domingo, 3 de março de 2013

Barbara Gancia

folha de são paulo

Yoani é mesmo agente da CIA


Desde cedo fui diagnosticada com uma doença infeliz. Já no berçário, perceberam que eu me dirigia a outras crianças com gestos obscenos e caretas. Mais tarde, o médico sentenciou que eu era portadora de um transtorno conhecido como "síndrome de seu Saraiva", moléstia que, segundo o "New England Journal of Medicine", leva as pessoas a mostrar o dedo do meio e usar palavras de baixo calão com frequência e a cometer todo tipo de malcriação quando levemente provocadas.
Por algum motivo, faço questão de ser sempre a pessoa mais mal-educada da sala. Outro dia, consegui o feito de ser a mais deselegante em uma reunião com 30 detentas no Centro de Reabilitação Feminino de Taubaté em uma entrevista com as próprias. Elas saíram da conversa horrorizadas. Uma foi levada ao choro convulsivo, veja se é possível?
Tudo isso para explicar a dimensão do milagre ocorrido na semana passada em São Paulo. Atente: Yoani Sánchez esteve na cidade e me chamaram para mediar um debate com público e blogueira cubana na Livraria Cultura. Fiquei super-honrada e lá fui eu, perfumada e produzida na hora marcada. Bem que meu amigo, o jornalista Reinaldo Azevedo, alertou que ia dar encrenca, mas eu disse para ele: "Me matar não vão, né, Rey? Na pior das hipóteses eu levanto e vou comer uma coxinha no Viena". E ainda pedi que ele me ajudasse a fazer umas perguntas bem picantes para a cubana.
Foi descer do táxi na frente do Conjunto Nacional para ouvir os gritos de guerra do Fla-Flu, slogans de torcida de futebol contra o imperialismo. O ambiente estava "caliente" como uma cela em Guantánamo.
Ilustração Alex Cerveny
Subi ao palco e me acomodei ao lado da anticastrista que sofreu o pão que o diabo amassou na sua terra. E fui logo tirando um impresso intitulado "40 perguntas que Yoani nunca responderá à imprensa", que circulara insistentemente na internet naquele dia. Então comecei: "Quem patrocina a sua turnê de pop star pelo mundo?". Muito cordial, ela disse que, só naquele dia, já tinha respondido a essa pergunta umas oito vezes.
Quando percebeu que eu estava percorrendo a lista das perguntas que "nunca" seriam feitas a Yoani, a turma do fundão, um grupo de cerca 50 estudantes que acabara de entrar na sala com estandartes e apitos, começou a tumultuar. A gritaria não me impediu de notar que a próxima pergunta, "Quem paga o seu salário?", seria descartada pela falta de interesse jornalístico. O debate passou a ser interrompido na base do grito. Os estudantes exigiam o microfone. O formato do debate da noite, por coincidência, espelhava o da democracia representativa, modelo que rege nosso sistema de governo e com o qual esses jovens de iPhone e tênis All Star se desacostumaram a conviver. Eles parecem ter regredido a um estágio anterior, talvez aquele em que a maioria decide no grito, como no Velho Oeste, onde a multidão retirava o suspeito da delegacia na marra para o linchamento. Ou, quem sabe, sejam fãs de uma coisa mais despojada, a la Robespierre.
Só sei que minha interferência, para selecionar perguntas e tornar o debate mais ágil, não foi aprovada. Ficamos sem saber que apito Yoani toca, o que pensa e a quantas anda a abertura em Cuba. Enfim, tiveram de levar a cubana para a coxia antes que alguém resolvesse partir para cima. E a vontade que deu, naquele momento, de pedir cidadania paraguaia?
O ato perpetrado por aquela juventude bocó inspira até certa piedade. Os caras estão na faculdade e não percebem que a única coisa hoje que rege os governos, todos os governos, são os humores do mercado? Que ideologia virou apenas marketing para diferenciar um discurso do outro? Parece que esse raivoso Fla-Flu que nos divide nunca vai ceder ao óbvio.
E o meu milagre, onde ficou?
Bem, o seu Saraiva não deu as caras no encontro. Provocaram, provocaram, mas ele não apareceu. Em outros tempos, teria levantado no palco e mandado a molecada plantar coquinho na ladeira.
Em seu lugar, compareceu uma babá inglesa que pedia silêncio sorrindo copiosamente. Só pode ter sido artimanha da Yoani. Como se sabe, ela é agente da CIA.
Barbara Gancia
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".

Sir, no, sir! - JAMES RISEN

O Estado de S.Paulo - 03/03/2013

Como denunciar, se o superior ao qual ela faria a denúncia fora quem a violentara?


