quarta-feira, 15 de maio de 2013

Sobre a liberação das terapias de reversão de sexualidade


  • Marco Feliciano põe em votação o projeto de lei do deputado João Campos, do PSDB, que propõe a liberação das terapias de reversão de sexualidade, a famosa "cura gay". Aos que se preocupam, digo: é bem provável que a proposta seja aprovada, já que a Comissão dos Direitos Humanos hoje em dia é dominada por fundamentalistas pentecostais. Só que o fato de ela ser aprovada nada significa - ela vai ser barrada em instâncias superiores. Também gostaria de lembrar que Feliciano, no presente caso, é peixe pequeno. Ele apenas colocou em pauta um projeto que tem pai. Um pai com nome e partido: João Campos, do PSDB. Muito me espanta que o PSDB, um partido que tem uma história positiva [não ideal, mas positiva] no que tange aos homossexuais fique quietinho diante de uma ideia tão esdrúxula, que propõe considerar que gays e lésbicas procurem tratamento para sua inadequação sexual.

    Vale também notar que se existem gays e lésbicas psicologicamente perturbados por conta de serem o que são, isso se deve ao discurso patologizante e homofóbico destas mesmas igrejas que agora oferecem uma "cura". Notem a circularidade: as tais igrejas patologizam a sexualidade alheia. A pessoa que cresceu neste ambiente se sente mal, doente. Então, procura a ajuda de um psicólogo intitulado "psicólogo cristão" [tipo uma Marisa Lobo da vida] e pede para ser curado. Mas curado de que? Da doença inventada pelos próprios pentecostais?

    Digamos que a proposta passe e não seja barrada, o que seria escandaloso para o Brasil no que concerne aos Direitos Humanos. Seria uma vergonha internacional. A proposta diz que o psicólogo pode propor terapias de reversão de preferência sexual caso o sujeito queira. Já pensaram que delícia a cena abaixo?

    Paciente: - Doutora, te procuro porque sinto desconforto com minha sexualidade, e quero mudá-la.
    Marisa Lupus, psicóloga cristã: - Fez bem, fez bem. Há quanto tempo você percebe que é gay?
    Paciente: - Mas eu não sou gay!
    Marisa Lupus: - Não? Mas...
    Paciente: - Eu estou desconfortável com minha heterossexualidade, e quero revertê-la. Quero ser gay.
    Marisa Lupus: - Mas... mas como? Por que?
    Paciente: - Estou cansado, me sinto infeliz. Meus amigos gays parecem todos felizes e são mais divertidos. A comunicação entre pessoas do mesmo sexo parece ser melhor. Tem também a questão econômica: além de não ter filhos e assim podermos viajar mais, nós podemos usar as roupas um do outro.
    Marisa Lupus: - Mas os filhos... a procriação... o pecado...
    Paciente: - Ah doutora, o mundo está cheio de gente. E eu não gosto de crianças. Prefiro ajudar financeiramente as instituições que cuidam de crianças. E aí, a senhora vai me ensinar a reverter minha heterossexualidade ou não vai?
    Marisa Lupus: - Eu não posso fazer isso...
    Paciente: - Claro que pode! A lei diz que se a pessoa não se sente satisfeita com sua própria sexualidade, pode procurar tratamento. E aí, podemos começar? Como sugestão, eu trouxe uns filmes pornôs pra gente ver juntos.

    Liga o DVD. Insere o disco. Título do filme: O SENHOR DOS ANAIS.

    Marisa Lupus se atira pela janela aos gritos, e a gravidade se revela inexorável. Chegando ao céu, dá de cara com um antigo amor de infância, uma garota gostosona, a quem ela rechaçou por causa da religião. A gostosona olha pra cara da doutora Lupus e diz, enquanto dezenas de anjos gays dourados cantam My Heart Will Go On:

    - Bobinha. Não era pecado!
    daqui

Quadrinhos

folha de são paulo

CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
BIFALAND, A CIDADE MALDITA      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
MALVADOS      ANDRÉ DAHMER
ANDRÉ DAHMER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS

