sábado, 7 de setembro de 2013

Inquisição e Parada Gay - Luiz Mott


A TARDE/BA -  07/09/2013

Felizmente a história não para. E podemos
fazê-la mudar para melhor. Depende
do nosso engenho e arte! O fato
de eu manter uma coluna quinzenal n’A TARDE
comprova tal progresso: por mais de duas
décadas, fui humilhado, chamado até de xibungo,
travesti repelente e persona non grata
por um finado jornalista, malgrado os protestos
de diversos Reitores da Ufba e vips
nacionais e estrangeiros. Essa mesma criatura,
autoproclamado Exterminador de Veados,
chegou a publicar: “Mantenha Salvador
limpa, mate uma bicha todo dia!”. Felizmente
esse longo e vergonhoso capítulo de homofobia
foi enterrado. Xocotô beroló!

Coincidentemente, nesta primeira semana
de setembro realizam-se em Salvador dois
eventos já não mais opostos: o II Simpósio
Internacional sobre Inquisição e a XII Parada
Gay da Bahia. Apresentarei duas comunicações:
uma sobre a dúvida dos Inquisidores se
queimavamos sodomitas ou degredavam para
o Brasil – de quatro mil denunciados, só 30
acabaram na fogueira, nenhum brasileiro; a
outra fala é sobre os sodomitas da Bahia,
dentre eles, dois governadores, o valente
construtor do belo Forte São Marcelo, Diogo
Botelho (1607) e Câmara Coutinho (1690), a
quem Gregório de Matos esculhambou em
diversos sonetos. Tudo documentado,
tim-tim por tim-tim, na Torre do Tombo.

O outro destaque nesta primeira semana
setembrina é a Parada Gay, que reunirá mais
de meio milhão de pessoas neste domingo à
tarde no Campo Grande. Presença confirmada
de Daniela Mercury e ainda no suspense
se o governador e prefeito aceitarão nosso
convite e terão a mesma coragem varonil dos
seus congêneres do Rio e São Paulo, que são
aplaudidíssimo pelos participantes desta gaia
manifestação cultural de cidadania.

A História felizmente mudou para melhor:
o mundo civilizado aprendeu a conviver com
negros, índios, judeus, raças que os Inquisidores
chamavam de “infectas”; os protestantes
e candomblezeiros podem seguir sua
fé; até o papa defende agora que os gays
devem ser respeitados! Viva o arco-íris!

A rica Bahia de duas orquestras - JC Teixeira Gomes


A TARDE/BA - 07/09/2013



Para um articulista que se acostumou a fazer jornalismo de combate, a vida pública do Brasil é sempre um prato cheio: à minha disposição, por exemplo, estão aí mais uma vergonha do Congresso Nacional, preservando o mandato do deputado-prisioneiro Donadon, e o apagão da última semana.

Apesar da fartura de temas desagradáveis, prefiro hoje analisar o que considero uma surpresa em nossa vida cultural: a excelência dos programas de música clássica em Salvador com os padrões de qualidade revelados pelas orquestras do Neojibá e a Sinfônica da Bahia, respectivamente sob a responsabilidade do pianista-regente Ricardo Castro e do maestro Carlos Prazeres. À frente de músicos notavelmente competentes e talentosos, ambos estão mostrando que a Bahia reúne todas as condições para manter uma vida musical de excepcional depuração sinfônica, relevância artística e refinamento interpretativo. Há muito tempo que isto não acontecia em Salvador.


Há um público
emergente nas salas
de concerto que
precisa ser educado,
para evitar que
nossas magníficas
orquestras de hoje
continuem a sofrer
constrangimentos


Um leitor mais rigoroso poderá indagar-me: - “E que competência possui o jornalista para tais avaliações?”. Modestamente, responderei: a competência do “consentimento da orelha”, ou seja, o hábito de ouvir música
sinfônica nas maiores salas de concerto, em minhas inúmeras viagens, e de possuir uma das maiores discotecas do Brasil, hábito de colecionador obsessivo que herdei na prolongada convivência com meu mestre nessa matéria, o doutor Augusto Sampaio. É muito título. De raspão, devo explicar que a curiosa expressão “consentimento da orelha” foi criada por um historiador quinhentista português, para designar poetas e músicos que sabem ouvir e avaliar devidamente os sons. É baseado nessas prerrogativas que
devo repetir, e com enorme alegria: pelo magnífico trabalho de Ricardo Castro e Carlos Prazeres, a Bahia possui, hoje, duas orquestras sinfônicas de altíssimo nível, capazes de brilhar em qualquer grande centro musical.

Tendo acompanhado o trabalho da Neojibá desde os primeiros passos, não vejo a excelência dessa orquestra de jovens baianos como um milagre, mas sim como o coroamento de um trabalho sério, contínuo e obstinado de um devotado músico, o pianista Ricardo Castro. Poderia ele estar desenvolvendo vitoriosa carreira de intérprete internacional. Preferiu, ao contrário, ficar na Bahia para iniciar um trabalho pioneiro de preparação de adolescentes que se revelaram músicos de surpreendente categoria, longe dos estereótipos da vida musical baiana subjugada pela percussão ou pelo frenesi carnavalesco.

Quando ouvi essa meninada há poucos dias interpretando a 7ª sinfonia de Beethoven, obra de soberba arquitetura musical e dificílima execução, admiti, extasiado, que tinha sido preservada a tradição iniciada na década de 50 pelos Seminários Livres de Koellreutter, na Universidade da Bahia. A música está no sangue dos baianos! O doutor Hugo Maia, melômano egrégio, ouvindo a Neojibá, arrebatado, gritou- me: “Estamos em Berlim!” Bem, para quem não sabe, os alemães são os músicos mais competentes do mundo.

Quanto à Orquestra Sinfônica da Bahia, que vinha de uma fase de indefinição, ganhou novo impulso com a presença do maestro Carlos Prazeres. De regência elegante e batuta vigorosa, sua última interpretação do concerto para violino de Tchaikovsky, com o pianista norte-americano Gil Shahan, que encantou os baianos, permanecerá nos anais dos concertos sinfônicos da Bahia como uma das suas noites mais memoráveis. Não foi acaso ou exceção, pois muitos têm sido os concertos da Osba que empolgam.

Para terminar, apenas uma sugestão a Ricardo Castro e Carlos Prazeres: que iniciem uma pedagogia junto ao público baiano para que aprenda a aplaudir nas horas certas. É da tradição da música internacional que intérpretes e orquestras não sejam aplaudidos nos intervalos das peças, mas apenas no final das execuções, para não perderem a concentração. Podemos achar justa ou não essa prática, mas é universal e fora de discussões. Há um público emergente nas salas de concerto que precisa ser educado, para evitar que nossas magníficas orquestras de hoje continuem a sofrer constrangimentos.

Faria tudo outra vez (Rose Marie Muraro)‏ - Carlos Herculano Lopes

Uma das mais importantes pensadoras e ativistas brasileiras, Rose Marie Muraro chega aos 82 anos com problemas de saúde que a impedem de trabalhar. Corajosa e humilde, apelou para a ajuda dos amigos 


Carlos Herculano Lopes

Estado de Minas: 07/09/2013 


Depois de meio século de dedicação ao Brasil, Rose Marie Muraro revela que está amando e tem muito prazer em viver, mesmo com todas as limitações   (Fábio Costa/J. Com./D.A Press)
Depois de meio século de dedicação ao Brasil, Rose Marie Muraro revela que está amando e tem muito prazer em viver, mesmo com todas as limitações


A Rose Maria Muraro com quem me encontrei no início da semana, no modesto apartamento onde vive desde 1969, no Bairro Peixoto, um lugar dos mais tranquilos da Zona Sul carioca, ainda tem o mesmo entusiasmo na voz. Mas exibe algumas pausas quando fala do amor pelo Brasil, do encanto sempre renovado pelos livros, das lutas a favor da emancipação da mulher, do enfrentamento à ditadura militar e tantos outros bons combates. Rose Muraro é uma pessoa que, como poucas, soube viver plenamente.

Mas a inevitável passagem do tempo – ela está com 82 anos –, somada a uma quase cegueira (42 graus de miopia), além da saúde abalada, sem falar da precária condição financeira, a levaram a tornar pública sua situação. Em uma mensagem destinada aos amigos, ela, com a coragem dos que nada devem, pede ajuda para sobreviver com dignidade.

Num dos trechos da carta que comoveu o Brasil e fez com que várias pessoas se manifestassem – inclusive com ajuda em dinheiro – ela afirma: “Depois de 50 anos de dedicação à sociedade brasileira estou hoje numa situação financeira delicada, porque não tenho mais condições físicas para ler nem escrever, pois minha miopia aumentou muito e uma pneumonia me levou a força das pernas. Continuo trabalhando em casa, dando assessoria a um senador e transformando algumas das minhas obras em e-books. Meus familiares estão fazendo o que podem, me dando assistência e ajuda financeira, entretanto, meus custos com remédios, acompanhantes e outras despesas, excedem muito a minha receita”.

