo pelo que ela tem de leviana, gratuita, inconsequente, boêmia e sentimental. (...) Ainda vale a pena ver o sol nascer no mar; e que a vida poderia ser pior se esta cidade fosse menos bela, insensata e frívola”.

            Em “O lavrador”, ele viaja para a roça e admira o homem do campo. Assim:

            “Esse homem deve ser da minha idade – mas sabe muito mais coisas. (...) Olho sua cara queimada de sol; parece com a minha, é esse mesmo tipo de feiura triste do interior. Conversamos sobre a pescaria do piau, da traíra. Volta a falar de sua terra e desconfia que sou do governo, diz que precisa passar a escritura. Não sabe ler, mas sabe que essas coisas escritas em um papel valem muito. Pergunta pela minha profissão, e tenho vergonha de contar que vivo de escrever papéis que não valem nada; digo que sou comerciante em Vitória, tenho um negocinho. Ele diz que o comércio é melhor que a lavoura; que o lavrador se arrisca e o comerciante é que lucra mais; mas ele foi criado na lavoura e não tem nenhum preparo. Endireita para mim o cigarro de palha que estou enrolando com o fumo todo maçarocado. Deve ser de minha idade – mas sabe muito mais coisas”.

            Ao terminar esta pequena seleção feita em homenagem ao mestre da crônica, volto à cidade com “O gesso”, em que Rubem Braga se refere à estátua de Bluma Wainer (ele não mencionava o nome dela), sua grande paixão, que instalou no “quintal suspenso” de sua cobertura em Ipanema. Leiam:

            “Talvez um dia eu mande passar para o bronze; mas me afeiçoei a essa cabeça de gesso encardido que é a única lembrança material que tenho daquela que partiu. (...) Quantas vezes vi esses olhos se rindo em plena luz ou brilhando suavemente na penumbra, olhando os meus. Agora olham por cima de mim ou através de mim, brancos, regressados com ela à sua substância de deusa. Agora ninguém mais a poderá ferir; e todos nós, desta cidade, que a conhecemos um dia; e, mais que todos, aquele que mais obstinada, mais angustiosamente soube amá-la, aquele que hoje a contempla assim, prisioneira do imóvel gesso, mas libertada de toda a dor e toda a paixão tumultuária da vida – todos nós morremos um pouco na sua ausência. (...) À noite, quando volto para casa, a cabeça de gesso me espera – imemorial, neutra, severa, apenas quase triste. E minha ternura é toda sossego e pureza”.

            . Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza é integrante da Academia Mineira de Letras e do Grêmio Literário de Lisboa.

            O delírio do verbo [Manoel de Barros] - Renarde Freire Nobre

            A obra de Manoel de Barros devolve a potência da imagem à linguagem. Guiada pelos segredos da palavra, sua poesia celebra a misteriosa comunhão do homem com o mundo 


            Renarde Freire Nobre

            Estado de Minas: 20/07/2013 

            Manoel é um atormentado das imagens com o dom de verbalizá-las. Poderia ter ficado lelé e prestável para hospícios, mas virou poeta prestável para afetos. Nasceu nos arredores do Pantanal “entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”. Ainda jovem, partiu do primitivo pantaneiro para ápices da cultura. Morou longo tempo no Rio e passou uma temporada em Nova York, visitando cinemas e museus. A partida e o distanciamento dos ermos pantaneiros não sinalizam abandono das origens, porque, a bem dizer, as origens é que nunca deixaram a alma de Manoel. Os bichos, do ar e do chão, as vivências e as companhias de infância virão a ser as imagens preferenciais embaralhadas na mente e fixadas pelas mãos do poeta. A poesia de Manoel é a estilização do primitivo de si. O menino foi o escorço do poeta, daquele que repôs a infância em palavras, que sempre trouxe um “outono” “no chão da voz”, que ainda criança viu o “morro entortando a bunda da paisagem” e, dessa feita, compôs seu primeiro verso.