Depois de violentar a jovem recruta, o instrutor da Força Aérea disse que tinha gostado e que eles iriam repetir aquilo. Jogou as roupas para ela e ordenou que tomasse uma ducha. Virginia Messick não conseguia se mexer, chorar ou gritar. Era uma garota de 19 anos de Baker, zona rural da Flórida, estava havia menos de cinco semanas treinando na Base Aérea de Lackland e acabara de ser estuprada pelo homem ao qual a Força Aérea confiara sua vida.

Era abril de 2011. Depois disso, Virginia concluiu o treinamento básico, obedecendo às ordens do instrutor por cerca de um mês, sem contar a ninguém o que ele tinha feito. “Como eu poderia denunciar aquilo”, perguntou Virginia, “se o superior ao qual deveria fazer a denúncia fora justamente quem me estuprara?”

Agora, depois de deixar a Força Aérea, Virginia é a primeira vítima de um escândalo sexual ocorrido na base de Lackland a falar publicamente sobre o que sofreu. Desde que as denúncias de abusos na base começaram a ser divulgadas, no final de 2011, constatou-se que era o maior escândalo do gênero na história da Força Aérea dos EUA.

Ela é uma das 62 jovens recrutas identificadas como vítimas de ataques ou outra conduta imprópria por 32 instrutores entre 2009 e 2012 em Lackland, enorme base na região de San Antonio, um centro de treinamento da Força Aérea para quem acaba de se alistar. Sete instrutores foram a corte marcial, entre eles o primeiro-sargento Luis Walker, que cumpre 20 anos por crimes envolvendo dez mulheres, uma delas, Virginia. Outros oito casos estão pendentes na corte, com 15 instrutores sob investigação e dois oficiais afastados.

Embora os comandantes digam que tomaram medidas para proteger melhor seu pessoal mais vulnerável, inclusive designando uma oficial para supervisionar o treinamento, críticos afirmam que as providências não serão suficientes porque as mulheres temem represálias. Nenhuma das vítimas de Lackland falou dos estupros aos oficiais; os episódios só vieram à luz quando uma recruta, que não havia sido estuprada, contou o que sabia. As reformas adotadas não alteram o essencial: os comandantes têm a última palavra quanto a levar as denúncias de crimes aos tribunais militares – e as vítimas devem relatá-los aos que supervisionam suas carreiras.

Identificada pela imprensa durante a corte marcial do seu estuprador apenas como “Aviador 7”, Virginia sofre de transtorno de estresse pós-traumático (PTSD, na sigla em inglês). Ela disse que resolveu falar porque acredita que isso servirá de terapia. Espera também que ajude a mudar a maneira como as Forças Armadas lidam com vítimas de crimes sexuais.

Quando se alistou, em março de 2011, estava animada por sair de Baker. Foi matriculada num “voo” – grupo de treinamento de recrutas – exclusivamente do sexo feminino. Cerca de 25% dos recrutas são mulheres. A Força Aérea tem a maior proporção, 19% no serviço ativo.

O grupo de Virginia raramente via outro supervisor além de Walker. Logo ele começou a distingui-la com tratamento especial, permitindo que usasse o computador de seu escritório para checar e-mails, o que violava as regras de treinamento. Numa visita ao escritório, ele a agarrou e começou a tocá-la. Virginia pediu que parasse. Ele jurou que não voltaria a acontecer.

Mas algum tempo depois o sargento mandou que ela levasse umas toalhas para um andar vazio no alojamento das recrutas. Lá, ela conta que ele a estuprou. Um mês depois, em maio de 2011, ela se casou, impulsivamente, com um colega da Força Aérea. “Acho que estava tentando me proteger.” Divorciaram-se meses depois.

No final daquele ano, já num programa de treinamento avançado no Mississippi, uma amiga contou que Walker estava enviando fotos dele nu e exigia o mesmo dela. Disse que ele também ameaçava arruinar a carreira de Virginia. Virginia contou à amiga que ela e o sargento tinham mantido relações sexuais, mas não falou em estupro. Quando investigadores que vasculhavam a conduta do instrutor chegaram até a amiga, ela falou de Virginia.

Ao ser ouvida, Virginia contou uma versão amenizada do episódio. Mas, ao depôr no processo do sargento em 2012, ela o acusou de violentá-la. Como não revelara o estupro anteriormente, o sargento só foi acusado de ter mantido uma relação não profissional que envolveu sodomia e sexo. Em julho de 2012, foi considerado culpado de 28 acusações, inclusive estupro e ataque sexual envolvendo dez recrutas.

Fora da Força Aérea por causa de um ferimento, Virginia voltou à Flórida, mas um dia quebrou um vaso e usou os cacos para cortar as mãos. “Queria parar de sofrer.” Ela fez terapia num hospital e, em dezembro, voltou a casar.