Ao Estado de Minas, completando a mensagem, ela disse ainda que está nessa situação porque, ao longo da vida, resolveu pensar como quisesse, de forma independente, e a não seguir uma carreira acadêmica, o que poderia ter sido mais cômodo, como aconteceu com várias colegas. “Talvez este tenha sido o meu erro, pois acabei caindo no INSS, do qual recebo muito pouco. Mas não me arrependo de nada. Se tivesse de fazer tudo de novo, faria. E se deixei vir à tona a realidade pela qual estou passando, mesmo contra a vontade da família no primeiro momento, foi porque sempre fui uma pessoa humilde, que gosta de lidar com a verdade.”

Deitada em uma poltrona reclinada, que fica na sala de visitas do apartamento, tendo de um lado um vaso de flores vermelhas artificiais e do outro um telefone, por meio do qual, principalmente depois que divulgou a mensagem, tem falado com muita gente, Rose Muraro segue ponderando sobre o resultado de suas escolhas. “Não sabia que continuava sendo tão querida neste país. Achei que as pessoas já tivessem me esquecido, porque de uns anos para cá estou quieta no meu canto. Não saio mais, não lanço livros, não viajo dando palestras. Mas não fui esquecida e isto me deixa muito feliz. É comovente.”

Uma das intelectuais mais respeitadas do Brasil, com mais de 40 livros publicados, Rose Marie foi responsável pelo catálogo de duas das maiores editoras do país, a Vozes e a Record. Por elas, sempre corajosa, lançou dezenas de autores, muitos deles hoje consagrados e agradecidos pelo apoio da primeira hora. Sem falar de nomes de ponta da cultura brasileira, como Leonardo Boff, de quem esteve ao lado durante a criação da Teologia da Libertação, que mexeu com os alicerces da Igreja Católica. Mesmo com todas as suas limitações atuais, ela conta que não para de produzir.

E depois de tomar um suco trazido pela secretária Penha, que a tem ajudado muito nesse momento de dificuldades, ela diz que está escrevendo um livro sobre o amor. “No meu entender, é o sentimento mais sublime que existe. O amor é tudo aquilo que vem do nosso eu mais profundo, do nosso inconsciente. Eu vivi e vivo muito o amor. Inclusive, já há 10 anos, tenho um novo companheiro, que é muito mais jovem do que eu”, revela com um sorriso.

Mas levar adiante o projeto do livro não está sendo fácil, pois devido ao problema da visão ela tem que seguir um método trabalhoso: primeiro dita o texto, que em seguida é digitado no computador e depois lido a ela, para as revisões e emendas. “Mas no meu caso tem de ser assim, porque na hora em que parar de produzir, tenho certeza que paro também de respirar, e aí será o meu fim”, diz.

Mesmo sem sair mais de casa e vivendo dias difíceis, Rose Marie é uma mulher atenta às coisas do dia a dia e à situação do Brasil, pelo qual não esconde a paixão. Para ela, que apostou em Lula, e continua acreditando em Dilma, o país nunca mais será o mesmo depois destes dois governos, pois com eles o povo descobriu o poder que tem. “Basta ver as últimas manifestações, que aconteceram democraticamente, apesar dos bagunceiros infiltrados. Arrisco dizer que 2014, por uma série de razões, será um ano definitivo para nossa história.”

“Patrona em vida do feminismo brasileiro”, como faz questão de dizer, os olhos de Rose Muraro, que tem 5 filhos, 12 netos e quatro bisnetos, brilham quando o tema vem à tona. Conta que foi a primeira mulher a defender o feminismo no Brasil e, já em 1974, quando as outras mulheres ficavam escondidas dentro de casa, ela ia para a rua gritar por seus direitos e nunca teve medo de ninguém, nem dos militares durante o período da ditadura, que a perseguiu a ponto de afastá-la de seu cargo na Editora Vozes, ligada à Igreja.

“ Se hoje temos uma presidenta da República, que é minha amiga, e uma ministra da Casa Civil, Gleise Hoffmann, que foi minha aluna, toda esta história começou naquela época, quando fomos para as ruas”, diz Rose. Daí a pouco, a Penha, que não se descuida da amiga, lhe traz outro suco gelado.


Depressão e humor

“Às vezes me deprimo com a realidade que estou vivendo, mas logo fico boa, porque tenho uma coisa tipicamente carioca, que é a sacanagem, a capacidade de fazer piada com tudo. Mesmo só me locomovendo com a ajuda de um andador e da minha secretária, até mesmo para ir ao banheiro, continuo achando que tudo vale a pena e que a vida é muito boa. Mas não consigo mais me virar sozinha, como fazia antes. Preciso de ajuda para tudo.”


Pela libertação

“Leonardo Boff foi lançado por mim, na Editora Vozes. Fizemos juntos a Teologia da Libertação, que foi um movimento tão importante como o feminismo: a teologia libertou os pobres e o feminismo libertou a mulher brasileira, que até então estava aprisionada nos seus estereótipos. Depois destes dois movimentos, o Brasil nunca mais foi o mesmo. Sou vista como uma líder feminista, mas tenho horror desta palavra, pois sempre preferi o consenso, que, a meu ver, é o melhor jeito se chegar a um bom termo.”


Sapatos do papa

“O papa Francisco é o grande cristão da Igreja Católica depois de João XXIII. Ele é um homem simples, anda com sapatos velhos. Se misturou com o povo aqui no Rio de Janeiro, não quis saber de papamóvel. Ele tem uma visão de mundo fantástica. A meu ver era de um homem assim que a Igreja estava precisando para se renovar, para tentar recuperar o seu rebanho.”


Intelectual impossível


A obra de Rose Marie Muraro se filia a uma tradição latino-americana do intelectual que exerce o papel de livre pensador. Fora da universidade, foi preciso reunir conhecimentos variados que fizessem dela uma voz que destoasse dos especialistas. Onde o acadêmico busca recortes, Rose Marie mirou o que estava além das escolas. Rose estudou matemática e física antes de se dedicar às ciências humanas. Escreveu livros de sociologia, política e antropologia. Publicou obras importantes sobre automação, história e tecnologia. Seus livros sobre a questão feminina abrangem desde elementos antropológicos e culturais até a dimensão política.

Uma de suas obras mais conhecidas, Sexualidade da mulher brasileira, de 1983, marcou época. O estudo, com impressionante aparato científico e de pesquisa, incorporou a dimensão de classe ao discurso do feminismo tradicional. Não era ciência importada, mas feita por brasileira para brasileiras. Se a mulher sofria com o machismo, a mulher pobre sofria duplamente.

Rose Marie Muraro foi ainda importante na definição dos rumos da Igreja Católica progressista, estando sempre próxima dos formuladores da Teologia da Libertação. Como editora, chegou a ganhar um prêmio internacional pela capacidade de resistência num dos momentos mais burros da história brasileira recente. Com sua visão limitada por dezenas de graus de miopia, Rose sempre enxergou longe.

Indignação e esperança - Carolina Braga

Livro do sociólogo espanhol Manuel Castells analisa as raízes dos protestos que se alastram pelo mundo. Fenômeno é fruto das novas formas de autocomunicação 


Carolina Braga

Estado de Minas: 07/09/2013 


Desde junho, jovens ocupam as ruas da capital paulista     (Nelson Almeida/afp)
Desde junho, jovens ocupam as ruas da capital paulista


No primeiro momento, ninguém entendeu nada. Do grito de indignação pelo aumento de R$ 0,20 da passagem de ônibus em São Paulo ao clamor nas avenidas do país, a coisa tomou proporção – dentro e fora da rede – capaz de confundir até mesmo quem se dedicava a refletir sobre a sociedade brasileira. No calor da hora, foi um vale-tudo na busca (ou criação) de sentidos para o fenômeno “vem pra rua”.

O sociólogo espanhol Manuel Castells, no entanto, tinha o discurso pronto. Não exatamente sobre a realidade brasileira, mas o ponto de vista de um observador atento ao modelo de manifestação social que nasceu na Tunísia, passou pelo Egito e outros países árabes, conquistou a Espanha, chegou aos Estados Unidos e lotou as ruas brasileiras em junho.

Quando o movimento estourou no país, o livro Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet (Zahar) havia sido publicado em inglês e espanhol fazia mais de seis meses. Curiosamente, não foram necessárias grandes alterações para editá-lo por aqui. “Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse”, registra o autor no pósfácio à edição brasileira.

Desde a década de 1970, Manuel Castells se dedica a pensar as transformações sociais. Por isso, movimentos gerados pelo povo não são novidade para ele. Muito menos associá-los a mudanças observadas a partir da difusão da internet. Nascido em 1942 na pequena cidade espanhola de Hellín, no Reino de Castilla-La Mancha o pesquisador é um dos pioneiros no estudo dos impactos sociais das novas tecnologias de comunicação.

Redes de indignação e esperança... pode ser dividido em três partes. No prólogo, Castells, além de introduzir o objeto da análise – os movimentos sociais ao redor do globo –, convida o leitor a conhecer algumas ideias que permeiam sua obra. Nem se trata dos tópicos já abordados em Sociedade em rede – A era da informação: economia, sociedade e cultura, lançado em 1997, mas a perspectiva sobre o poder apresentada em Communication power (2009).