HORA DO CAFÉ      ALVES
ALVES

O tempo no Bolsa Família e os resultados na educação

Armando Simões
A transferência de renda só é capaz de mudar o padrão de consumo de uma família se puder alterar o que Milton Friedman definiu em 1957 como renda permanente, ou seja, a parcela da renda com a qual a família pode contar a cada mês para suprir suas necessidades. Ela difere da renda transitória, composta por ganhos eventuais e incertos que não chegam a estabelecer um novo padrão de consumo no domicílio. Foi por alterar a renda permanente das famílias pobres que os programas de transferência de renda nos Estados Unidos geraram efeitos positivos para crianças e jovens que viviam abaixo da linha de pobreza.
A partir dos anos 1960, vários experimentos sociais e estudos longitudinais - que analisam variações nas características dos mesmos indivíduos ao longo do tempo - tiveram lugar para avaliar os impactos desses programas, que se iniciavam naquele país no que ficou conhecido como The War on Poverty (A Guerra Contra a Pobreza), deflagrada em janeiro de 1964 pelo presidente Lyndon Johnson. Embora a preocupação central dos estudos fosse avaliar possíveis efeitos adversos das transferências de renda, como o desestímulo ao trabalho, o que se revelou na verdade foi um enorme impacto das transferências de renda sobre o resultado educacional das crianças e dos jovens, desde que mantidos nos programas pelo tempo necessário para que os efeitos benéficos pudessem se manifestar em suas vidas.
Vencer a guerra contra a pobreza no longo prazo depende de manter os esforços distributivos atuais
A literatura especializada relata uma série de efeitos positivos da permanência nos programas, entre eles maior chance de os jovens beneficiários completarem o ensino médio ("high school"), redução da participação dos jovens em idade escolar no mercado de trabalho, maior número de anos de escolarização, redução das faltas às aulas, melhora da disciplina em classe e do desempenho em testes padronizados de aprendizagem. O efeito sobre a aprendizagem, em particular, revelou-se significativo após cerca de três anos de participação nos programas, sendo mais acentuado no caso das crianças que viviam em famílias mais pobres, e mais evidente para as crianças mais novas frequentando séries iniciais. As crianças beneficiadas durante a fase pré-escolar apresentaram resultados ainda mais significativos quando ingressaram na escola. Observou-se também que o valor do benefício influenciou o nível dos resultados apresentados.
A conclusão básica dos estudos experimentais e longitudinais acumulados nos últimos 40 anos nos Estados Unidos é de que os programas de transferência de renda devem ser sustentados durante o tempo em que as crianças das famílias pobres estiverem na escola. Dessa forma, os ganhos de renda podem ser assimilados como parte da renda permanente dessas famílias e afetar o ambiente familiar em favor da educação das crianças e dos jovens.
As pesquisas realizadas nos países em desenvolvimento sobre os efeitos dos programas de transferência condicionada de renda (PTCR) na educação, na saúde e na nutrição das crianças e jovens também sugerem que esses programas são fortes aliados na estratégia de combate à pobreza intergeracional. A literatura revela efeitos significativos na área de educação com respeito à matrícula na idade certa e à frequência escolar, à redução do abandono e ao aumento da promoção, à redução das desigualdades de gênero (nos países em que a educação das meninas ainda é um desafio a ser alcançado), à transição para a escola secundária e aos anos de escolarização. Recentemente, essas pesquisas sobre a experiência dos PTCR nos países em desenvolvimento passaram a apontar também efeitos no desenvolvimento cognitivo e na aprendizagem escolar, que até então, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, não haviam sido detectados.
Pesquisa sobre os efeitos educacionais do Bolsa Família concluída na Universidade de Sussex, na Inglaterra, em 2012 ("A contribuição do Bolsa Família para o sucesso educacional de crianças economicamente desfavorecidas no Brasil") sugere que o tempo de participação no programa, associado ao valor per capita do benefício pago às famílias, concorre para a melhora dos resultados escolares.
Usando o teste de Língua Portuguesa da Prova Brasil (2007), aplicado em alunos do 5º ano do Ensino Fundamental (antiga 4ª série), a pesquisa estimou que em escolas onde todos os alunos são beneficiários do Bolsa Família há uma diferença média de 11 pontos (0,62 de um desvio padrão) no exame a favor daquelas escolas onde o tempo médio de participação das famílias no programa é de três anos a mais. O mesmo estudo aponta uma redução de 14 pontos (0,85 de um desvio padrão) na diferença média dos resultados em Português entre escolas sem beneficiários e escolas com todos os alunos beneficiários quando o tempo médio de participação dos estudantes no Bolsa Família aumenta de um para quatro anos. O estudo aponta ainda que, em escolas com ampla maioria de alunos beneficiários do programa (80% ou mais), a taxa de abandono é reduzida em 0,8 ponto percentual para cada ano adicional na média de tempo das famílias no programa. E que a taxa de aprovação dos alunos do 5º ano aumenta 0,6 ponto percentual para cada R$ 1 de aumento no valor médio do benefício per capita pago às famílias.
Esses resultados corroboram a ideia de que os programas de combate à pobreza devem ser sustentados durante todo o tempo em que as crianças e jovens das famílias pobres estiverem na escola. Isso permite atenuar os efeitos adversos que a pobreza tem sobre a educação e criar oportunidades reais de permanência na escola e de melhoria de resultados escolares.
Sempre nos perguntamos o que a educação das crianças pobres pode fazer para reduzir a pobreza no futuro. Devemos começar a nos perguntar também o que a redução da pobreza das crianças pode fazer por sua educação no presente.
A guerra contra a pobreza no Brasil iniciou-se 40 anos depois dos EUA. Vencê-la no longo prazo depende de sustentar no tempo os esforços distributivos do presente. Tempo em que as crianças e jovens estão na escola, construindo o seu futuro e o futuro do país.
Armando Simões, especialista em políticas públicas e gestão governamental da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome, é mestre em política social e desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science e PhD em educação pela Universidade de Sussex.