No entanto, o distúrbio às vezes a paralisa. Ela disse que outras vítimas de Lackland sofrem do mesmo problema e lamenta que a experiência com a qual sonhara mudar sua vida tenha se tornado algo tão triste. “Não estão fazendo nada para quem passou por isso”, falou, referindo-se ao tratamento dado pela Força Aérea às vítimas de ataques. “Não me procuraram nem as outras moças para perguntar o que teria de mudar. Basicamente me deixaram entregue a mim mesma.”

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

No fundo, somos todos bastante iguais - DORRIT HARAZIM


O Globo - 03/03/2013

O americano Dennis Rodman, popstar da Liga Americana de Basquete, e o norte-coreano Kim Jong-un são bípedes feitos para não se entender. Em menos de 48 horas, declararam-se amigos para sempre


Esta semana, duas figuras que
formam a dupla mais improvável
da atualidade roubaram a
cena do noticiário mundial —
ou, melhor, o que sobrou do noticiário,
já que a pompa e circunstância da despedida
do Papa foi de ofuscar qualquer
concorrência.

Segundo qualquer critério, o americano
Dennis Rodman, popstar de uma
geração de ouro da NBA, a Liga Americana
de Basquete, e o norte-coreano
Kim Jong-un são bípedes feitos para
não se entender. Um é ala aposentado
das quadras, o outro é ditador em ascensão.
Em menos de 48 horas, declararam-
se amigos para sempre.

Foi um Rodman bastante despojado
que desembarcou na segunda-feira
no aeroporto de Pyongyang, a capital
do país mais fechado do mundo.
Não fosse pela echarpe rosa-chiclete,
estava vestido com sobriedade. Não
ostentava nenhuma de suas tinturas
de cabelo preferidas — vermelhofúcsia,
amarelo-limão, verde-canarinho,
azul-cobalto. Portava apenas
seus dois fulgurantes piercings nas
narinas e os da parte externa dos lábios,
além da penca de adereços nas
orelhas. Para ele, o básico.

Rodman, de 52 anos e sólida reputação
de bad boy, foi um dos primeiros
atletas da NBA a ter tatuagens pelo
corpo inteiro e autodefinir-se como
bissexual. Traz no currículo um radioativo
namoro com Madonna. Mas
nem os socos que desferiu contra juízes
e eventuais chutes na virilha de
fotógrafos conseguiram ofuscar seu
talento em quadra. Foram cinco títulos
de campeão, três deles pelo Chicago
Bulls de Michael Jordan, e sete prêmios
de melhor jogador nos rebotes
— o bastante para lhe abrir as portas
da nação mais isolada e impenetrável
do mundo.

Seu jovem anfitrião, o ditador principiante
Kim Jong-un, herdou do pai
ditador sênior não apenas o país, mas
também a paixão pelo basquete. Não
qualquer basquete — só o americano.
E um ídolo, o camisa 23 do Chicago
Bulls. Há relatos de que o Querido Líder,
como era chamado Kim Jong-il,
morto em 2011, tinha em sua volumosa
videoteca quase todos os jogos
da era Jordan.

Uma das peças de maior destaque
no Museu do Entendimento Internacional
em Pyongyang é justamente
uma bola de basquete da NBA autografada
por Jordan. Está acondicionada
numa urna de vidro, em meio aos
mais de 50 mil presentes oficiais ali
expostos. Cortesia da astuta Madeleine
Albright, secretária de Estado do
governo Bill Clinton, que em 2000 fez
uma inédita visita oficial à Coreia do
Norte. Os dois países não têm relações
diplomáticas desde que lutaram
em lados opostos numa guerra inconclusa
(1950-1953) que se encerrou
com trégua, mas sem acordo de paz.
Vivem às turras, com picos de hostilidade
a cada novo teste nuclear subterrâneo
realizado pelo regime de
Pyongyang.

Dennis Rodman não é Michael Jordan
nem sua presença em Pyongyang
tem o mais remoto aval do governo de
Barack Obama. Trata-se de uma operação
essencialmente comercial: o ala
aposentado integra uma equipe dos
Harlem Globetrotters que participa
das filmagens de uma série sobre basquete
para o canal HBO. Os Globetrotters
existem há quase 90 anos, são
uma espécie de embaixadores da Boa
Vontade, e já fizeram apresentações
em 122 países ao longo de sua história.
Onde atuam, costumam fazer rir adultos
e crianças com exibições acrobáticas
e aparência extravagante.

Na Coreia do Norte, o impacto foi
de uma chegada de extraterrestres.
Afinal, trata-se de um país em que os
homens são proibidos de deixar à
mostra qualquer pelo facial e onde
até recentemente eram permitidos
apenas 10 tipos de cortes de cabelo. A
população impregnada pelo ideal de
pureza racial ficou estarrecida com
aquelas figuras caleidoscópicas, de
vastas cabeleiras afro e roupas gritantes,
que ao mesmo tempo eram simpáticos,
solícitos e brincalhões.