Castells parte da premissa de que as relações de poder “são constitutivas da sociedade porque aqueles que o detêm constroem as instituições segundo seus valores e interesses”. Segundo o autor, há dois caminhos para exercer o poder: pela coersão ou pela construção de significados na mente das pessoas.

Embora defenda que essas relações geralmente estão embutidas nas instituições sociais, Castells ressalta: onde há poder sempre haverá contrapoder. A verdadeira configuração do Estado e de outras instituições que regulam a vida das pessoas depende da constante interação entre eles.

Significado

Ao considerar que a luta fundamental pelo poder é a batalha pela construção de significado na mente das pessoas, o sociólogo chama a atenção para a importância de entender os processos comunicativos contemporâneos. “A mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas de construção de significado e, portanto, a produção de relações de poder”, ressalta.

Neste contexto, o autor destaca a emergência da autocomunicação, ou seja, os próprios cidadãos são capazes de produzir e manejar mensagens de modo autônomo. Essa característica é determinante tanto da sociedade em rede quanto dos movimentos que emergem dela. Afinal, seja no Brasil ou na Tunísia, Egito, Estados Unidos e Espanha, as recentes manifestações surgiram justamente da capacidade das pessoas de se organizar em rede e de exercer o contrapoder de modo autônomo, por meio de mídias não tradicionais.

Manuel Castells aponta a Tunísia como arauto da nova forma de movimento social em rede. Trata-se do primeiro país em que se pôde observar certo padrão nas manifestações de rua. Coube a um grupo ativo de cidadãos com habilidade no uso da internet agir e estimular os protestos. O vídeo tunisiano com a imagem da autoimolação de um vendedor ambulante, de 26 anos, multiplicou-se na rede, despertando a coragem de jovens para sair às ruas e exigir mudanças.

Canto

Na Islândia, o “herói rebelde” foi o cantor Hordur Rorfason. Munido de sua guitarra, ele se sentou diante do Parlamento e expressou a fúria em canto. Outra cena multiplicada pela internet. No Egito, publicações do YouTube e comunidades no Facebook convocaram o cidadão a protestar em público. Uma delas surgiu em alusão à memória de um jovem espancado até a morte pela polícia depois de distribuir vídeo sobre a práticas corruptas naquela instituição.

No Brasil, na Espanha e nos Estados Unidos também foi assim. Na segunda parte do livro, a partir de sua observação e da tese de que o modelo dos protestos contemporâneos é o mesmo, Castells registra “convocações pela internet, constituição de redes no ciberespaço e apelos pela ocupação do espaço urbano para pressionar o governo”. No caso de países árabes, a abertura do processo de democratização estava em foco. Por aqui, escreve Castells, “a democracia foi reduzida a um mercado de votos em eleições realizadas de tempos em tempos, mercado dominado pelo dinheiro, pelo clientelismo e pela manipulação midiática”.

Crise
Ao longo do livro, o sociólogo faz questão de ressaltar seu objetivo: não quer defender teses, apenas refletir sobre o que viu, ouviu ou leu, pois aprendeu a investigar processos de transformação social. Eis o que estamos vivendo. Sendo assim, no sexto capítulo, Manuel Castells amarra todos os fios que porventura tenha deixado soltos.

O autor entende que os movimentos sociais geralmente nascem de crises nas condições de vida. Independentemente de onde seja, ou de qual modelo siga, há sempre profunda desconfiança em relação às instituições políticas. Embora os protestos exibam padrões determinados e o papel da internet seja inquestionável, Castells identifica um problema de compreensão. Para ele, a mídia e círculos acadêmicos têm dificuldade em identificar o papel das tecnologias da comunicação.

“O que é irreversível tanto no Brasil quanto no mundo é o empoderamento dos cidadãos, sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens de que tudo o que sabemos do futuro é que eles o farão. Móbil-izados”, conclui. Em tempo: móbil, em espanhol, quer dizer celular.

Trechos

EGITO
“A forma social básica do movimento foi a ocupação do espaço público. Todos os outros processos de formação de rede foram maneiras de atingir a libertação de determinado território que havia escapado ao controle da autoridade do Estado e experimentava formas de autoadministração e solidariedade.”

PAÍSES ÁRABES
“Sem dúvida alguma, a centelha da indignação e da esperança nascida na Tunísia e que derrubou o regime de Mubarak, produzindo uma Tunísia democrática e um Egito protodemocrático, espalhou-se rapidamente por outros países árabes, seguindo o mesmo modelo: convocações pela internet, constituição de redes no ciberespaço e apelos pela ocupação do espaço urbano para pressionar o governo a renunciar e abrir um processo de democratização.”

ESPANHA
“Indignados é um um movimento de múltiplos e ricos discursos. Slogans criativos, frases de efeito, palavras significativas e expressões poéticas constituíam um ecossitema de linguagem indicativo de novas subjetividades.”

EUA
“O movimento Occupy Wall Street construiu uma nova forma de espaço, uma mistura de espaço de lugares, num determinado território, e espaço de fluxos, na internet. Um não conseguia funcionar sem o outro; esse espaço híbrido caracterizava o movimento. Os espaços tornam possível interagir face a face, compartilhar a experiência, o perigo e as dificuldades, assim como, em conjunto, enfrentar a polícia e suportar a chuva, o frio e a perda do conforto em suas vidas cotidianas. Mas as redes sociais da internet permitiram que a experiência fosse divulgada e amplificada, trazendo o mundo inteiro para o movimento e criando um fórum permanente de solidariedade, debate e planejamento estratégico.”

BRASIL
“Nesse clima de fratenidade encontrado nas redes e percebido nas ruas se difunde a defesa dos direitos dos mais indefesos, dos povos indígenas massacrados pela indiferença pública numa Amazônia espoliada. Esse movimento sem nome, porque do Passe Livre se passou ao clamor pela liberdade em todas as suas dimensões, surgiu das entranhas de um país perturbado por um modelo de crescimento que ignora a dimensão humana e ecológica do desenvolvimento.”



REDES DE INDIGNAÇÃO E ESPERANÇA: MOVIMENTOS SOCIAIS NA ERA DA INTERNET

De Manuel Castells
Editora Zahar, 271 páginas, R$ 49,90 e R$ 37,90 (e-book)

João Paulo-Um documento humano‏


Estado de Minas: 07/09/2013 

 Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Ataíde: um homem que abrigou as intermitências do século 20 no coração (Arquivo EM )
Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Ataíde: um homem que abrigou as intermitências do século 20 no coração


As novas gerações talvez não conheçam Alceu Amoroso Lima (1892-1983). O escritor, crítico literário e pensador católico foi um dos homens de pensamento mais importantes do Brasil no século 20 e se tornou uma referência intelectual e moral para o país em seus momentos mais difíceis. Alceu escreveu quase 100 livros em diversos campos do conhecimento – direito, filosofia, sociologia, política, teologia e jornalismo –, além de ter sido, com o pseudônimo de Tristão de Ataíde, o mais influente crítico literário de seu tempo.

Mas Alceu não foi apenas um grande intelectual, foi um mestre da ação. Sua trajetória, curiosamente, foi na contramão da maioria dos homens de seu tempo: foi conservador na juventude para se revelar de esquerda e libertário na maturidade. Desde que assumiu seu catolicismo, em 1928, com uma carta que se tornou célebre, “Adeus à disponibilidade”, endereçada a Sérgio Buarque de Holanda, Alceu fez da Igreja Católica e de seus desafios no século 20 uma de suas grandes preocupações.

A importância de Alceu Amoroso Lima se torna ainda mais relevante quando se acompanha sua ação política destacada em todos os campos. Dentro da Igreja, foi da doutrina social à teologia da libertação, acompanhando de perto o Concílio Vaticano II e o aggionarmento da Igreja romana, se ligando ao processo de renovação da instituição milenar em crise com as demandas de seu momento histórico. E é bom lembrar que Alceu fez parte dos grupos mais conservadores da Igreja e que, por isso, foi deixando no caminho, em nome de sua coerência, muitos amigos e companheiros de jornada.

Sua relação com a Igreja – talvez também seja difícil para os mais novos entender a força do pensamento católico no Brasil e o mundo por volta dos meados do século 20 – fez dele interlocutor de grandes filósofos, como Jacques Maritain, e até mesmo de papas, como Paulo VI. Mas a religião também deu a Alceu liberdade para se aproximar do pensamento místico (como do trapista americano Thomas Merton) e, sobretudo, das grandes questões políticas, como a crítica à injustiça social e o combate às ditaduras.

Em meio a tanto trabalho intelectual e militância – some-se ainda a isso seu labor como professsor e os vários artigos que publicava diariamente na imprensa –, Alceu Amoroso Lima viveu no âmbito familiar uma história sublime. Em 1952, aos 23 anos, sua filha Lia Amoroso Lima decide entrar para o convento das beneditinas, onde permaneceu até sua morte, em 2011, aos 82 anos. O pai – que levou a filha até a abadessa do convento para que ela se tornasse uma simples monja – passou então a escrever diariamente para Lia, que assumiu o nome de Maria Teresa, numa correspondência que foi até os últimos dias de Alceu. E é bom lembrar que se tratava de cartas físicas, escritas à mão e postadas no correio todos os dias.