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Incomodem-se - Nina Horta

folha de são paulo

Incomodem-se
Se não tem curiosidade por um produto novo, larga a cozinha, meu bem, vai procurar teu espaço
Fico brava quando encontro juventude totalmente desmotivada. Sugiro ao jovem, por exemplo, que vá à Liberdade, que leia o livro do David Chang, que assista ao vídeo do Momofuku (o nome do restaurante dele em Nova York), que leia a revista que ele criou, a "Lucky Peach", e, a partir disso, comece a inventar qualquer coisa semelhante com comida brasileira.
Ele me olha com cara de paisagem. Não sabe inglês, menino? Faz isso com o livro da Ofélia, da Palmirinha, das dezenas de autores brasileiros. Foi ao encontro do caderno "Paladar" (do jornal "O Estado de S. Paulo") com tanta novidade?
Se não se interessar pelo assunto no qual trabalha, se não quer conhecer seus pares, se não tem curiosidade por um produto novo, larga a cozinha, meu bem, vai procurar teu espaço.
Se não forem curiosos agora, quando chegarem a uma vetusta idade, não vão poder visitar países de mochila, entrar na cozinha dos restaurantes, subir e descer morros atrás de um bar escondido, ler até estufar o olho, experimentar receitas de brotos de bambu, substituir as raspas de bonito por raspas de porco! Renascer por meio da imaginação e da curiosidade!
Claro que estou falando para quem trabalha com cozinha. Estou falando com chefs de restaurantes, chefs de bufê, com todas as brigadas que trabalham no ramo. Com quem manda e com quem obedece. Do patrão ao lavador de louça.
Juro, meninos, sem olhar atento, sem prazer na língua, sem humor, sem generosidade, não vai dar. Os tempos estão bicudos. É a hora da sobrevivência dos mais aptos, se não correrem, se não derem de si o melhor, o bicho pega. Por favor, não fiquem nos seus empregos empatando quem quer ir para frente. Atenção, Exército de Brancaleones acomodados nas cozinhas do mundo inteiro. Se vocês não tiverem dentro de si o perfeccionismo de quem quer ser o primeiro, a vontade de ser diferente, vão é se afogar na massa dos acomodados.
Comecei toda essa arenga ao ver o vídeo do David Chang, coreano, americano, dono do Momofuku. Logo no começo, ele abre um pacotinho de lâmen, de Miojo, e começa por comê-lo cru com o pozinho por cima, com a boca melhor do mundo, lembrando-se da infância.
Dali, ele passa a jogar o Miojo cozido no liquidificador e a fazer um tentador nhoque em três minutos, com muita cebolinha, glup, glup. O que ele quer é misturar as ideias do outro com as suas, divertindo-se à grande, no processo.
Por favor, aqueles que não foram mordidos pelo assunto "comida" bem que poderiam trabalhar noutro lugar que não fosse cozinha, achar o seu nicho não vai ser tão difícil.
Não vem que não tem, "sou pobre, não estudei, moro longe, a cozinha é muito quente". É por isso mesmo, porque não estudou vai estudar agora, o simples contato com outro cozinheiro vai te dar forças, aproveite um dos poucos lugares onde ainda existem mestres que também foram pobres em cozinhas quentes. Cada um, à sua volta, tem um monte de coisas pra ensinar e trocar. Avante, molecada, saiam do espaço de conforto, incomodem-se, aprendam antes que seja tarde.
ninahorta@uol.com.br
Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.uol.com.br

    MARTHA MEDEIROS Sociedade ilimitada

    Zero hora 15/05/2013

    Tenho um amigo que é inteligente, mas nunca desenvolveu o hábito de ler. Fui a primeira escritora que ele conheceu pessoalmente, então aproveitei para, devagarzinho, introduzi-lo nesse novo mundo, primeiro dando a ele livros meus (ora, ora), e depois sugerindo outros melhores.

    Ele foi bastante receptivo, mas eu percebia sua dificuldade em se fixar na leitura, em realmente embarcar na história – lia três páginas num sábado, mais três na quinta-feira, e assim, nesse pinga-pinga, levava meses até chegar à última. Semana passada, conversamos e ele me contou, orgulhoso, que já havia lido seis livros desde o início de 2013.

    Parece pouco para quem lê 40, 50, 60 livros por ano, mas se compararmos com a média nacional anual (quatro, sendo que apenas dois são lidos até o fim e estão incluídos a Bíblia e os didáticos), seis livros de ficção entre janeiro e maio é uma façanha. Meu amigo está lendo mais, e com mais voracidade. Ele até brincou comigo: “Pareço aqueles fumantes viciados que quando estão no finalzinho da carteira já precisam ter outra fechada aguardando”. Ele fuma apenas três carteiras por dia, ainda bem que não é um fumante viciado.