Sentados lado a lado na arena onde
jogadores da casa e Globetrotters disputavam
uma partida mista, Kim
Jong-un e Dennis Rodman pareciam
se divertir. Entenderam-se em inglês,
o jogo terminou em diplomático empate
de 110 a 110 e seguiu-se um jantar
épico de dez pratos e intermináveis
brindes no palácio do governo.

“Toda criança norte-coreana é alimentada
de antiamericanismo desde
o berço, mas pode gostar de basquete
americano quanto quiser”, espantouse
Shane Smith, o produtor da filmagem
em curso. Mais de quatro décadas
atrás, Zhuang Zedong, um jovem
chinês que participava do 31º Campeonato
Mundial de Pingue-Pongue em
Nagoya, no Japão, passou por espanto
semelhante. Um competidor dos Estados
Unidos entrara por engano no
ônibus reservado à equipe chinesa,
deixando todos petrificados. Zhuang
estava sentado na última fileira. “Cresci
ouvindo o slogan Abaixo o imperialismo
americano. Não sabia se era certo
ter qualquer contato com nosso inimigo
número 1”, contaria depois. Hesitou
por 10 minutos antes de se levantar,
cumprimentar o forasteiro e lhe
ofereceu uma paisagem pintada em
seda. Foi o início da chamada diplomacia
do pingue-pongue. Dez meses
depois, o presidente Richard Nixon
desembarcava em Pequim, abrindo
caminho para o reatamento de relações
diplomáticas plenas em 1979.
Zhuang morreu três semanas atrás.

Nada indica que um degelo semelhante
possa decorrer do pouso surpresa
dos Globetrotters em
Pyongyang. Mas um resultado a visita
já produziu. Ficou provado que o novo
serviço de telefonia móvel G-3 da
Coreia do Norte está funcionando,
permitindo aos fãs de Rodman seguilo
em tempo real. “Não sou político.
Kim Jong-un & povo da Coreia do
Norte são fãs de basquete. Amo todos.
Ponto. Fim de papo”, postou num de
seus primeiros tuítes.

O estilo pode ser diferente, mas a
essência do comentário lembra a
constatação feita quase meio século
atrás por um dos americanos da “diplomacia
do pingue-pongue”: “O povo,
lá, é igual a nós. Fiz amigos. O país
é parecido com a América, só que
muito diferente.”

No fundo, somos todos bastante
iguais. 