Um dos maiores documentos humanos do nosso país, a correspondência trata de temas profundos, como religião e filosofia, entra no debate das questões políticas do momento, encontra espaço para a conversa amigável e afetuosa entre pai e filha. Há passagens em que Alceu fala dos amigos e de trabalhos em andamento, queixa das dificuldades, se anima com os pequenas conquistas, relembra momentos idos e vividos. Há um pouco de tudo na vasta correspondência: filosofia, literatura, política, crônica, memória e comentário político. E sobretudo a confiança absoluta de dois seres que se amavam.

Como eram cartas diárias e Alceu se encontrava sempre assoberbado de mil atribuições, era de se esperar que as cartas fossem curtas, pequenos registros do dia a dia, uma simples tentativa de estar perto da filha querida. Nada disso, muitas delas se alongam por várias páginas, fazem comentários profundos, ensaiam reflexões que depois ganhariam artigos para imprensa, ensaios e mesmo livros. Alceu era um analista incisivo e dotado ao mesmo tempo de senso crítico, base filosófica e humor, o que dá aos seus comentários um sabor muito especial, sobretudo no momento em que não precisava se preocupar com as censuras de toda natureza, das políticas às psicológicas. Um dos homens mais íntegros e completos que o país já teve, em suas cartas revela ainda a cálida presença de sua personalidade, sempre intensa e entusiasmada (palavra na medida para Alceu, já que sua etimologia registra: estar cheio de deus).

Religião e política Parte da correspondência de Alceu Amoroso Lima à filha já havia sido publicada em 2003, no volume Cartas do pai, pelo Instituto Moreira Salles. Um livro com mais de 600 páginas que reúne as correspondências enviadas entre julho de 1958 e dezembro de 1968. Além de revelar pela primeira vez o teor das cartas – havia uma grande curiosidade sobre elas entre os admiradores de Alceu, que sabiam de sua existência –, o livro se mostrou o registro de um momento marcado principalmente pela religião. Mas a sombra da política brasileira parece se adivinhar, até mesmo pela data de encerramento do volume, às portas da decretação ao Ato Institucional nº 5, que marcaria a fogo a história recente do país e a atuação de Alceu Amoroso Lima como um de seus principais combatentes pela liberdade.

Por isso se torna precioso o lançamento de mais um livro dedicado às cartas de Alceu à filha, Diário de um ano de trevas, que abrange o período que vai de janeiro de 1969 a fevereiro de 1970. Lançado também pelo Instituto Moreira Salles, o volume é organizado por Frei Betto e por Alceu Amoroso Lima Filho, que trabalhou ao lado da irmã na decifração da caligrafia do pai até a morte da madre Maria Tereza. O trabalho dos organizadores é soberbo. A seleção é primorosa – não há uma carta publicada que não emocione ou ensine sobre o tempo abarcado e os personagens –, as notas sempre informativas e concisas, a concentração nos temas de interesse amplo é mantida com equilíbrio (houve supressões de trechos por razões de ordem pessoal, segundo os organizadores, o que em momento algum prejudica a leitura), a recuperação do contexto histórico é sempre competente e a favor da legibilidade dos documentos.

O que em Cartas do pai era revelação humana e religião, em Diário de um ano de trevas é política e indignação. Alceu Amoroso Lima vive, com a decretação do AI-5 um sofrimento pessoal palpável. Ele parece antever, e chega a registrar, que a ditadura demoraria 20 anos para deixar a sociedade brasileira e que, por isso, talvez não vivesse mais a democracia em seu país. Ao morrer, em 1983, não sem deixar de lutar todos os dias, Alceu ajudou a conquistar a redemocratização, mas não chegou a esperimentá-la. Suas cartas à filha documentam esse período, um longo ano de batalhas pela liberdade no mais duro dos períodos da ditadura militar.

O sempre afável e esperançoso Alceu tem momento de revolta e impaciência, padece pelo afastamento dos amigos, vê os jornais lhe fecharem as portas em razão do medo da censura. Não havia general com estofo suficiente para censurar o pensador, mas nas redações o medo ia além do razoável. Alceu não negociou com o inimigo, não mudou de tom – antes o tornou mais ácido e até feroz – não deixou de pensar nem mesmo pela sedução de incendiar as consciências. Sua crítica aos militares se unia à crítica à Igreja que retrocede em seu caminho de abertura para apoiar o golpe. Como escreve à Maria Teresa: “Somos um país inchado, e não grande, não por culpa do nosso povo pobre, mas dos dirigentes que o exploram de qualquer modo, e agora, particularmente dessa oligarquia militar puritanística”.

Ao tratar da situação por que passava o país, Alceu o faz a partir de análise de fatos do momento, não necessariamente apenas da conjuntura, mas de aspectos ligados à educação, à ciência, aos partidos políticos, à imprensa. Tudo ao lado de análises feitas em cima da hora dos descaminhos da ditadura e da vergonhosa atuação de seus personagens. A correspondência, mesmo atravessada pela política, encontra também espaço para o afeto, para as memórias, para os bastidores da Academia Brasileira de Letras e da vida literária, para as lembranças do Rio antigo, dos amigos que se foram, das leituras de juventude e dos consolos da fé.

Diário de um ano das trevas é testemunho que revela não apenas a grande figura de Alceu Amoroso Lima, mas a dimensão necessária da resistência humana contra toda forma de injustiça. Em cada ato e omissão escrevemos uma carta ao mundo. Felizes daqueles que podem reuni-las um dia para entregar, como um bastão de corrida de revezamento, nas mãos dos que vêm depois.


Diário de um ano de trevas
• Cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa: janeiro de 1969 - fevereiro de 1970
• Organização de Frei Betto e Alceu Amoroso Lima Filho
• IMS, 294 páginas, R$ 49,90

Artes e liberdades das mulheres‏

Exposição 

http://circuitoculturalliberdade.com.br/plus/modulos/listas/index.php?tac=agendaver&id=260&layout=programacao  

mostra como a presença feminina ajudou a arte contemporânea a se libertar da obrigação de portar mensagens significativas 


Douglas Garcia

Estado de Minas: 07/09/2013 


Fotos de Nan Goldin exibem casais comuns, mas que parecem participar de uma atmosfera de transcendência (Centre Pompidou/Divulgação)
Fotos de Nan Goldin exibem casais comuns, mas que parecem participar de uma atmosfera de transcendência

A exposição Elles: mulheres artistas na coleção do Centro Pompidou, atualmente em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CBBB) de Belo Horizonte, é uma ótima oportunidade para a retomada de questões sobre o estatuto contemporâneo das artes. E também um impulso para reconhecer o impacto da experiência das mulheres na renovação da filosofia contemporânea.

As artes no século 20 se viram liberadas da obrigação de parecerem “belas”, no sentido mais restrito do termo, do agradável ao olhar. O mesmo movimento das artes também as liberou da obrigação de parecerem monumentais, como se devessem ser a inscrição sensível de ideais “espirituais”, vinculados, muitas vezes, às experiências dos homens com o poder social, a dominação da natureza e negação da real dependência humana do corpo.

Nesse sentido, o registro em vídeo da performer Marina Abramovic, que abre a exposição no terceiro andar do CCBB, não poderia ser mais emblemático. Nele, vemos a bela artista sérvia pentear seus cabelos enquanto repete, em inglês, a frase “a arte deve ser bela, a artista deve ser bela”. Ela parece olhar para um espelho que nós, espectadores, não vemos. Seguimos seus gestos de alisar impetuosamente os cabelos com uma escova. Ela dispõe seus cabelos escuros no alto da cabeça, como se quisesse fazer um penteado, mas parece desistir da operação, e começa novamente a alisar com força os cabelos, enquanto ainda repete a frase. Não podemos decidir se seu gesto infindável é de revolta contra o conteúdo da norma que sua voz repete, de sacrifício ou de desespero. Ao deixar a sala, ainda ouvimos a voz de Marina Abramovic.

Todo o percurso da exposição leva a considerar o quanto a experiência das mulheres foi e continua sendo significativa para liberar as artes da obrigação de parecerem “significativas”, de servirem de veículo para a transmissão de “mensagens” que viriam prontas “do alto”, seja esse “alto” a transcendência do absoluto ou a afirmação abstrata de uma dignidade humana desvinculada de todo contato com os elementos da natureza.

A série de fotos de Nan Goldin, exibidas em slide show, é exemplar, nesse sentido. Na sala completamente escura, com o acompanhamento da música de Björk, as imagens de cenas domésticas de casais parecem emanar uma estranha transcendência. Seu despojamento de todo glamour, seu caráter prosaico tem o efeito de indicar que há no “baixo” dos corpos humanos um elemento de dignidade irredutível a qualquer sentido imposto “de cima”. Elas parecem sugerir um estranho sentimento de pudor por meio da exposição do mais íntimo. Ao sair da sala, não podemos decidir do que é feito o apelo humano dessas fotos.