            Manoel vagou e se alimentou de conhecimentos sem deixar jamais de ser o que é: um homem do chão do mundo e de muitos mundos na imaginação. Encontro raro de terra e ar, da linhagem de Guimarães Rosa, ao modo de um sapo que, pulando de quando em quando, “muda a perspectiva do chão”. Como um bugre das lonjuras, Manoel sempre se sentiu bem no ermo da distância. Em imagens, o poeta amplia a sua natureza, sua solidão, seu abandono. A solidão para o poeta é a “opulência da alma” imaginativa.

            “Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.” Não se achou porque não caminhou como um adulto cartesiano, mas inflamado de meninice, com mania temporã de brincar com as imagens. Destino de quem erra por desvios e desvãos. Com a morte do pai, herdou fazenda robusta de reses. Durante anos, cuidou dos negócios, deixando a poesia de lado. Porém, quando essa recobrou a sua presença, Manoel foi impulsionado a “comprar o ócio”. Desde então, dedica-se ao tempo inestimável da criação. Pela trilha das imagens segue a desviar-se, e na palavra encontra a sua única verdade, trazendo na carne da alma a verve da imaginação e o verme da ociosidade.

            Manoel multiplica e distribui imagens poéticas, faz da palavra pão, fermentado em terra bruta, levemente amassado por patas de passarinhos. “A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.” E, assim, sabe tudo de poesia, sabe que a palavra deve ser restituída ao primitivo dos sentidos e das vivências, os quais não ficaram lá atrás, perdidos no tempo, mas pulsam na vivacidade e atualidade do fantasioso. A infância, “a camada mais fértil da vida”, não lhe compõe como passado nem está confinada na memória consciente. A infância lhe é universo de insignificâncias e inutilidades, mas, sobretudo, de sensibilidades sobre coisas nativas permanentemente revisitadas e reviradas, coisas que só servem para poesia. Em Manoel, a imaginação coloniza a memória, memória que lhe foi desde sempre imaginativa, “botando um rasgão na bunda da razão”. Quem governa a alma do poeta é a imaginação, o poder da invenção.

            O seu estilo é o do “delírio do verbo”. A poesia como a própria voz delirante do verbo, tormento desaguado em delírio criativo. A natureza que Manoel verdadeiramente ama é a da imagem encarnada em verbo. Como poeta, sabe que a imagem precede e alimenta o verbo, por isso mesmo alça a palavra ao primitivismo para que ela possa se reencontrar com a essência imagética, restituindo-se à linguagem o que ela originalmente é: potência de imagem. A palavra despida de toda a couraça da seriedade para voltar a brincar em nudez semântica. A palavra posta em posição primeira. E as palavras são, na sua fase larvar, desprovidas de significado. Só vale a língua com força imagética. Poesia, puro delírio imaginativo, letra sem estatuto de lei, verdade ou função. “Poesia é voar fora da asa”, voar na língua das imagens. O poeta é feito pássaro que enxerga com as asas da invencionice.

            Manoel, o atormentado das imagens, o fora da lei do verbo, andarilho de estradas tortuosas e paisagens surreais, afeito às frases sem eira nem beira, levando no dorso indômito da poesia a fúria das imagens. Não olha o mundo como uma pessoa razoável. Prefere lentes primitivas, desfocais. A palavra poética não quer compreender. Ela quer transver o mundo das coisas. “O pulo do sapo é que faz o espaço.” À sua poesia aplicam-se os seguintes versos de Mário Quintana em “O descobridor”: “Os atônitos objetos que não sabem mais o que são / no terror delicioso / da transfiguração”. É próprio do poeta desfazer naturalidades porque “(...) arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isso seja: Deus deu a forma. Os artistas deformam. É preciso deformar o mundo: tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a deformar”. Imaginar é transver o que vem de fora e se encontra aprisionado na retidão compreensiva. É como um passe de mágica, quebrar o barro da realidade para moldar inexistências. Fazer poesia é mudar a perspectiva do mundo.