Dorrit Harazim é jornalista

As tramas da rede cubana

folha de são paulo

Como funciona a internet off-line na ilha
FLÁVIA MARREIRO
RESUMO Dificuldades de acesso à internet em Cuba não impedem entrada de fenômenos culturais, via celulares, discos e pen drives. Governo fecha os olhos para o mercado negro de conexões, e os que têm acesso à rede esquivam-se do debate político, o que faz com que figuras como Yoani Sánchez sejam populares só fora da ilha.
ALEJANDRO SOLÍS sacou do bolso um celular Motorola, um modelo não muito moderno, mas com capacidade para guardar música. Acionou o ringtone e saíram as primeiras notas de "Gangnam Style".
"Claro que eu conheço. É a música do meu celular", respondeu.
À sua volta, amigos de 20 e poucos anos como ele passam de mão em mão um copo de plástico com rum. Aproveitam a noite na mureta do Malecón, o calçadão elevado que protege Havana do mar, que quebra forte contra as pedras naquela noite fresca de janeiro.
Solís e os amigos confirmam que, como em quase todas as partes do mundo, o sul-coreano Psy emplacou seu hit -e vídeo- na ilha comunista. Só que, na terra de Fidel Castro, o sucesso não teve nada ver com internet ou YouTube.
Nenhum deles tem endereço de e-mail nem conta no Facebook. Não entram em sites de vídeos -nem valeria a pena, com a internet racionada, cara e lentíssima de que dispõem. Solís não fazia a menor ideia de que o vídeo da música de seu celular é, até agora, o mais visto da história da internet.
"Sério? Sabia que estava famosa, mas, se você não me dissesse [da internet], eu nunca saberia", diz Solís, branco de olhos verdes, recém-formado professor de educação física, nível técnico.
Morador de um bairro pobre no oeste de Havana, ele recebeu a música como quase tudo que lê ou escuta em Havana: por Bluetooth. A tecnologia de transmissão de dados por ondas curtas de rádio, desprezada no resto do mundo com a popularização do 3G e do 4G, é ainda muitíssimo popular em Cuba.
Sem custo, sem rastro, o Bluetooth permite repassar megabytes de vídeos, livros, música. Faz do celular, mesmo sem linha, um elemento importante na extensa rede off-line estabelecida no país com a menor taxa de penetração de internet nas Américas. Os outros elementos são pen drives, cartões de memória e discos rígidos.
O circuito em construção há anos ganhou mais um impulso com a legalização, em 2010, da venda de CDs piratas. A atividade, de tão popular, foi incluída entre as 178 profissões autônomas permitidas pelo Estado: vendedor de discos compactos.
PROIBIDÕES Há de tudo. Filmes estrangeiros e cubanos fora de circuito, séries americanas, telenovelas brasileiras antigas ou no ar na TV estatal, programas de auditório dos canais de Miami, noticiário ou treggaetons "proibidões" -com letras ainda mais sexualmente explícitas do que o usual no ritmo que mistura reggae, hip-hop, salsa e bachata.
Nessa rede subterrânea há espaço para simples camaradagem -quem tem música ou série nova ou recebeu algo de algum parente de fora faz circular- e para, claro, fazer dinheiro.
Os produtos são desenhados para caber em vários tipos de bolso. Um CD pirata custa quase sempre o equivalente a R$ 2. Se for um programa mais difícil de encontrar, pode sair pelo triplo disso.
O grupo no Malecón conta, animado, que a moda é comprar o "pacote da semana" da TV a cabo, com brindes promocionais. Tudo capturado via "antena" -parabólicas clandestinas que captam as emissoras de Miami. Os pacotes chegam a preços módicos e com atraso de -só- uma semana em relação à data de exibição original.
"É só ligar. Chega um cara na sua casa, de moto, carregando um disco rígido. Aí ele passa para o seu computador a programação completa. Custa 5, 6 CUC [pesos cubanos conversíveis, algo entre R$ 10 e R$ 12]", conta Solís. Cada canal tem sua própria pasta no disco, numa prova de que em Cuba hoje não só é possível viral sem internet como zapear sem TV a cabo.
PICADINHO "Depois de inventar o picadinho de carne sem carne, os cubanos inventaram a internet sem internet", resumiu, em sua passagem pelo Brasil na semana passada, a ativista e blogueira cubana Yoani Sánchez, comparando as receitas adaptadas à penúria dos anos 90 -a mais aguda crise econômica de Cuba desde a vitória da guerrilha em 1959- aos inventos cubanos para circular informação à revelia do Estado.
"Tudo se irriga rápido", diz Jorge Pérez, 21, um dos jovens do Malecón. Ele e outros entrevistados utilizariam muitas vezes ao longo desta reportagem o verbo "irrigar", o preferido dos cubanos para falar da rede off-line, cuja atividade é complementada pelo envio coletivo de SMS para convocar para festas, por exemplo.
Fã de dance music, Pérez é moreno e usa seus cabelos cuidadosamente arrepiados com gel. Graduado no ensino médio, não está trabalhando e sonha conseguir emigrar. Nem ele nem Solís sabem quem é Yoani Sánchez ou outros blogueiros críticos do governo.
Para eles, o símbolo do protesto ao governo é o duo de hip-hop cubano Los Aldeanos, que não raro canta com Silvito El Libre -ele próprio um sinal dos tempos, filho do cantor ícone da chamada nova trova cubana Silvio Rodríguez.
"Todo tipo de informação se repassa. Com dinheiro, você pode fazer tudo em Cuba. Mas ninguém quer se meter com política", brinca Solís, enquanto com a mão simula uma navalha no pescoço.