A poeta Ana Cristina Cesar uma vez escreveu que “as mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”. Ela poderia também ter escrito que elas são as primeiras a desistir de erguer monumentos ao poder, como as estátuas equestres das praças. A experiência das mulheres tem reconfigurado os diversos campos da filosofia. O cerne desse movimento é a indicação de que os conceitos filosóficos tradicionais, notadamente no campo da ética e da filosofia política, possuem um caráter de gênero, que é ocultado. Longe de serem necessários, universais e desvinculados de toda experiência, são, ao contrário, contingentes, particulares e transcrições generalizantes de práticas específicas. Os trabalhos de Virginia Held e Carol Gilligan são exemplares, nesse sentido.

Ideia de liberdade As artes e a filosofia são campos da cultura orientados pela ideia de liberdade. Isso quer dizer que as práticas artísticas e filosóficas são práticas de liberdade. O trabalho das artistas expostas em Elles revela muito do modo de operação dessas práticas. Trata-se, a cada vez, de escavar as estruturas mais profundas que dão sentido comum, partilhável, a aspectos da nossa humana experiência do corpo, da linguagem e da sociabilidade. As artistas o fazem ao criar experiências de deslocamento da identidade pessoal e do sistema de coordenadas normativas dos espectadores. Essas coordenadas normativas operam a partir do nível da cultura, da linguagem e da percepção. Deslocar essas coordenadas é questionar nossa adesão às estruturas de sentido que mantém o nosso funcionamento “normal” nos níveis social e psíquico.

As práticas artísticas das mulheres reunidas em Elles trazem ao primeiro plano a primazia das relações e das práticas. Elas desafiam o gesto tradicionalmente associado aos homens de definir o conceito de uma coisa a partir da reunião de suas propriedades salientes, de modo isolado e estático. Elas estabelecem um campo de relações que parte da experiência comum do mundo, e mostram como nossa experiência de nós mesmos e dos outros é construída a partir de linguagens e de práticas que se impõem como normativas, mas que são abertas à reformulação.

As mulheres artistas/filósofas são portadoras da esperança da cultura. Esperança de invenção de novas formas de vida em comum, de relações mais livres com o corpo e de um uso mais poético da linguagem.

Douglas Garcia é professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto.

ELLES: MULHERES ARTISTAS NA COLEÇÃO DO CENTRO POMPIDOU

Obras de Frida Kahlo, Nan Goldin, Suzanne Valadon, Marina Abramovic, Rosângela Rennó, Lygia Clark e Rivane Neuenschwander, entre outras. Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade. Quarta a segunda-feira, das 9h às 21h. Até 21 de outubro.

Rubens Goyatá-O grito e o mito‏

Independência brasileira, ao contrário da fórmula da conciliação pacífica feita pelo alto e decretada por um único gesto, cobrou sangue e sacrifício do povo, em movimentos difusos de protesto durante décadas


Rubens Goyatá Campante


Estado de Minas: 07/09/2013 


 (YASUYOSHI CHIBA/AFP)


Há 191, em 7 de setembro de 1822, um jovem de 23 anos, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pasqual Sipriano Serafim de Bragança e Bourbon, filho do rei de Portugal, D. João VI, e príncipe regente do Brasil, leu, indignado, no caminho de Santos a São Paulo, correspondência das cortes lusitanas que lhe tiravam a condição de regente do Brasil e determinavam que doravante seus ministros seriam designados em Portugal, e que eram traidores da pátria todos os que apoiavam sua recusa, em janeiro daquele ano, de obedecer às ordens de regressar a Lisboa. O príncipe, então, desembainhou a espada e, do alto de seu cavalo, gritou para sua comitiva e para as margens plácidas do Riacho Ipiranga: “Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será: independência ou morte”.

E a história se encarregou, depois, de transformar o 7 de setembro de 1822 na data nacional da Independência brasileira. Sabe-se que o processo começou antes, que um marco essencial foi a vinda da corte lusa para o Brasil, em 1808, fugindo das guerras e invasões napoleônicas na Europa, trazendo para a colônia americana um impulso unificador e de progresso material, alçando-a politicamente à condição de Reino Unido de Portugal, mas, por outro lado, reforçando uma herança estatal e administrativa obsoleta, parasitária e patrimonialista. Também não é segredo que, para a maior parte da elite brasileira, era satisfatória a condição do Brasil como Reino Unido, e que o estopim da separação foram as intenções do movimento liberal e constitucionalista português de 1820 de recolonizar e fragmentar as possessões americanas e de privar seus nativos do acesso a cargos administrativos de comando.

Por fim, são bem conhecidas as vicissitudes da Independência: a dissolução, pelo príncipe que assumira o trono brasileiro com o nome de D. Pedro I, da assembleia constituinte que resistia a seu projeto centralizador e a outorga, por ele, em 1824, de uma Constituição que trazia pinceladas de preceitos formalmente liberais e limitadamente representativos, em voga na época, embebidos pela instituição autoritária do Poder Moderador, exercido pelo monarca, cuja pessoa e vontade estavam acima e além de qualquer lei ou poder do Estado. E assim Pedro I, ao jurar defender a Constituição, prometeu fazê-lo “se ela fosse digna do Brasil e dele próprio”.

Este encaminhamento conservador da Independência, com seus claros elementos de continuísmo (mesmo regime monárquico, em contraste com a opção das ex-colônias espanholas pela República, com a mesma família no poder e praticamente a mesma estrutura político-institucional e sócio-econômica), levou diversos analistas a salientar o caráter elitista, ordeiro, pouco traumático, da Independência brasileira. Com a constituição outorgada de 1824 a nova nação já estaria estabelecida, a partir de uma clássica conciliação por cima, entre elites, prenúncio de uma tradição que marcaria nosso trajeto e cuja contraparte da feição oligárquica seria a apatia popular. Uma frase de Caio Prado Jr. sintetiza esse tipo de interpretação: “Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo, e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política”.

Não foi bem assim, e para se relativizar tal avaliação é preciso compreender a Independência como o processo de transformação da América colonial portuguesa em uma nação unitária chamada Brasil. Essa colocação, aparentemente mero truísmo, faz-se necessária quando se percebe que tal processo foi mais lento do que comumente se pensa, não tendo se esgotado em 1822 ou 1824, que não foi “natural” em seus antecedentes nem previamente garantido em suas consequências, e, finalmente, que essa lentidão e incerteza devem-se fundamentalmente ao fato de que ele envolveu, sim, participação popular, lutas e sacrifícios.

Patrimonialismo


Certas interpretações históricas partem, explícita ou implicitamente, do falso pressuposto de que essa entidade nacional chamada Brasil já existia nos tempos coloniais, já estava pronta, madura, a ansiar pelo momento oportuno da emancipação do jugo colonial. Até fins do século 18 anseios de emancipação havia, como o demonstram a Inconfidência mineira ou a Conjuração baiana de 1798, mas não tinham o sentido de construção de uma nacionalidade brasileira. Era débil a ideia de Brasil na virada do século 18 para o 19. Seu primeiro impulso, como vimos, foi a chegada da corte lusa e a promoção política da área colonial, como um todo, a Reino Unido de Portugal, e foi entre a camada realmente privilegiada por esta ascensão política e econômica, as diversas elites regionais e urbanas, que a ideia começou a medrar, concorrendo, para tanto, sua tendência a uma socialização comum nas poucas universidades lusas e, depois, locais disponíveis para a educação superior. Logo depois, Pedro I, em seu breve reinado, contribuiu, certamente de forma involuntária, para reforçar o nativismo brasileiro ao governar cercando-se quase completamente de elementos portugueses – o acesso a altos cargos administrativos é, na tradição patrimonialista luso-brasileira, um elemento crucial de riqueza e poder e, assim, um fator político de primeira ordem.

Se o sentimento nacional, portanto, construiu-se de forma lenta e incerta – e, num primeiro momento, basicamente no seio das oligarquias, e mais especificamente das oligarquias urbanas e letradas do Sudeste –, acrescente-se que o processo de consolidação nacional só se viu realmente garantido em 1840, com a coroação precoce de Pedro II, aos 15 anos, fruto da decisão da maior parte da elite brasileira, especialmente de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, de usar a legitimidade monárquica para combater as tendências rebeldes e centrífugas que ameaçavam a unidade nacional.

Depois da abdicação de Pedro I, em 1831, desmoralizado pela ojeriza que seu lusitanismo despertava, pela caótica situação econômica do país, e pelas desastradas intervenções militares na região platina, a regência ensaiou a implantação de instituições jurídicas e políticas liberais. Promulgaram-se o Código Criminal e o Código de Processo Criminal, avançados para a época, especialmente o segundo, ao prever uma organização judiciária local de caráter eletivo e participativo; instituiu-se o Ato Adicional, que visava mitigar o centralismo da Constituição de 1824. Não deu certo. O Ato Adicional era vago e confuso, não dividia com rigor as competências centrais e regionais e, nos âmbitos locais, nos rincões de uma nação essencialmente rural, com uma população absolutamente vulnerável ao poder dos latifundiários, estes logo se assenhorearam dos cargos judiciários eletivos, aumentando seu poder despótico e centrífugo e tornando letra morta as leis garantidoras de direitos individuais – o início de outra triste tradição brasileira, a da distância entre o país legal e o país real.