            A poesia sem qualquer outra pretensão que não a de dar linha à imaginação. Daí ela se dispor a construir ilogicidades, apresentar condições e relações surreais – a lesma “carrega na alma um incêndio de girassóis”. Para a fabricação delirante, Manoel conta com alguns brinquedos prediletos: “Um chevrolé gosmento, um resto de inseto, um abridor de amanhecer, ferro de engomar gelo, alicate cremoso, guindaste de levantar vento”, enfim, tudo aquilo que pode ser “disputado com cuspe à distância”. Faceiro, o poeta gosta das coisas de  jogar fora, que, não servindo para nada, estão livres para encantar. Manoel se vale da imensidão e robustez do nada para tecer o inútil. Quando escreve que o “nada lhe engrandece”, ele não pensa em um vazio ou no exíguo. Diz da abertura para uma realidade robusta, sem fronteiras, sondável pela fantasia, um estuário de imagens para além da trava das simbolizações ordinárias e funcionais. Manoel pega os descartes e lhes afere devido valor imaginativo. Pratica a poética da desfaçatez metafórica que tudo deforma, mas que, diferentemente das máquinas, não o faz com propósito de utilidade.

            “Maior que o infinito, é o incolor.” A partir do incolor se constroem formas e tonalidades. E, se o poeta prefere as coisas ao alcance dos olhos, não é por miopia ou mera proximidade, mas porque o que se vê faz-se motivo de emoção e imaginação. Poesia, para ele, não guarda nada de metafísico, não tem a ver com o não acessível aos olhos que se esconde no fundo da alma. Tais segredos podem ser valiosos para filósofos, não para poetas. Como um analfabetismo semântico, a poética de Manoel é terreno desocupado de designações sérias. “Significar reduz novos sonhos para as palavras”. As palavras são mais sagradas que os sentidos que porventura possam comunicar. Palavras saídas inteiras, com pele, sons, cores, cheiros, movimentos, tessituras. A poesia de Manoel difere do plano das ideias porque nela as coisas não recebem a veste das significações, mas aparecem como personalidade com pleno direito de existência e manifestação. Porque a palavra poética não é o discurso ponderado do homem sobre o mundo. É, antes, comunhão misteriosa do homem com o mundo.

            Manoel não faz poesia como Fernando Pessoa, que talha a palavra com intenção de significação. O único sentido cabível da poesia de Manoel é o do delírio. Diferença de estilos: Pessoa é um poeta de ideias, para isso se metamorfoseia em personalidades que ampliam o horizonte dos sentimentos e dos sentidos; Manoel é poeta de imagens, daí não assimilar experiências, pessoas e coisas senão como personagens de uma trama imagética e sem sentido. E, mesmo sendo um bugre civilizado e culto, ele não se põe erudito. Acadêmico, então, nem pensar, um tipo de “caranguejo” “achante” de conceitos. O poeta chega a desdenhar de chás solenes e de egrégias condecorações. Mas, como não, para quem tem a índole desmiolada e nada séria de encostar “um cago no sublime. E no solene um pênis sujo”.

            Um narrador solene diz para a pedra: “Sou eu, me deixa entrar”, ao que recebe como resposta: “Tenho outra natureza, sou hermeticamente fechada”. Acredita-se, com isso, que indagar é o destino do humano e a altivez maior do espírito. Embora possa perfeitamente ver porta em pedra, Manoel não teria o pudor de nela bater. Ele prefere penetrar as coisas por inteiro, de modo algum abusada ou apressadamente. Só lhe vale a linguagem da alma que brinca, fabula, dotada da delicada inocência necessária para o inútil.