    Seis livros e mais ampliação de horizonte. Seis livros e a mágica de começar a escrever melhor, a se desamarrar de ideias prontas, a descobrir como vivem e sentem outras pessoas. Seis livros e menos televisão, seis livros e menos conversa fiada, seis livros e mais autoestima, seis livros e emoções nunca antes experimentadas, seis livros e outros seis na sequência, e mais 10, mais 17, quantos forem necessários até criar em cada leitor a sensação de pertencer a uma sociedade aberta, culta e evoluída.

    Escrevi agora sobre a sensação de pertencer e isso me remeteu ao Clube Social Pertence, conduzido por Sarita Zinger e Victor Freiberg, que há 13 anos trabalham com deficientes. É um projeto de socialização de jovens que possuem poucas oportunidades de deixar o convívio familiar, devido a suas necessidades especiais.

    O clube programa saídas, em pequenos grupos, para cinemas, teatros, restaurantes, churrascos, jogos esportivos e outros eventos, a fim de que aqueles que possuem restrições físicas e mentais possam desenvolver múltiplas vivências e se sentir integrados. A experiência tem sido um sucesso, mas falta mais divulgação, então eis os contatos: www.clubesocialpertence.com.br e www.facebook/clubesocialpertence.com.br.

    Nem todo vício é ruim. Nem toda dependência é danosa. Um livro emendado no outro. Uma pessoa contando com outra. O que parece prisão, é justamente o contrário.

    Sexo na velhice - Claudia Collucci

    folha de são paulo

    Sexo na velhice


    "Neste momento das nossas vidas, Willie e eu estamos num desses umbrais, o da maturidade, quando quase tudo se deteriora: o corpo, a capacidade mental, a energia e a sexualidade.
    Que diabo nos aconteceu? (...) Certa manhã nos vimos despidos no espelho grande do banheiro e ambos nos sobressaltamos. Quem eram aqueles velhinhos intrusos em nosso banheiro?
    Nesta cultura, que supervaloriza a juventude e a beleza, são necessários muito amor e alguns truques de ilusionista para manter vivo o desejo pela pessoa que antes nos excitava e agora está achacosa e gasta.
    Em minha idade respeitável, na qual me dão desconto no cinema e no ônibus, tenho o mesmo interesse de sempre pelo erotismo. Minha mãe, que completou 90, diz que isso nunca acaba, mas é melhor não espalhar, porque o resultado é chocante; supõe-se que os velhos são assexuados, como as amebas.
    Por dentro Willie [William Gordon, com quem está casada há 26 anos] não mudou, continua sendo o mesmo homem forte e bom por quem me apaixonei.
    Por isso estou empenhada em manter acesa a paixão, embora já não seja o fogo de uma tocha, mas a chama discreta de um fósforo. Outros casais da nossa idade exaltam os méritos da ternura e do companheirismo, que substituem o alvoroço da paixão, mas já avisei a Willie que não pretendo substituir a sensualidade por aquilo que já tenho com a minha cachorrinha. Ainda não..."
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    É dessa forma honesta e divertida que a escritora Isabel Allende, 70, nos introduz ao seu mais recente livro: "Amor" (Editora Bertrand Brasil, 240 págs, R$ 29), que reúne seus principais contos de amor.
    Ao falar abertamente sobre sexo e sexualidade na velhice, Isabel presta um grande serviço não só à população de idosos, mas a todos nós que um dia chegaremos lá.
    O tema é ainda um tabu, motivo de vergonha e constrangimento para muitos idosos. Mas não precisaria ser assim, dizem os especialistas.
    O que se prega hoje é que o sexo na terceira idade pode ser sim prazeroso, mas depende de como encaramos o envelhecimento e de como vamos driblar as limitações naturais desse processo.
    Existem, é claro, mudanças fisiológicas reais. O homem pode demorar mais para se excitar, ter ereção e orgasmo. A mulher sofre com a diminuição da elasticidade, o ressecamento vaginal e sente dor durante a penetração.
    Alguns medicamentos também podem dificultar a ereção e o desejo, como os anti-hipertensivos ou antidepressivos. Um ajuste na dosagem ou a troca de medicação pode melhorar isso.
    Lubrificantes à base de água diminuem a dor da penetração no caso das mulheres. Para os homens, as drogas para disfunção erétil são de grande ajuda --e de preocupação também.
    Há um aumento no índice de doenças sexualmente transmissíveis em idosos, incluindo o HIV. Os mais velhos raramente usam preservativos, o que representa um grande risco.
    Uma vida sexual ativa também depende de conversa, de trocas. Saber o que é mais prazeroso para o parceiro e fazer as adaptações necessárias também é muito importante nessa fase da vida.
    A questão prioritária, porém, é derrubar estereótipos e preconceitos. A sociedade ainda vê a sexualidade muito atrelada à beleza e juventude. Isso coloca uma barreira psicológica, principalmente para as mulheres.
    Daí a importância do livro da septuagenária Isabel Allende. Não é negar as dificuldades do envelhecer. Mas sim encontrar formas de dar mais qualidade e alegria aos dias que nos resta.
    Avener Prado/Folhapress
    Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de "Experimentos e Experimentações". Escreve às quartas, no site.