Com a crise profunda e as inúmeras rebeliões separatistas, quase todas com participação popular expressiva, a maioria dos antigos liberais reviu suas posições e passou a postular a ordem e a centralização como forma de evitar a “anarquia” que punha em perigo não só a unidade do país, mas a própria estrutura social de poder, lastreada na escravidão, ameaçada não só interna mas externamente, pela pressão do compromisso assumido com a poderosa Inglaterra de acabar com ela. Um famoso discurso do político mineiro Bernardo Vasconcelos sintetiza a visão deste momento: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder corre agora risco pela desorganização e pela anarquia”.

E para combater a desorganização, o separatismo e a anarquia implantaram-se as bases do Segundo Reinado: no plano político, o liberalismo estritamente dentro da ordem, somente como referência organizadora e legitimadora da administração pública e da economia de propriedade privada, neutralizada sua potencialidade de propiciar um alargamento, mesmo que a princípio limitado, das bases sociais do poder por meio da garantia efetiva de certas liberdades e direitos individuais; no plano social, cultural e econômico, o predomínio do latifúndio, do patriarcalismo, da cultura do favor e da escravidão.

Milhares de mortos


Mas não foi sobre a inação e o silêncio popular que esta solução conservadora e elitista foi erigida, mas sobre sua repressão, como reação e prevenção à participação popular. Na primeira metade do século 19 o país foi convulsionado por uma série de guerras, levantes, protestos, rebeliões. Na Independência houve lutas armadas nas províncias com alta população lusa, que resistiam à separação, como Maranhão, Piauí, Pará e principalmente na Bahia, a mais difícil de todas. Em Pernambuco, houve a Revolução de 1817, ainda sob D. João VI, a Confederação do Equador, em 1824, reação ao autoritarismo centralista da Constituição de 1824, o movimento rural dos cabanos, em 1831, precursor de episódios como o de Canudos, e a Revolução Praieira de 1848, já no governo de Pedro II. Na Bahia, diversas revoltas dos negros islamizados nagôs e malês, ao longo das décadas de 1820 e 1830, sempre duramente reprimidas, e a rebelião federalista e republicana chamada Sabinada, na regência, em que boa parte de Salvador foi incendiada e na qual morreram entre 2 a 4 mil pessoas, numa população de cerca de 60 mil habitantes. No Maranhão, assistiu-se, durante a regência, à revolta popular apelidada de Balaiada, que contou, inclusive, com uma milícia negra de 3 mil escravos fugidos: foi sufocada com o saldo de 5 mil mortos. No Rio Grande do Sul, o conflito mais longo de todos, a Guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845, que também cobrou pesado tributo de sangue. E no Pará, a revolta mais sangrenta, a Cabanagem, em 1835: os números apontam 30 mil a 40 mil vítimas, mais de 20% da população de uma província de 150 mil habitantes. E isso sem falar nos inúmeros motins, sedições militares, quebra-quebras, assassinatos por todo o país.

Corretas, portanto, as palavras do grande historiador Francisco Iglesias sobre a Independência: “Não se veja no episódio uma simples parada, uma festa. Se não houve aqui as batalhas vistosas da guerra pela emancipação das colônias espanholas, se a separação não foi tão cruenta, de fato custou sangue, sacrifícios”.

Sim, o povo deu sua cota de sangue e sacrifícios. Porém, suas condições e seus recursos – em sentido mais amplo possível: econômicos, políticos, militares, cognitivos – eram problemáticos. Seus horizontes eram limitados, não, é claro, por uma espécie de “culpa” própria, intrínseca, mas pelo grau de evolução e maturidade em que se encontrava. Assim, seus objetivos eram difusos e amorfos, sua avaliação dos problemas próprios e do país era superficial. O que havia de mais organizado e organizável eram as elites, eram elas que tinham metas mais objetivas, que se encontravam razoavelmente formadas e que acabaram por formar as instituições da economia, do poder e do Estado à sua imagem e semelhança. Consubstanciou-se, assim, em nosso nascedouro, o divórcio entre o Estado e a nação, o poder e o povo.

Ainda hoje tal divórcio se mantém, apesar da pressão popular, das demandas éticas para que o Estado e o poder se aproximem da nação e do povo. As recentes manifestações de protesto expressam tais pressões e demandas éticas. Resta saber se se superou a limitação de horizontes e a superficialidade da avaliação dos problemas próprios e do país que caracterizaram e dificultaram a participação popular 200 anos atrás.


Rubens Goyatá Campante é doutor em ciências políticas pela UFMG e pesquisador do Núcleo de Pesquisas do TRT 3ª Região.

Poesia dos espinhos - André di Bernardi Batista Mendes

Ar de arestas, de Iacyr Anderson Freitas, faz longa e profunda meditação sobre a dor. Poemas criam diálogo tenso com fotografias de Ozias Filho 


André di Bernardi Batista Mendes

Estado de Minas: 07/09/2013 


Poemas do novo livro de Iacyr Anderson Freitas já foram traduzidos para a linguagem do corpo e do teatro (Olavo Cerezo/Divulgação)
Poemas do novo livro de Iacyr Anderson Freitas já foram traduzidos para a linguagem do corpo e do teatro


O poeta Iacyr Anderson Freitas acaba de lançar, pela Editora Escrituras, Ar de arestas. A trajetória de todo poeta é irregular, o poeta parece que sempre está prestes a encontrar algo que beira o indizível, daí para a angústia, de lá para uma dor feita de tranças e tramas. O poeta desconhece o lugar certo, as desajeitadas mãos do artista mais acariciam que prendem, moldam quanto mais desaprendem. Iacyr sabe que toda inocência é perigosa (dali podem surgir poemas), tudo que é fonte traz de roldão luz e mistério, sombra e breu. O poeta apenas convida, provoca para brincar de dizer. A poesia serve para ressuscitar as horas mortas. Não sem dor.

O novo livro de Iacyr, que conta com fotos de Ozias Filho, é uma longa meditação sobre a dor, descrita na sua crueza de realidade inevitável. As desajeitadas mãos do poeta servem para desajustar “minúsculos engates”, servem para descontextulizar, servem para ampliar (tarefa das mais difíceis, embora necessária) o vazio. O poeta redimensiona os números, o zero, os zeros. A palavra incompletude fere com suas pontas, a palavra rude, a palavra indelicada, torna-se, através das mãos delicadas do poeta, branda. Numa alquimia estranha, a palavra brusca perde os seus espinhos.

Como se sabe, para o escultor (dentro de sua alma de artista) existe uma forma insciente, existe uma forma, um corpo, um pássaro pronto dentro de cada pedra. Para o poeta a situação é mais complexa, pois dentro do vazio existe tão somente mais e mais porções de nadas.

Iacyr é, de certa forma, um poeta obscuro, que se sente mais à vontade diante de dificuldades. A tensão elétrica, medida em volts, do coração do poeta não encontra motivos. O problema é o seguinte: o poeta vive coberto de escombros que, para todo caso, é uma palavra linda. O poeta, assim, torna-se criminoso, um assassino de si mesmo, que renasce em cada página.

A posição de um poeta é sempre incômoda: ele está sempre no centro. Ele está sempre em outro lugar. O poeta dorme e acorda sempre no cerne (na parte interna do tronco das árvores, nos recônditos, no âmago da alegria, e da dor). Mesmo quando senta na beira de um rio, o poeta nada no centro de todas as águas, ainda que o lugar da poesia seja uma região adjacente, em todos os sentidos.

As flores nunca formam, as flores nunca serviram de escudo para nada ("pouco adianta empregar/ a expressão à flor da pele"). Existem relâmpagos dentro do escuro, mas a luz que escapa, o que se revela logo se perde, dissipa-se, evapora, vai-se embora, como, por vezes, vai-se embora a esperança. "Desse terror não se escapa/ sem cicatriz ou sequela./ Dos dias perde-se o mapa/ – e o mapa nada revela." Poesia é sinônimo de labirinto. Só entende este início de discurso aquele que porventura viu.

Iacyr potencializa o mal, a dor, para melhor conhecer o inimigo. Não para derrotá-lo, mas para aninhar-se, para melhor encontrar possibilidades de fuga. Existe uma espécie de ausência de proporcionalidade quando o poeta percebe o óbvio. Sem caminho, sem rumo, com uma vereda a ser trilhada, a poesia de Iacyr não mede consequências. A pessoa, quando sente dor, qualquer dor, é a mais solitária A alegria agrega, a dor restringe. A dor é o fato mais consumado.

A trajetória descrita por um astro em torno de outro, vista de longe, gera espanto e causa dissabor. O poeta aceitou o desafio de examinar a vida crua, o sol exposto. O poeta, sem pensar, encara o céu de frente. "Um sol que saiba pulsar,/ saiba ferir sem calor,/ ruminando com esgar/ até mesmo a própria dor." Iacyr deixa de lado, fecha um baú de promessas, aquele céu irreal de anjos e fadas. O mar, para Iacyr, ganha outros tamanhos e amplos sentidos. O mar "perde" a sua aura inocente: "É sal somente." As sementes deixam de ser meras sementes e deixam de lado promessas revestidas de benesse: "E possa alguma semente/ vingar da desesperança,/ embora ninguém atente/ ao incêndio que a alcança." Iacyr queimou-se num fogo brando, mas persistente. Fogo será sempre fogo. A vida é cheia de quinas. Em cada plano, em cada sonho existem armadilhas feitas de pontas e pregos.

