segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Pau de Selfie - Eduardo Almeida Reis

O assunto suscita a seguinte pergunta: como guardar o seu pau de selfie?


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 23/02/2015



Ao arrepio do resto da humanidade, ainda não comprei um pau de selfie nem vou comprar. Na imbecilérrima interação com os telespectadores, virou moda em nossos canais de tevê a exibição das fotos imbecis tiradas com os paus de selfie, com as frases não menos idiotas dos fotografados. O assunto suscita a seguinte pergunta: como guardar o seu pau de selfie? Nos aviões, não podiam viajar na cabine com os seus proprietários, mas agora podem. Separar o pau de selfie do seu dono soava como amputação.

Em casa, presumo que fiquem guardados nos armários. Presumo, outrossim, que a posição no armário ou na cômoda seja irrelevante, ao contrário do que se diz do ato sexual em que certas posições podem ser perigosíssimas. Passo a palavra ao noticiário: “RIO – Homens, cuidado! É bom ficar atento quando sua parceira – principalmente se for brasileira – sugerir que ela fique por cima durante a relação sexual. Segundo o periódico britânico The Independent, essa posição é a culpada pela metade das fraturas penianas. Os autores da pesquisa, publicada originalmente no jornal Advances in Urology, analisaram os casos de 44 pessoas em três hospitais de Campinas, São Paulo, num período de 13 anos.

Uma das justificativas é justamente o fato de a mulher estar controlando o pênis com todo o peso de seu corpo – o que torna complicada a tarefa de interromper a penetração se algo sair fora do planejado. Ela, geralmente, sai do incidente sem sequelas. Mas ele... De acordo com a pesquisa, 50% dos pacientes ouviram um estalo e sentiram dor após a ‘colisão’. A maioria consultou um médico nas próximas cinco ou seis horas seguintes. O estudo ainda informou que a posição mais segura para o homem seria a do ‘missionário’. Ou seja: quando ele está por cima. Os cientistas deixaram claro que esse tipo de lesão não é comum, mas causa um certo constrangimento”.

Putzgrila! Um certo constrangimento... Imagine o caro e preclaro leitor o tipo de lesão que possa causar real constrangimento. O texto, que transcrevi ipsis litteris, tem um monte de besteiras como “próximas cinco ou seis horas seguintes”, mas vai assim mesmo porque a notícia é preocupante.

Craques
Não sou crítico literário. Não entendo de literatura. Duvido que o leitor aponte um só trecho em que o seu philosopho se identifique, se apresente como escritor. Sempre disse que sou autor de livros, porque gosto de escrever e tenho 20 publicados. Só isso.
Acontece que recebo livros escritos por amigos e é justo que fale deles. Os últimos foram três, de uma trinca de craques, que li e gostei. Pela ordem de chegada, aqui vão. O primeiro, Casco vazio de ser humano – Crônicas de morte, foi escrito pelo médico Neif Musse, cardiologista e geriatra, professor de medicina que adora lidar com terra, produz mudas de plantas, árvores, hortaliças e flores, cultiva minhocas, cria cachorros, faz dança de salão e o seu dia dura mais que 24 horas, foi vivamente recebido e elogiado por Affonso Romano de Sant’Anna, o que diz tudo e mais alguma coisa.

O segundo, Conversa/entrevista com Fernando Pessoa, foi escrito por Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza, querido confrade na Academia Mineira de Letras, professor de direito constitucional há mais de 40 anos, redator da constituição de Timor Leste, país vizinho da Indonésia hoje conhecida por fuzilar brasileiros traficantes de drogas. Ricardo nasceu em BH e é o mais português dos brasileiros, todo ano visita Ponte de Lima, terra dos Malheiros avoengos, e produziu obra-prima nessa conversa/entrevista com o finado Pessoa.
O terceiro, Rio da lua, tenha medo, tenha muito medo, romance da lavra do escritor Renato Zupo, magistrado no Araxá, velho amigo que não conheço pessoalmente, escritor de alevantadas qualidades intelectuais. Claro que tenho muito medo depois de ler crônicas de morte e uma conversa/entrevista com um poeta morto em 1935, quando Ricardo Fiuza ainda não tinha nascido na capital de todos os mineiros. Fica o registro.
 
O mundo é uma bola

23 de fevereiro de 1797: todos os detentores de bens da Coroa portuguesa e os herdeiros de morgados ou capelas passam a ter que servir no Exército ou na Marinha, sob pena de devolução dos bens. Algo inimaginável, hoje, num país grande e bobo, em que os detentores de meia dúzia de reais sempre dão um jeito de escapar do serviço militar.

Em 1861, o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, chega secretamente a Washington para assumir a Ppresidência, depois de escapar de um atentado em Baltimore. Em 1911, os bispos portugueses contestam as medidas anticlericais da Primeira República: a expulsão das congregações, a lei do divórcio, a criação do registro civil e o fim do juramento religioso nos tribunais. Em 1954, o imunologista norte-americano Jonas E. Salk apresenta a vacina para a poliomielite. Hoje é o Dia da Sedução, do Boticário, do Rotariano e do Surdo, bem como do Surdo-Mudo.

Ruminanças
“O criador do Jeca (Monteiro Lobato) era um patriota da melhor marca, tanto ou mais que aqueles que o censuravam por ter apresentado em toda a sua fealdade e miséria o nosso elemento humano e subumano” (Eduardo Frieiro, 1892-1982).