            A ciência nos ensina a separar as palavras e as coisas, ao reconhecer que a linguagem não pode o real. Também porque precisa desencantar as coisas. Manoel é, então, pré-civilizado, “agramatical”, não por crença na verdade imaculada das palavras, mas por amor à fabulação da língua. Ao pôr as coisas para cavalgarem no dorso da palavra, a poesia nega-lhes a separação, restituindo ao homem o dom de variar e encantar as coisas com a força da imaginação. Manoel realiza uma operação alquímica e libertina: ele põe as palavras para cobrir, penetrar e amar as coisas, de sorte que não pensa as coisas, mas as projeta em exposição delirante, fazendo do texto tela a ser vista com as dimensões da alma. Sua poesia é rebento do ato obsceno e despudorado de as palavras copularem com as coisas, a ponto de elas mesmas se aparentarem às coisas, a ponto de seus sons coaxarem, voarem e pousarem em árvores.

            Cópula das palavras com as coisas, delírio erótico do verbo, êxtase imagético, de modo que as palavras ganham natureza de coisas e as coisas adquiram status de linguagem. Rompe-se, com isso, uma barreira ainda mais invisível e artificial, a que separa a palavra e o ser. Não mais a ascendência da linguagem ponderada sobre a existência – pretensão em que se firma o conhecimento –, mas fusão imagética da alma com a palavra, de modo que “descobrir novos lados de uma palavra era o mesmo que descobrir novos lados do Ser”.


            . Renarde Freire Nobre é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

            Fernando Rodrigues

            folha de são paulo
            Remanso para Dilma
            BRASÍLIA - A presidente da República, governadores e prefeitos tiveram suas taxas de popularidade avariadas pelos protestos de junho, como mostrou a pesquisa Datafolha do final do mês passado.
            Agora, dois outros levantamentos divulgados nesta semana mostram um grau de deterioração similar. No caso de Dilma Rousseff, as pesquisas da CNT e do Ibope indicam que a petista parece ter estacionado no patamar de 30% das intenções de votos na disputa pelo Planalto em 2014.
            A primeira pesquisa a detectar a grande queda de Dilma foi a do Datafolha, cujos dados começaram a ser coletados em 27 de junho. Os levantamentos seguintes foram realizados de 7 a 10 deste mês (CNT) e de 11 a 14 (Ibope). Embora com metodologias diferentes, os três estudos colocam a atual presidente na mesma faixa dos 30% nos cenários mais prováveis da corrida sucessória.
            Tudo indica que se formou um remanso para Dilma Rousseff. Ela parou de cair. Não há dados conhecidos para todos os governadores e prefeitos, mas o mais provável é que o remanso seja quase geral. Os brasileiros estavam irritados. Foram às ruas e protestaram. Desidrataram o nível de confiança que depositavam nos políticos. Agora, vão esperar um pouco para ver o que acontece.
            Para Dilma, a notícia é boa e ruim ao mesmo tempo. A parte positiva é ter estancado a sua queda. A negativa é que está perigosamente estacionada numa faixa em que pode ser superada pela soma das intenções de voto dos demais adversários.
            A oposição emerge ainda frágil e com um sinal amarelo para candidatos do establishment como Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB). Até porque, quem mais se beneficiou até agora da derrapada de Dilma foi um nome da terceira via, a verde Marina Silva e sua Rede.
            -
            E, nesse remanso, entro duas semanas em férias. Até a volta.

              Luís Augusto Cassas reúne o trabalho de uma vida nos dois volumes de A poesia sou eu‏

              O inventor de horizontes     

              Luís Augusto Cassas reúne o trabalho de uma vida nos dois volumes de A poesia sou eu 


              André di Bernardi Batista Mendes

              Estado de Minas: 20/07/2013 


              A editora Imago acaba de lançar A poesia sou eu. Dois volumes reúnem o trabalho do poeta maranhense Luís Augusto Cassas ao longo dos últimos 30 anos. Eles trazem 16 livros publicados pelo escritor, além de quatro inéditos. Cassas tem relação muito próxima e límpida com o lirismo propício a mais e mais sentimento. Tudo serve para sua visão poética: o amor, o infinito, a cidade, as pessoas, o feminino, a solidão. Uma alma vasta que cuida de coisas vastas, ganhando ares de preciosidades.