    Minha História - Raimundo Arruda Sobrinho

    folha de são paulo


    MINHA HISTÓRIA - RAIMUNDO ARRUDA SOBRINHO, 74
    Memórias do canteiro central
    Por 20 anos, ele foi o 'poeta das ruas' de São Paulo, sempre no mesmo lugar; um ano após reencontrar o irmão e ser levado para sua casa em Goiás, continua a escrever, agora uma nova história
    RESUMO Conhecido como "poeta das ruas" de São Paulo, Raimundo Sobrinho, 74, passou 20 anos no canteiro central da avenida Pedroso Morais, zona oeste. Em dezembro de 2005, a Folha contou sua história. Há um ano, ele foi encontrado pelo irmão -graças à ajuda de uma publicitária que se sensibilizou com sua história- e levado para morar em Goiânia com a família. Entre lacunas e imprecisões, ele conta sua trajetória.
    (...) Depoimento a
    CARLA GUIMARÃESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
    EM GOIÂNIA
    Os documentos dizem Raimundo Arruda Sobrinho, nascido em 1º de agosto de 1938, na fazenda Sol Ferino, em Porto do Sítio [atual Goiatins, norte do TO].
    Meu pai era vaqueiro. Nascido e criado na zona rural, fui levado aos 16 anos para a cidade, me entregaram para o prefeito, para educar.
    De agosto de 1954 a janeiro de 1961 morei com o prefeito. Ia no período das aulas e passava férias em casa.
    Em 1960 fui reprovado na segunda série ginasial, me desgostei e fui para São Paulo -cheguei em 10 de janeiro de 1961. Um conhecido me arranjou a passagem.
    Fui procurá-lo [o conhecido] na Vila Madalena, num cortiço de madeira. Amanheceu e já fui trabalhar de jardineiro.
    Em 1974 houve um desgosto qualquer, abandonei o jardim e fui vender livro velho pelas calçadas. Passava semana sem vender um. Não ganhei nem mais para alimentação.
    Dois anos depois estive internado na psiquiatria do Hospital das Clínicas. Muita gente diz: "Tu não sabe o que é um hospital psiquiátrico".
    Tive 14 endereços até 1978. Morei num quarto e cozinha sem luxo, mas asseado, onde ficou tudo que é meu.
    Quando me fizeram abandonar a casa em que eu morava, em 29 de abril de 1978, comecei a dormir pelas ruas.
    Ali me reconheci vítima de violação de direitos humanos. Procurei consulados, ninguém prestou atenção.
    Sem dinheiro para nada, decidi em 1980 tentar ir para a Argentina. Fui até onde disseram que era Uruguaiana (RS). Cheguei em julho de 1980. Alegaram falta de documento...
    Em outubro tentei o Paraguai. Cheguei num dia, no outro fui preso. Passei três dias na cadeia. O cônsul brasileiro me retirou. Deixaram-me onde disseram ser Foz do Iguaçu. Ali fui servente de pedreiro.
    No Uruguai entrei mas não pude ficar. As autoridades e eu nos desentendemos.
    Voltei a São Paulo em 1983. Estive no Morumbi, Jardim Paulista, Ibirapuera. Em 1985 fui para a av. Amarílis, onde vivi até junho de 1989.
    Numa madrugada chegou um carro cheio de rapazes, acordaram-me e ameaçaram-me. Na rua das Amoreiras fui apedrejado. Não mataram porque não quiseram.
    Ficava num local enquanto podia. Havia demonstração de desapreço, me afastava.
    Ali [canteiro central da Pedroso de Morais] cheguei era 27 de outubro de 1993. Vivia debaixo de plástico, noite e dia cercado por assaltantes.
    Em 1986, em novembro, nasceu o atual diário -diário de uma vítima de violação de direitos humanos.
    As mínipáginas não me lembro bem, mas nasceram nesse período. Tudo que escrevo assino, dato e localizo. O público dava os papéis.
    A produção é reduzida. Se a pessoa chegasse e eu tivesse minipágina, dava. Se não tivesse, prometia, fazia e guardava à espera da pessoa.
    Além delas tem os caderninhos. A capa é feita de papel de embrulho. Fiz centenas.
    O barulho dos automóveis não alterava para escrever, só a má iluminação. Qualquer hora escrevia, até debaixo de chuva. Arranjava um plástico, sentava numa lata de 18 litros e continuava trabalhando.
    Tem coisas nos meus escritos que considero de valor científico. Chegou um ponto que deixei de assinar meu nome, para assinar o pseudônimo "O Condicionado". Não me lembro a partir de quando. Comecei a ouvir "o condicionado". Descobri que era eu.
    Em 1986 veio um pessoal que disse ser do programa Flávio Cavalcanti [então transmitido pelo SBT], me entrevistaram e perguntaram se poderia ir ao programa. Trouxeram a mulher do Antônio Souza Porto [ex-prefeito de Goiatins] e o filho dela.
    Do programa me levaram para um hotel. No outro dia me arrastaram até Goiânia. Eu não queria vir. Passei um mês e voltei para o mesmo local que vivia, no Morumbi.
    ADAPTAÇÃO
    Desta vez disseram que foi com essa instituição dos celulares que me localizaram. Envolveu uma jovem que começou a frequentar o local que eu vivia [a publicitária Shalla Monteiro].
    Disseram que ela se comunicou com o Francisco [Arruda, irmão dele]. Ele foi lá duas, três ou quatro vezes, e terminou arrastando-me para cá. Eu não queria.
    Não teve problema de adaptação. Preferia continuar lá, porque aqui estou dando trabalho, ocupo espaço, consumo, como, bebo.
    Aqui a ordem foi que não preciso trabalhar. O que posso ajudar, faço. Limpar, varrer embaixo dessas mangueiras.
    Amanheceu o dia faço o que é possível, depois pego os papéis. O fundamental é o diário. As minipáginas faço o que posso. Aqui não tem muita necessidade delas. Lá precisava para dar a quem me desse alguma coisa, tenho a necessidade moral de retribuir com qualquer coisinha.
    Não me considero escritor, mas uma pessoa que sabe gastar papel. Não ganhei um centavo à custa do que escrevi. Tentei. O mundo editorial não pôde pagar coisa nenhuma. Publicar não quero.
    Não sei coisa nenhuma o que fazer da vida. Escrever, enquanto eu puder, vou escrever.