A delação premiada e a ética - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico 23/02/2014

Usar a delação premiada, contra corruptos e criminosos, em geral é ético? A filosofia pode responder

Há uma grande, quase única maneira de acabar com quadrilhas: é a polícia ou o Ministério Público jogar um membro delas contra outro. Esse conceito está presente na delação premiada, vedete da Operação
Lava Jato, que investiga a corrupção na Petrobras. 


A chave disso é quebrar a confiança. Hoje, qualquer um que participa de um esquema corrupto sabe que pode ser pego. Desde o mensalão do DEM, o melhor é ele gravar, escondido, suas conversas – já se preparando para uma delação premiada. Há tecnologia para tanto. Há mais que isso. As relações hoje são tênues, frágeis. Baumann fala em “amores líquidos”. Todos os vínculos podem se liquefazer. Na hora H, ninguém sabe o que dirá o amigo de infância ou a esposa traída. Ora, a Justiça pode nadar de braçada nesse esgarçamento dos vínculos. Os microgravadores são apenas o meio técnico; a grande razão é essa: a confiança já não dura tanto na vida. Amigos, sobretudo entre bandidos de colarinho branco, são para as horas boas, não as más. O segredo dos investigadores é quebrar a confiança e a lealdade entre os bandidos que não matam com arma branca ou de fogo, mas com dinheiro desviado do orçamento.


O que a filosofia tem a dizer sobre isso? Em nossa área há o assim-chamado Dilema do Preso (uns dizem “do prisioneiro”). Suponhamos dois presos, suspeitos de um crime. Mas não há provas contra eles. O investigador os interroga em separado, sem terem comunicação entre si. A cada um, promete imunidade quase total se entregar o outro; mas, se ele se calar e o outro o entregar, uma pena bem alta. (Nem sabemos se cometeram o crime). A melhor saída é nenhum confessar: saem livres. A segunda melhor, para um deles, é acusar o outro – que terá uma pena severa, enquanto o acusador ficará preso alguns meses. O investigador diz o tempo todo, a cada um, que o outro está a um passo de acusá-lo. A condição para a polícia vencer é nenhum dos dois saber o que o parceiro vai fazer. Lembrem que talvez não sejam criminosos. Podem ser ambos inocentes. 


O melhor é se calar – desde que o outro também fique. Se não, o segundo melhor é ficar preso um ano, acusando o parceiro. Se eu tiver total confiança nele, e ele corresponder, saímos livres. Mas, se não houver confiança?


Este é o padrão do “Law and Order”: apostar na deslealdade. Só que a Lava Jato, como as investigações americanas e italianas contra a Máfia, faz isso em escala macro, complexa. Não é o Estado contra dois. É o Estado contra quadrilhas de corruptos e corruptores. Não é só saber quem matou. É uma rede complexa de negócios, que para ser desmascarada exige expertise. Os investigadores têm de ser ótimos. 


É ético usar da delação premiada? Contra o criminoso, não vejo problema ético. O desvio do dinheiro público não pode ser um crime leve. A delação só penaliza o criminoso no que ele merece. Mas a questão se coloca num outro âmbito. O delator terá a pena reduzida ou até perdoada. Isso é justo? Cúmplices menos culpados sofrerão penas maiores, só porque ele contou primeiro. Isso é duvidoso eticamente. Mas, se fosse para no final das contas calibrar as penas só pelas culpas, a delação não teria sido necessária – ou útil.


A questão remete a uma escola filosófica, o utilitarismo – a escola de pensamento mais seguida, embora pouco mencionada. Imagine que seu carro perdeu o freio. Sua única opção é atropelar cinco pessoas à direita, ou uma à esquerda. A resposta utilitarista é: faça o que matar menos. Ou na economia: você tem que escolher entre uma medida que beneficia cem mil pessoas e outra, boa para dez mil. O utilitarismo recomenda a primeira opção. É quase impossível, na política real, ter de um lado o bem perfeito e de outro, o mal absoluto. Por isso, recomenda-se o menor mal. A política, para ser ética, precisa ser utilitarista.



A delação premiada, então, escolhe o mal menor. Deixaremos solta a Máfia, porque não podemos punir todos na proporção exata da culpa? Deixaremos os corruptos livres, porque seria antiético soltar um chefão que confessou, enquanto encarceramos dez bagrinhos? Nenhuma solução é plenamente justa. Mas qualquer solução pode ser mais justa do que deixar mafiosos matando nas ruas e corruptos matando no orçamento. 


É recomendável, sempre usando termos éticos (e não jurídicos), tomar cuidado. A delação deve ser conferida. Só deve ser premiada se for plenamente veraz. Deve-se evitar soltar chefões demais, condenar bagrinhos em excesso. Mas isso não é fácil. Ganha mais quem pisca primeiro.
Repito: a chave é destruir a lealdade entre criminosos. Muita gente fala em códigos de ética de certos grupos. Dizem que a “ética da cadeia” é estuprar quem cometeu crimes de abuso sexual. Em algumas profissões, vigeu o “código” que era jamais denunciar o confrade, ainda que tivesse prejudicado o cliente ou paciente. Eu, professor de Ética que sou, me recuso a chamar de ética a tais regras de convivência entre criminosos. Mas celebro toda tentativa de introduzir a desconfiança entre os que têm sucesso em suas empresas criminosas justamente porque são desleais com a sociedade, mas extremamente leais entre si. A força da quadrilha está nessa certeza de que cada membro da Yakusa confia nos outros para o que der e vier. Mas não há virtude numa lealdade entre bandidos, que se funda na deslealdade para com a sociedade como um todo, em especial seus membros mais vulneráveis. A delação premiada, sem ser exemplo de uma ética ideal, é porém um recurso necessário para, coibindo os crimes de quadrilhas, tornar mais ética a sociedade como um todo.