              Todo poeta é dono de uma obra inacabada. É o caso de Cassas. Todo poeta é, antes de tudo, um solitário, é uma árvore que não entende, que não sabe nada de frutos e de sombras. Todo poeta é guerrilheiro que sonha sempre em trânsito. Todo dia, toda manhã, traz ordens de vigílias e recomeços. Toda poesia tem o poder, um sabor de reinício.

              A pretensão do título de Luís Augusto Cassas se justifica, pois o escritor acata, aceita e escreve com a humildade de um monge: “Namastê/ que bom te ver/ o poeta que mora em mim/ saúda o poeta que mora em você”.

              Esse poeta é dono de estilo simples, como deveriam ser simples a madrugada, Hiroshima e Nagasaki, o “silêncio atomizado”, “a paz mutilada”, as rusgas, as rugas, as estradas que religam terra e céu. Porque poesia é escada e abismo, é caldo, é pão feito de paradoxos. Cassas sabe que palavra e pó de poeira também são sinônimos. O poeta anda precavido de estrelas, vive protegido por sombras. E tem um “sol aceso no peito”.

              Uma pedra, o arco-íris, o Himalaia, tudo cabe nas páginas de um livro. A poesia se torna, assim, algo que forja, que fornece dúvidas diante do muito incerto, diante dos sustos e das possíveis revelações. Entre “conferências de buzinas”, o poeta encontra música, e encontra silêncios quando nada pesa nos ombros. Existem versos que inauguram um homem.

              Luís Augusto Cassas é também autor dos livros República dos becos, O filho pródigo e A mulher que matou Ana Paula Usher, entre outros.

              três perguntas para...
              Luís Augusto Cassas
              escritor

              Como você avalia a poesia feita atualmente no Brasil?

              Ela foi e continua a ser múltipla, solidária, transformadora, rica em signos, cotidiana e universal, imersa na viagem da realidade externa e interna, banhada em luminosa tropicalidade ou no vigor do contraste invernal da latitude mais cinza. Reconheço nela uma grande transmissão de energia que vai sendo repassada espiritualmente às novas gerações, colhendo os frutos do verbo. Temos grandes mestres, de Norte a Sul, Leste e Centro, em distantes rincões do país. Muitos, desconhecidos. E um enorme poder de fogo não percebido até agora.

              Em seu livro, você afirma que busca trilhar o caminho do meio. Como a poesia interfere nesse processo?

              A principal doença de nosso tempo é a unilateralidade, que continua a destilar os seus radicais livres no seio da totalidade. É preciso compreender que os contrários não são inimigos, como a luz e a sombra, assim como todos os pares de opostos, mas companheiros de caminho, impulsionadores, cada qual servindo ao equilíbrio, evitando que possamos cair nos extremos. Nessa perspectiva, tento trilhar o caminho do meio na poesia, instaurando um grande diálogo entre o todo e a parte, o espírito e a matéria, a antiguidade e a contemporaneidade, o conteúdo e a forma, o misticismo e a física quântica, a energia e a graça.

              Como você definiria sua trajetória pelos mistérios
              da poesia?

              Com a publicação que congrega 16 livros editados e quatro inéditos, dou como concluída a minha longa meditação com o verbo, movido a paixão e suor. A obra reflete a integralidade da caminhada da minha alma. Para mim, permite a avaliação da jornada mental de um poeta frente à vida e às questões de seu tempo. E a confirmação de que, mesmo morando distante dos centros de irradiação cultural, não se deixou abater quando teve de renunciar ao mundo, permanecendo fiel à sua interioridade e sem fazer concessões ao gosto pasteurizado da época. A poesia foi minha vida e minha vida se tornou poesia. Aceitei a minha cota de humanidade e me tornei um inventor de horizontes, pelo menos para mim.