Yordane Carrazana, 26, está de acordo: ninguém está interessado em ter problemas com agentes da segurança nacional. Ele gosta de morar em Cuba, seu negócio vai bem e ele só pretende sair da ilha como turista, como fez há dois anos para ir à Itália.
Sentado no sofá do apartamento onde mora com os pais em San Agustín, um bairro de La Lisa, município pobre da Grande Havana, Carrazana explica onde busca o material que grava nos CDs que repassa aos vendedores de rua.
Como um dos "irrigadores" da internet off-line cubana, ele procura ter novidades toda semana. Compra -dos que, de fato, têm acesso a uma conexão que permite baixar arquivos maiores- pacotes inteiros de dados, com filmes, músicas, séries e novelas da Globo.
"Não estamos nada desatualizados em relação ao resto do mundo. Acho que, até pelo fato de não ter outras distrações como internet ou cabo, o cubano dá muito valor para música, é muito exigente", diz ele,que exibe correntes no pescoço ao estilo de rappers americanos. "As pessoas de quem eu compro estão na internet o dia inteiro.
Reggaeton não dura. Todo mês sai um novo sucesso, e eu preciso ter."
"Você não tem como conseguir 'Insensato Corazón' para nós? Seria ótimo", propõe. A novela exibida no Brasil em 2011 vai ao ar três vezes por semana na TV estatal cubana, mas existe demanda de clientes para comprá-la completa. "As pessoas querem saber o final de uma vez, às vezes não conseguem ver no horário."
Carrazana tem internet em casa, discada (não há banda larga em Cuba). A conexão foi adquirida no mercado negro -no qual os preços praticados por hora variam de R$ 1,50 a R$ 4. Nos hotéis, a hora de conexão pode chegar a algo como R$ 14. O salário mensal médio em Cuba equivale a R$ 40.
O acesso, exasperantemente lento, praticamente inviabiliza baixar vídeos e músicas. Daí a importância, para Carrazana, de seus fornecedores -o perfil típico é um funcionário público que, como administrador de uma rede, tem conexão melhor e ganha a vida repassando conteúdo.
PANORAMA Os rapazes e moças do Malecón, o "irrigador" e seus fornecedores são uma fotografia do panorama digital em Cuba, no qual se misturam o embargo econômico à ilha imposto pelos EUA, a censura e, agora, uma esperança financiada pela aliança estratégica dos Castro com a Venezuela.
Atualmente, só estrangeiros e algumas categorias profissionais e artísticas têm autorização para adquirir legalmente uma conexão doméstica de internet -origem da maior parte das conexões que alimentam o mercado negro.
Pelos números oficiais, 22% da população tem algum tipo de acesso à rede, a maioria em locais de trabalho e universidades onde o uso é restrito -há páginas que são vetadas, por exemplo. Estima-se que só uma baixíssima porcentagem de fato acesse à rede livremente. Prova de que a cifra oficial é ilusória é que, dentro desses 22%, são contabilizados os usuários dos chamados clubes jovens (Joven Club), mescla de lan house e cybercafé -só que sem internet e, muitas vezes, sem café.
"A gente acessa o que está lá nos computadores, basicamente para fazer os trabalhos", conta Maylin Suárez, 22, que deixou de ter e-mail quando se graduou em engenharia, recentemente.
Os computadores dos clubes jovens têm um amplo acervo off-line para pesquisas escolares e universitárias. Têm acesso a uma versão local do Wikipédia, a Ecured, e um fórum de estudantes, a RedSocial, que emula a pré-história do Facebook. Tudo fora da rede mundial.
O governo diz que a indigência digital da ilha é culpa de Washington. Afirma que, por causa das restrições impostas pelo embargo norte-americano a Cuba, não há capacidade técnica nem financeira para expandir o uso da rede e que por isso é preciso listar prioridades e privilegiar o uso social, e não individual.
O embargo complica, de fato, as conexões na ilha. Graças às sanções -aplicadas há mais de 50 anos e endurecidas nos anos George W. Bush (2001-2009)- a empresas que negociem com Cuba, o país jamais conseguiu se conectar a cabos de fibra ótica da Flórida ou de vizinhos caribenhos. A conexão é via satélite, meio mais custoso.
No ano passado, o embargo também foi o culpado por impedir o uso em Cuba de várias ferramentas do Google, entre as quais o Analytics, serviço gratuito de análise de páginas na internet. A empresa citou as leis americanas como motivo para a restrição. Foi um sinal de que as medidas de Barack Obama de 2009 que incluíram flexibilizações para empresas ligadas à internet negociarem com Cuba foram inócuas até agora.
CABO A esperança de que o serviço melhore no médio prazo vem do país de Hugo Chávez. Em 2007, Caracas anunciou com festa a decisão de construir um cabo de fibra ótica ligando a Venezuela a Cuba, passando pela Jamaica a um custo equivalente a R$ 144 milhões.
Cinco anos e um escândalo de corrupção depois, o cabo finalmente está operante -teve de informar em janeiro a Etecsa, a estatal cubana de telefonia, após uma empresa americana detectar que a fibra já estava em funcionamento.