      Olívia IPA - Antonio Prata

      folha de são paulo

      Olívia IPA
      Fiz um curso para aprender a produzir cerveja em casa; a primeira leva deve chegar junto de Olívia, em junho
      Acabo de receber o e-mail da "Sinnatrah Cervejaria-Escola" e tremo de felicidade: agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, aguarda-me num pequeno galpão em Perdizes o tão desejado kit; dois panelões de alumínio, um moedor de cereais, uma serpentina resfriadora, um termômetro, um galão de plástico, um afixador de tampinhas e outras quinquilharias que, daqui em diante, me permitirão produzir e beber minha própria cerveja -se isso não for a mais perfeita tradução de "sustentabilidade", não sei o que poderia ser.
      Sábado passado, fiz o curso. Um dia inteiro no qual eu e uns outros 15 empolgados neófitos ajudamos o professor a preparar 20 litros de uma "American Pale Ale" -desde a moagem da cevada, passando pelo cozimento, adição do lúpulo, até a armazenagem no galão fermentador. Agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, nosso mosto está lá, repousando no pequeno galpão em Perdizes, aguardando que as leveduras, essas belas criaturas de Deus, levem a cabo sua nobre missão: transformar o açúcar do malte em álcool e CO2.
      O mais legal de produzir cerveja em casa é que, ao contrário do vinho, do ketchup ou dos cortes de cabelo "homemade" -iniciativas louváveis, certamente, mas de resultados sempre discutíveis-, a versão amadora desta simples mistura de água, malte, lúpulo e levedura, se preparada no capricho, fica melhor do que as opções disponíveis no mercado. Pelo menos, no nosso mercado, em que, tirando as ousadias de algumas bravas microcervejarias, o que vemos são diversos rótulos oferecendo as mesmas idênticas e insossas bebidas.
      Embora o "homebrewing" tenha existido desde sempre, a moda explodiu mesmo a partir dos anos 70, nos EUA, quando o presidente Jimmy Carter derrubou um resquício da Lei Seca que proibia os americanos de se aventurarem em suas cozinhas pelo fascinante mundo da cevada. Dali pra frente, muitos se profissionalizaram e hoje há por lá 15 mil microcervejarias criando receitas próprias, reavivando estilos europeus esquecidos havia séculos e levando a adição de lúpulo a níveis deliciosamente intoleráveis.
      O lúpulo é uma trepadeira cuja flor dá o amargor e parte do aroma à cerveja. Com qualidades antibióticas, ajuda também a preservar a bebida. Daí que, para proteger as cervejas destinadas às colônias, aonde chegavam após longas viagens de navio, os ingleses as preparassem com mais álcool e mais lúpulo. Assim nasceu a Indian Pale Ale (mais conhecida como IPA), estilo bem amargo e preferido de nove entre dez cervejeiros caseiros.
      Não fujo à regra: minha receita inaugural será uma IPA. Se tudo der certo, a primeira leva virá à luz no fim de junho, ao mesmo tempo em que outra produção, na qual minha mulher vem trabalhando com afinco há oito meses, der o ar de sua graça. Agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, Olívia recebe os últimos retoques e ganha peso, no conforto de uma barriga rotunda e bela, aguardando a hora de lançar ao mundo o seu brado retumbante. Será recebida com amor, carinho e 20 litros da "Olívia IPA". Peço aos amigos que tragam charutos, fraldas -e venham de táxi.