Entre sombras
Outra situação, não menos impactante. As fotografias de Ozias Filho muito servem para indicar o caminho das pedras. Sombrias, belíssimas, as imagens, ao final de cada poema, cumprem uma missão inglória, pois pegam os olhos de leitor para não deixá-lo respirar. As imagens carregam doses extremas de claustrofobia. Elas causam um incômodo estranho, necessário para o contexto intrincado dos poemas, numa bela e intensa profusão de teias, fios e amaranhados sinistros. Em fevereiro de 2012, na Universidade de Lisboa, o ainda inédito Ar de arestas foi traduzido para a linguagem corporal do Laboratório de Movimento e Performance I’Mmoving, coordenado pela coreógrafa Marina Frangioia. Os frutos dessa ousadia impregnaram as lentes do fotógrafo Ozias Filho e se encontram registrados no livro.

"O delírio desgoverna." Um bicho com fome, quando come, uma serpente dando o bote, o barulho de um trovão. Eis algumas frações do que existe de mais puro, de mais visceral. Eis um retrato fidedigno da vida captado pelo poeta Iacyr, "até que se ouça o refrão/ de oito infernos resumidos." Iacyr não brinca em serviço, não mede esforços e dispensa qualquer analgesia. Iacyr fala, escancara um processo feito de dores, de situações extremas, "rompe-se o dique de um rio/ todo coberto de mortos". Mas Iacyr sabe dos seus limites. Seu estilo (extremamente fino) passa longe do grotesco, do mau gosto, do exagero e do verso fácil. Iacyr, com suas rimas fortes, muito bem trabalhadas e retrabalhadas, tira leite das pedras.

Eu poderia dizer: o poeta inventa, cria e recria um simulacro para sua própria verdade; ou ainda, o poeta cria substratos de uma anomia compulsória. Mas não. Isso não abre as chaves, isso não faz chover, e isso não chove, não molha. Estas palavras não alcançam, quando muito apenas explicam. Como o amor, dor é dor, e está dito. Melhor seria desdizer, para florescer. O livro de Iacir carrega escondido um vasto jardim de delícias latentes para quem quiser ser e estar. É simples. A poesia deste bom poeta reinventa, imagina partes, vestimentas para a o vazio.

Poesia é a melhor muleta, a melhor mula, que é quase um cavalo, que, por sua vez, é o melhor dos bichos. Como do vinho surge a melhor água, sem vice-versa. Só sabe cantar quem esquece. Poesia é isso: uma alavanca para progressões, um aparato, um instrumento – uma arma? – de (duras) delícias e descobertas. Iacyr Anderson Freitas nasceu na cidade mineira de Patrocíno do Muriaé. Publicou vários livros de poesia, ensaio literário e prosa de ficção, tendo recebido várias premiações no Brasil e no exterior.



AR DE ARESTAS

• De Iacyr Anderson Freitas, com fotografias de Ozias Filho
• Editora Escrituras
• 80 páginas, R$ 30

Tv Paga


Estado de Minas: 07/09/2013 


 (The Weinstein Company/Divulgação)

À francesa


Apesar de já ter sido exibido e reprisado várias vezes pelo canal Max, o filme O artista chega com status de “estreia” na HBO hoje, às 22h. Ganhador de cinco Oscars, incluindo melhor filme e ator (para Jean Dujardin, foto), o longa-metragem dirigido por Michel Hazanavicius é a alternativa a outra produção francesa, o drama Intocáveis, com François Cluzet e Omar Sy, também às 22h, no Telecine Premium.

Cinema nacional está
em alta com o assinante


Bateu o espirito patriótico em alguém lá no Telecine Pipoca, que exibe hoje, Dia da Independência, três produções nacionais: Totalmente inocentes (18h), E aí, comeu? (19h50) e Até que a sorte nos separe (22h). Já o Megapix embarca numa dor de cotovelo sem fim, com mais um filme brasileiro, Qualquer gato vira-lata (20h10), seguido de O amor não tira férias (22h) e Eu, meu irmão e nossa namorada (0h35). Se o assunto é cinema nacional, o Canal Brasil vem com A casa de Alice, às 22h. Também às 22h, mais cinco fitas nacionais: Praça Saens Peña, no Futura; Deus é brasileiro, na HBO Signature; 2 filhos de Francisco, no Sony; e Brasília 18%, no Spin.

Pacotão de filmes tem
para tudo que é gosto


Ainda na faixa das 22h, o assinante tem mais oito opções: O chamado, no TCM; Jogos letais, no A&E; Garota infernal, no Telecine Action; Cartas para Julieta, no Telecine Touch; O escritor fantasma, na MGM; Moneyball – O homem que mudou o jogo, na HBO HD; Larry Crowne – O amor está de volta, no Max HD; e A separação, no Max. Outras atrações da programação: Joe Sujo, às 21h, no Comedy Central; Stealth – Ameaça invisível, às 21h, no AXN; e Jogos mortais III, à meia-noite, no Telecine Action.

Série do Bio reconstitui
investigações da polícia


Estreia hoje, às 22h, no canal Bio, a série Amigos que matam, que pretende demonstrar como pode ser tênue a linha entre o amor e o ódio a partir de relatos de casos reais investigados pela polícia norte-americana. A partir de hoje, e até o fim do mês, vai ao ar todo sábado, das 19h às 23h, no TLC, um especial com episódios seguidos das séries NY ink, LA ink e Tatuagens terríveis.

Mistura de ritmos embala
a programação musical


Quer música? Uma boa pedida é a Cultura, com Família Madá em Manos e minas, às 17h; a banda Bixiga 70 em Cultura livre, às 18h; um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tocando Brahms e Beethoven, na série Clássicos, às 21h45; e Tom Zé e Carmina Juarez no Móbile, às 23h15. No Arte 1, às 22h, mais uma chance de conferir Meu tempo é hoje: Paulinho da Viola. No Multishow, vai ao ar às 18h30 um especial com os bastidores da 20ª edição do Prêmio de Música Brasileira e da etapa de Salvador do Circuito Banco do Brasil.

SescTV apresenta hoje a
coreografia Disyquilibrio


Dudude Herrmann e Marco Paulo Rolla estão hoje da série com as companhias que participaram da edição 2013 da Bienal Sesc de Dança. O espetáculo Disyquilibrio traz ao centro da cena a discussão sobre o entendimento de desequilíbrio como forma de questionar a ideia de uma suposta harmonia presente no cotidiano. Confira em Dança contemporânea, às 23h, no SescTV.

Balancinho bom - Eduardo Tristão Girão


Balancinho bom 

Caixa do selo Discobertas resgata grupos dos anos 1960 que gravaram clássicos da bossa nova em ritmo de sambalanço. O trabalho desses músicos de estúdio é cultuado por colecionadores
 

Eduardo Tristão Girão

Estado de Minas: 07/09/2013 


Gravados em estúdios cariocas na década de 1960, discos reafirmam o espaço do sambalanço na MPB   (Discobertas/divulgação)
Gravados em estúdios cariocas na década de 1960, discos reafirmam o espaço do sambalanço na MPB


Com 10 LPs reeditados em cinco CDs, a recém-lançada caixa Bossa 50+5 merece ser minuciosamente degustada pelo ouvinte que aprecia a sonoridade brasileira dos anos 1960, especificamente dos grupos que se alimentaram da bossa nova para consolidar o estilo que ficou conhecido como sambalanço. Trata-se de álbuns não muito conhecidos, mas nem por isso menos interessantes, com ótimos registros de clássicos bossa-novísticos feitos por experientes músicos de estúdio do Rio de Janeiro, logo depois do estouro de Tom Jobim, João Gilberto e companhia.

À frente da iniciativa está o pesquisador musical carioca Marcelo Fróes, criador do selo Discobertas, pelo qual foram lançadas relevantes caixas de CDs, como as dedicadas a Moreira da Silva, Ed Lincoln, Pery Ribeiro, Cauby Peixoto, Marcos Valle, Celly Campello e Zimbo Trio. No caso de Bossa 50+5, os encartes reproduzem capas e contracapas originais de cada título contemplado, bem como textos internos e rótulos dos LPs.

São eles: Balanço e bossa nova (Ritmistas da Bossa Nova, 1963), Sambas em duas bossas (Os Azes da Bossa, 1964); Sambalanço (Orquestra Moderna de Samba, 1963), Isto é bossa nova mesmo (Conjunto Sambossa, 1963), Saxsambando (Os Saxambistas Brasileiros, 1960), Bossa nova espetacular! (Os Saxambistas Brasileiros, 1963), O balanço é a bossa (Conjunto Masterplay, 1962), Samba do bom (Conjunto Samba de Balanço, 1962), Bossa Brass apresenta a música maravilhosa de Antonio Carlos Jobim (Bossa Brass, 1966) e Samba pra frente (Samba Trio, 1966).