A nota da Etecsa, publicada na imprensa estatal cubana, no entanto, foi anticlimática: "A operação do cabo não significará que automaticamente se multipliquem as possibilidades de acesso. Será necessário executar investimentos na infraestrutura interna de telecomunicações e aumentar os recursos em divisas destinados a pagar o tráfico de internet".
Leosdani Izquierdo não se abateu com o tom do comunicado. "Em um ano, dois, eu acho, vai haver internet liberada para cubanos. Primeiro vai ser bem caro, mas depois vai melhorar", diz ele, falando por telefone, de Havana. "Antes era uma questão de censura, mas acho que agora é menos."
Formado em cibernética, Izquierdo, 31, é um dos principais empreendedores da internet convencional de Cuba. Há cinco anos, ele fundou com sócios o site de classificados on-line precio cubano.com. É uma versão menor do maior sucesso de compra e venda on-line da ilha e para a ilha, o revolico.com, que só nos últimos 60 dias diz ter ganhado 19 mil novos anúncios de venda de imóveis em Cuba, modalidade liberada pelo governo no ano passado. Izquierdo hospedou seu site num servidor na Alemanha e o proveu com um esquema de compra de crédito virtual -a ideia é que parentes e amigos de cubanos no exterior com acesso a cartão de crédito possam comprar a moeda eletrônica e transferi-la a moradores da ilha, por exemplo. "A maior parte dos visitantes é de cubanos que moram fora. Quando estourar a internet em Cuba, meus negócios já vão ser conhecidos", espera Izquierdo. Ele não revela os valores de seus negócios, mas diz que estão em expansão e que prefere não entrar em detalhes sobre todas as suas start-ups "para não chamar a atenção da concorrência".
O empreendedor acaba de reformular um site para vendas de móveis de fabricação própria. Nele, pode-se comprar, com cartão de crédito e entrega grátis em Havana, um jogo de sofá de dois e três lugares modelo "brasileiro moderno" -uma designação popular em Cuba- por cerca de R$ 1.300. Como no site de classificados, 80% dos clientes são cubanos que vivem no exterior e querem financiar parentes.
"Pago impostos, na medida do possível", comenta o empresário. O problema é que as reformas econômicas de Raúl Castro não foram suficientes para o ímpeto empreendedor de Izquierdo. O governo abriu novas licenças para trabalhadores autônomos em categorias específicas -quando os especialistas dizem que deveria ter listado os vetos, e não as autorizações- e licenças para novos restaurantes, cafeterias, cabelereiros e barbearias. Nada foi dito, porém, sobre pequenas empresas para fabricação de móveis.
Outro gargalo de seus negócios é, obviamente, a internet. Apesar de gerenciar um site com mais de 2.000 acessos diários e milhares de anúncios, Izquierdo não tem acesso ilimitado à rede. Diz pagar o equivalente a R$ 120 mensais por 80 horas de uso. Com o racionamento da navegação, ele diz, não sobra muito tempo para política. "Meu interesse é mais por notícias de economia. Não me importo muito com a política."
TRANSIÇÃO As redes cubanas não estão imunes nem alheias, no entanto, à informação com conteúdo político. E nisso concordam o governo comunista, ativistas como Yoani Sánchez e Washington, todos os quais movem suas fichas. Para todos eles, pode estar na forma como evoluirá a circulação horizontal de informação, inclusive política, um fator-chave para o sucesso ou não da transição posta em marcha por Raúl Castro, planejada para ser lenta, gradual e controlada.
Contam tanto a internet off-line como a on-line. O Twitter e demais redes sociais que contribuíram para fomentar a Primavera Árabe têm, afinal, um ancestral analógico equivalente aos pen drives: as gravações em fitas cassete com que o aiatolá Khomeini insuflou a Revolução Islâmica no Irã, no fim dos anos 1970. E Cuba parece estar, tecnologicamente, a meio caminho entre as duas experiências.
A ilha já tem seus "virais off-line" políticos e de sátira política, embora marginais nos canais dominados pelo entretenimento. Denúncias de corrupção de dirigentes, com fotos e documentos, ou notícias desagradáveis para o governo, como o recente surto de cólera, passam de um dispositivo móvel de memória a outro.
OBJETOS DE CULTO Há também os objetos de culto do gênero, como a série de curtas satíricos do cineasta cubano Eduardo del Llano. Em todos, o personagem central é Nicanor O'Donnel, um cubano inusualmente questionador.
Em "Monte Rouge", de 2004, o primeiro deles, agentes da segurança do Estado chegam à casa de Nicanor e perguntam: "Onde é que vocês mais falam mal do governo, para instalarmos um microfone?".
Em "Brainstorm" (2009), o alvo da sátira é o jornal oficial "Granma". No episódio, após a queda de um meteorito num estádio em Havana, matando 93 pessoas, os jornalistas do "órgão oficial do Partido Comunista" discutem o que estampar na capa da edição do dia seguinte: as vítimas ou um recorde olímpico batido no mesmo dia?
Um telefonema da direção do PC decide que a manchete não é uma nem outra, mas o bom desempenho dos portos da capital, enquanto Nicanor observa pela janela que alienígenas atacam a ilha.
Entre os vídeos essencialmente políticos, um dos mais célebres e pioneiros materiais do gênero foi o protagonizado por um então importante dirigente estudantil pró-governo, Eliécer Ávila. Em 2008, Ávila, presidente da União de Jovens Comunistas da UCI, a principal universidade de informática em Cuba, questionou um alto dirigente sobre medidas do regime, como o veto a viagens ao exterior sem prévia autorização do governo (que só foi derrubado em janeiro último) ou as restrições para o uso da internet.