      Minha escolha médica - Angelina Jolie

      folha de são paulo

      Minha escolha médica
      A atriz Angelina Jolie conta como decidiu passar pela cirurgia e diz que não manteve o sigilo para que outras mulheres pudessem se beneficiar de sua experiência
      ANGELINA JOLIEESPECIAL PARA O “NEW YORK TIMES”Minha mãe combateu o câncer por quase uma década e morreu aos 59 anos. Conseguiu sobreviver por tempo suficiente para conhecer seus primeiros netos e tê-los nos braços. Mas meus outros filhos jamais terão a oportunidade de conhecê-la e descobrir o quanto ela era amorosa e carinhosa.
      Muitas vezes conversamos sobre a "mãe da mamãe" e me vejo tentando explicar a doença que a tirou de nós. As crianças perguntaram se o mesmo poderia acontecer comigo. Sempre respondi que não deviam se preocupar, mas a verdade é que tenho um gene "defeituoso", o BRCA 1, e isso eleva muito meu risco de ter câncer de mama e câncer de ovário.
      Meus médicos estimaram que eu tinha risco de 87% de câncer de mama e de 50% de câncer de ovário, ainda que os riscos sejam diferentes de mulher para mulher.
      Apenas uma fração dos cânceres de mama resultam de uma mutação genética herdada. As mulheres com BRCA 1 defeituoso têm, em média, 65% de risco de desenvolver a doença.
      Assim que eu soube que minha realidade era essa, decidi agir de modo proativo e minimizar o risco ao máximo.
      CIRURGIA
      Tomei a decisão de realizar uma dupla mastectomia preventiva. Comecei pelos seios porque meu risco de câncer de mama é mais elevado do que meu risco de câncer de ovário, e a cirurgia é mais complexa.
      Em 27 de abril, concluí os três meses de procedimentos médicos que a mastectomia requeria. Ao longo do período, pude manter o sigilo sobre o que estava acontecendo e continuar com meu trabalho. Mas agora decidi escrever a respeito com a esperança de que outras mulheres possam se beneficiar de minha experiência.
      Câncer continua a ser uma palavra que causa medo no coração das pessoas, produzindo um profundo senso de impotência. Mas hoje é possível determinar por meio de um exame de sangue se você é altamente suscetível a câncer de mama e câncer de ovário e agir a respeito.
      Meu processo começou em 2 de fevereiro com um procedimento conhecido como "nipple delay" [autonomização], que impede doença nos dutos mamários por trás dos mamilos e irriga a área com fluxo sanguíneo adicional.
      O procedimento causa alguma dor e muitos hematomas, mas aumenta a chance de preservar o mamilo.
      Duas semanas mais tarde, fiz a principal cirurgia, na qual o tecido do seio é removido e a área é ocupada por um preenchimento temporário. A operação pode demorar até oito horas.
      Quando você acorda, está com tubos de drenagem e expansores nos seios. Parece uma cena de filme de ficção científica. Mas, dias depois da cirurgia, já pode voltar à sua vida normal.
      Nove semanas mais tarde, a cirurgia final é completada com a reconstrução dos seios por meio de um implante. Houve muitos avanços nesse procedimentos nos últimos anos, e os resultados podem ser muito bonitos.
      Eu quis escrever este artigo para contar a outras mulheres que a decisão de fazer uma mastectomia não foi fácil. Mas estou muito feliz por tê-la tomado.
      FILHOS
      Minha probabilidade de desenvolver câncer de mama caiu de 87% para menos de 5%. Agora posso dizer aos meus filhos que eles não precisam ter medo de me perder para o câncer de mama.
      É animador que eles não vejam coisa alguma que lhes cause desconforto. Veem as pequenas cicatrizes que ficaram, e só. Tudo mais é a mamãe, a mesma à qual estão acostumados. E eles sabem que os amo e que farei qualquer coisa para ficar com eles pelo maior tempo possível.
      Do ponto de vista pessoal, não me sinto menos mulher. Sinto ter ganhado força por fazer uma escolha forte que de forma alguma diminui minha feminilidade.
      É minha sorte ter um parceiro, Brad Pitt, tão amoroso e tão presente. Assim, para quem tem uma mulher ou namorada que esteja passando por isso, é importante saber que você será parte importante da transição.
      Brad esteve no Pink Lotus Breast Center, onde fui tratada, durante cada minuto das cirurgias. Conseguimos encontrar momentos que nos permitiram rir juntos. Sabíamos que essa era a coisa certa a fazer por nossa família e que isso nos aproximaria. E foi o que aconteceu.
      Para qualquer mulher que esteja lendo este texto, espero que ele possa ajudá-la a saber que você tem escolhas.
      Quero encorajar todas as mulheres, especialmente as que tenham histórico familiar de câncer de mama ou ovariano, a buscar informações e procurar especialistas médicos que possam ajudá-las quanto a esse aspecto de suas vidas e a fazer escolhas pessoais informadas.
      Gostaria de apontar para o fato de que existem muitos médicos holísticos maravilhosos trabalhando em alternativas a uma cirurgia. Meu tratamento será postado no site do Pink Lotus Breast Center. Espero que isso seja útil para outras mulheres.
      O câncer de mama mata 458 mil pessoas por ano, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), principalmente em países de baixa e média renda.
      Garantir que mais mulheres tenham acesso a testes genéticos e tratamentos preventivos que podem salvar vidas deve ser uma prioridade, não importa quais sejam as origens e os meios das pacientes. O custo dos testes de BRCA 1 e BRCA 2, que é de mais de US$ 3.000 nos EUA, continua a ser um obstáculo para muitas mulheres.
      Optei por não manter o sigilo sobre minha história porque existem muitas mulheres que não sabem que podem estar vivendo sob a sombra do câncer. Também espero que elas possam passar por testes genéticos e, em caso de risco, que saibam que existem opções fortes para elas.
      A vida vem com muitos desafios. Aqueles que podemos encarar e sobre os quais podemos ter controle não devem nos assustar.
      Tradução de PAULO MIGLIACCI