“Venho colecionando discos há décadas. Verifiquei que o universo de repertório do início dos anos 1960 contava uma história: efetivamente, é o sambalanço tocado por grande músicos de estúdio que permaneceram no Rio de Janeiro quando outros foram embora depois do estouro da bossa nova. Eles faziam um som extraordinário, independentemente de ser famosos”, analisa Marcelo Fróes. O projeto lhe tomou “alguns anos” de trabalho. O critério de seleção dos títulos foi a “sonoridade de produção”, informa.

O barquinho (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli) e Só danço samba (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) lideram as inserções nos 10 álbuns, cada uma com quatro aparições. Também estão lá clássicos como Samba de uma nota só e Desafinado (ambas de Jobim e Newton Mendonça), Lá vem a baiana (Dorival Caymmi), Oba la la (João Gilberto), Maria Ninguém (Carlos Lyra), É luxo só (Ary Barroso e Luiz Peixoto), Samba triste (Baden Powell e Billy Blanco) e Preciso aprender a ser só (Marcos e Paulo Sérgio Valle).

Alguns discos citam os nomes dos músicos participantes. Em outros, como Samba do bom, o encarte se limita a informar que foi gravado pelo Conjunto Samba de Balanço. “Cada qual tinha seu motivo, mas em certos casos alguns poderiam estar presos contratualmente a outra gravadora. Ou a empresa preferia pagar um xis pela gravação e ter total controle sobre a matriz. Isso era muito comum numa época em que canções eram mais importantes que seus intérpretes”, explica o pesquisador.

Entusiasmo

Como de costume nos lançamentos da Discobertas, a tiragem inicial de Bossa 50+5 é de 1 mil exemplares. “Não é barato, mas fruto do entusiasmo de todos os envolvidos – dos artistas às gravadoras, além de quem remasterizou ou fez a adaptação gráfica. E, claro, da fábrica com a qual Discobertas trabalha”, garante Marcelo. O projeto do selo é motivado tanto por seu gosto pessoal quanto pela satisfação de oferecer títulos difíceis de encontrar. O próximo lançamento, aliás, será um box do cantor Agostinho dos Santos (1932 – 1973).

“Temos trazido alegria aos consumidores de reedições. Nos últimos anos, houve cada vez menos resgates por parte das grandes gravadoras. Algumas preferem reeditar material de artistas que já tiveram caixas lançadas, outras acham que investir em novas reedições não vale a pena. A Discobertas faz os CDs que eu, como consumidor, gostaria de encontrar para comprar. Nós nos orgulhamos de todos os projetos”, resume.



três perguntas para...

Marcelo Fróes
criador do selo Discobertas

Qual é a relevância musical das interpretações desses grupos? É possível identificar alguma influência deles na bossa nova?

Eles registram ali muito do que tocavam nas boates e bares da época, pois iam para o estúdio com tudo na ponta da língua. Alguns discos eram gravados em apenas uma ou duas sessões. Há muita vitalidade, muita música feita por músicos de verdade, praticamente ao vivo no estúdio. Não é à toa que esses discos são cultuados até por colecionadores estrangeiros.


Nas fichas, percebe-se a presença dos maestros. Quem eram eles? Que referências usavam para escrever os arranjos?

Eram maestros de estúdio: comandavam músicos numa época em que os discos nem tinham produtores, apenas técnicos de gravação. Muitas vezes, esses maestros nem eram efetivamente autores dos arranjos, mas produtores disfarçados de diretores musicais.


Que relação os grupos tinham entre si? O clima era de camaradagem ou rivalidade?

Muitos tinham nomes de fantasia, para creditar álbum gravado anonimamente por músicos das melhores boates do Rio. Ou eram nomes conhecidos querendo apenas fazer hora extra por uns trocados. Não havia relação entre eles. Vários deles não existiam fora do estúdio, não havia show desses nomes artísticos. Eram usados apenas para assinar discos.

Duca Leindecker músico e escritor‏


LETRA E MÚSICA » Em busca da leveza O guitarrista, cantor e escritor gaúcho Duca Leindecker lança o álbum solo Voz, violão e batucada com 10 canções inéditas, em que toca todos os instrumentos 

Walter Sebastião

Estado de Minas:
07/09/2013 


Além de trabalho autoral, Duca Leindecker mantém projeto Pouca Vogal com Humberto Gessinger     (Edu Defferrari/Divulgação)
Além de trabalho autoral, Duca Leindecker mantém projeto Pouca Vogal com Humberto Gessinger


Tem som diferente no ar: Voz, violão e batucada, segundo CD solo do gaúcho Duca Leindecker, de 43 anos. Ele é compositor, instrumentista, cantor, diretor de clipes e escritor com dois romances publicados. E discografia extensa: sete discos com a banda Cidadão Quem e um com o Pouca Vogal, projeto com Humberto Gessinger. “Tudo ao mesmo tempo. Entrei na onda da gurizada de ter várias projetos simultâneos”, conta com humor e falando de público que é leitor de seus livros. “Temos muitos meios disponíveis e adoro ficar fazendo arte o tempo todo”, justifica.

Voz ,violão e batucada traz 10 canções inéditas, todas escritas em 2012. Músicas tranquilas, interpretadas com gosto, pop fino, autoral sem ser esnobe. Com som diferente: Duca toca violão (inclusive batucando na caixa do instrumento), bumbo e pandeiro, construindo sozinho harmonias e percussões. É o próprio músico quem recomenda ver o clipe de Iceberg no YouTube, para entender a proposta. “Experimentação, hoje, é fundamental. Vivemos momento de desgaste dos formatos. Os Beatles são geniais, mas precisamos de outras possibilidades musicais”, defende.

 O disco mostra qual é o desejo musical de Duca no momento: dedicar-se às canções. Projeto de alguém que começou carreira como instrumentista e, ainda muito jovem, foi considerado um dos melhores guitarristas do Rio Grande do Sul. “Quando a gente se dedica ao estudo de um instrumento, acaba se afastando da coisa mais essencial da música, que é a canção. Instrumental é muito forma. Estou buscando alguma coisa que seja forma e conteúdo”, explica. Canções que mostram resultados dessa investida podem ser Tudo é longe ou Brutalidade e sol.

A vontade de fazer canções vem movida ainda por mais um desejo: realizar música que tenha espontaneidade e soe natural. “Não é fácil. Tudo é fluente quando você está tocando em casa. Ligou o botão no estúdio, vem a tensão”, conta. “Passar leveza em música é desafiador”, garante. Algumas composições, que lembram o som do primeiro Clube da Esquina, movimento que o gaúcho admira, estão ligadas a esse aspecto “É música que tem espontaneidade”. Ainda ligado à mesma referência está o fato de Duca ter mãe mineira e ser amigo e admirador dos irmãos Venturini.

Duca Leindecker avisa que é compositor que canta. “E quem canta seus males espanta”, brinca. “Cantar é colocar para fora, da forma mais visceral possível, os sentimentos que temos dentro de nós e, nesse sentido, terapia”, define. Adora ver intérpretes cantando músicas dele, como é o caso de Maria Gadú e Tiago Iorc, que gravaram a canção Música inédita.

Dylan
Duca Leindecker toca vários instrumentos. Começou vida profissional aos 13 anos tocando violão em bares. “Me pagavam com arroz de carreteiro”, recorda. Ele lembra ainda que, nas apresentações, ia da bossa nova à música tradicional do Rio Grande do Sul. Com o aparecimento do rock, nos anos 1980, participou de várias bandas, conheceu Humberto Gessinger e criou o Cidadão Quem. O que o levou a se interessar pela guitarra, que valeu a Duca, por três vezes, ser considerado pela crítica especializada o melhor guitarrista do Rio Grande do Sul. Bob Dylan, nos anos 1990, assistiu à apresentação de Leindecker e o convidou para fazer abertura de shows.

É de 1999 o primeiro romance, A casa da esquina, já em 10ª edição. O segundo, A favor do vento, foi lançado em 2002. Duca está concluindo nova obra – além de ser jurado do setor de literatura da edição de 2013 do prêmio Açorianos. “Difícil definir o que sou”, observa, evitando rótulos de músico, escritor ou cineasta. “A literatura foi muito importante, porque me deu linha direta com a gurizada.”

Colaborou para isso, explica, o primeiro livro ter agradado às escolas de ensino médio. Duca Leindecker assinou vários clipes e um curta-metragem, Chá de frutas vermelhas. “Sem estrutura não dá para pensar em cinema”, lamenta.

duas perguntas para...
Duca Leindecker
músico e escritor

Como você analisa a relação dos jovens com a leitura?

É incrível a disposição dos mais jovens para ler. A prova é Harry Porter, livros enormes que eles devoram, porque são obras que vão ao encontro deles. O que não dá é para empurrar os clássicos, é queimar etapas. Cria trauma que leva à generalização, incorreta, de que literatura é chato. A gente chega aos clássicos. O jovem hoje fala outra língua, é outro ser humano, então é complicado entender linguagem de dois séculos atrás.

A que se deve o aumento de livros escritos por músicos?

São dois fenômenos. Um, genuíno, natural, porque contar histórias tem a ver com música. Qualquer música, até instrumental, conta uma história, tem uma narrativa por trás. Outro aspecto é que, com a derrocada da indústria fonográfica, como não se vendem mais discos, as pessoas querem fazer algo que venda. Temos escritores de verdade e também muito oportunismo.