        Os porquês de Azevedo - Matias Spektor

        folha de são paulo

        Os porquês de Azevedo
        Brasileiro eleito não representa o anti-Norte e tampouco é o porta-voz de todos os países do Sul
        Por que Roberto Azevêdo ganhou a eleição para a Organização Mundial do Comércio (OMC)?
        Para além do inegável misto de excelência técnica e habilidade política, os jornais ofereceram ao leitor duas explicações principais.
        A primeira atribui a vitória ao resultado de anos de trabalho diplomático em nível bilateral. A expansão da rede de relacionamentos do Brasil teria alavancado sua candidatura decisivamente.
        A segunda aponta para uma dinâmica Norte-Sul na qual os industrializados estariam em declínio relativo face aos países em desenvolvimento. Azevêdo seria a voz do Sul.
        Essas explicações, que se reforçam mutuamente, têm seus méritos. São, no entanto, imprecisas.
        A OMC nasceu no contexto da globalização de cunho liberal. O regime disciplinar criado por volta do ano de 1995 foi talhado em consonância com os interesses dos EUA.
        Em Genebra, sede da organização, os lobbies mais influentes incluíam Hollywood, Microsoft, multinacionais de alimentos e produtos farmacêuticos. As resistências a esse modelo começaram cedo. Movimentos antiglobalização denunciaram um organismo que, na prática, era controlado por um punhado de países ricos.
        Na mesa de negociação, os Estados Unidos e a Europa passaram a enfrentar demandas crescentes dos países do Sul. Em pouco tempo, a tensão Norte-Sul, que alguns consideravam coisa do passado, virou marca distintiva da vida da OMC.
        Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 apenas pioraram a situação: Washington pôs o pé no acelerador para promover sua visão de comércio livre, ao passo que o Sul puxou o freio de mão.
        Na liderança da resistência estava Celso Amorim, embaixador de Fernando Henrique na organização. Ativista e ambicioso, criou poderosa coalizão.
        De lá pra cá, muita coisa mudou. A OMC perdeu força, os EUA começaram a correr por fora e a China virou ameaça aos interesses comerciais de muitos países do Sul.
        Assim, a divisão Norte-Sul não é mais a dinâmica que estrutura a política naquele órgão. Embora ainda exista, não é ela a principal força por trás da vitória de Azevêdo.
        Ele foi o candidato preferido da Comissão Europeia e de muitos europeus.
        Em Washington, seu nome foi muito bem recebido (o governo americano apoiou o candidato mexicano por motivos de política interna).
        Azevêdo não representa o anti-Norte. Tampouco é porta-voz de todo o Sul. Entender isso direito é essencial para entender o perigoso caminho pelo qual enveredou o comércio internacional.
        -
        Faleceu Kenneth Waltz, o mais influente teórico das Relações Internacionais. Para ele, se você quer entender a política internacional, precisa deixar de lado os indivíduos e os países que eles representam.
        A política entre as nações não resulta das preferências das partes, mas de um princípio organizador autônomo (algo semelhante ao papel do "mercado" em economia).
        Ele desmontaria as explicações mais simplistas sobre a vitória de Azevêdo em um instante.