O vídeo caiu na rede -e foi visto fora de Cuba-, mas principalmente circulou de mão em mão na ilha.
"O principal mérito dessa reunião [gravada em vídeo] foi ter iniciado uma nova etapa na história do debate político público em Cuba. Falar aquelas palavras e seguir estudando na universidade alargou os limites do debate", disse Ávila à Folha em Havana em janeiro, dias antes de finalmente viajar ao exterior graças à entrada em vigor da reforma migratória.
Após o vídeo estourar, conta, ele conseguiu se formar, mas logo foi enviado para o interior do
país, como parte do trabalho social obrigatório após a graduação. Ávila considerou a transferência uma punição disfarçada e rompeu de vez com o governo.
TUÍTES Nesse ambiente, Yoani Sánchez resolveu que, além de escrever seu blog, ela se tornaria uma ativista digital, oferecendo cursos em Havana para os interessados em tuitar off-line, usando o método que ela emprega: um SMS enviado a um número de telefone no Reino Unido se transforma em tuíte imediatamente. Ela e o marido, o jornalista Reinaldo Escobar, gravam vídeos com temas políticos para difusão on-line e off-line.
O governo cubano e os blogueiros e tuiteiros que o apoiam não cansam de dizer que essas atividades têm financiamento dos EUA -acusação para a qual não há provas. Yoani Sánchez nega, informando como fonte de recursos seus ganhos como correspondente do jornal espanhol "El País" e os prêmios recebidos pelo blog.
O interesse de Washington em desenvolver programas e destinar verba para promover a "democracia digital" na ilha, no entanto, é real e documentado e ocupa o centro de um embate diplomático com o governo Raúl Castro.
Foi como agente de um desses programas "pró- democracia digital" que o americano Alan Gross foi preso em Cuba em 2009.
Ele foi apanhado distribuindo ilegalmente, de acordo com as leis cubanas, celulares e equipamentos de acesso à internet por satélite (tecnologia de ponta usada pelo Pentágono) à pequena comunidade judaica cubana.
"Alan Gross é a prova viva da ingerência dos Estados Unidos em Cuba, e isso é muito valioso para o governo cubano", diz o jornalista americano Tracey Eaton, que mantém um projeto de rastreamento da verba pública utilizada por seu país nos programas "pró-democracia" na ilha.
"Creio que quando os historiadores, em 10, 20 anos, começarem a tentar ver qual foi o papel dos Estados Unidos em qualquer evolução ou transição em Cuba, vão querer saber como eram esses programas. Não creio que se deva esperar até 25 anos para saber o que eles fizeram", segue Eaton.
TRÊS PROBLEMAS "Os EUA farão tudo o que puderem para estimular uma primavera em Cuba. Mas creio que, se o governo americano quer mudanças em Cuba, deveria eliminar o bloqueio e inundar ao país com gente, ideias e dinheiro. Muita gente não se interessa por política, internet nem nada disso porque seus problemas diários são três: o café da manhã, o almoço e o jantar. 'O que vou comer hoje?' É o que elas pensam. Não pensam nem no governo nem no futuro nem na internet", diz Eaton.
Para Eliécer Ávila, a limitação tecnológica -que faz todo cubano com acesso a uma internet melhor pensar duas vezes antes de se arriscar a repassar temas sensíveis politicamente-, a falta de "uma alternativa séria e confiável" e o "freio mental" dos cubanos se combinam para deter qualquer movimento político de contestação ao governo: "Motivos sobram. Condições? Não há".
"As pessoas pensam: por que vou me mobilizar, se aqui não batem nas pessoas normalmente nas ruas, se elas não desaparecem nem são torturadas? Eles entenderam que, se encarcerassem a mente, ninguém tocaria no corpo. Todo mundo tem um freio dentro da cabeça", diz Ávila, que quer fazer carreira política e fundar um partido na Cuba do futuro.
"Há um desejo passivo. Se houvesse uma alternativa séria, se as pessoas confiassem que não vai lhes ocorrer nada de mau, as pessoas se mobilizariam, sim. Mas, a cada vez que surge uma figura que se coloca politicamente, toda a maquinaria do Estado a bombardeia. Sem oposição nenhuma, sem direito a réplica ou a apelar na Justiça", conclui.

Helio Schwartsman

folha de são paulo

Genealogia da moral
O debate sobre a tortura mostra quão pouco sabemos de nós mesmos
HÉLIO SCHWARTSMAN
RESUMO Debate entre colunistas desta Folha reacendeu a discussão sobre as questões éticas da utilização da tortura. Sob o ponto de vista de duas matrizes de sistemas éticos -deontológica e consequencialista-, as ponderações de cada um dos autores denota quão paradoxal é a construção de nossas convicções morais.
É DIFÍCIL A vida do ser humano. Levamos centenas de milhares de anos para aprimorar a ética e, quando procuramos sistematizá-la, quebramos a cara, já que as tentativas de fazê-lo invariavelmente levam a paradoxos. Faço essa consideração a propósito da controvérsia sobre a justificação moral da tortura em que se meteram alguns de meus colegas colunistas da Folha e me junto a eles na balbúrdia.
Foi Contardo Calligaris quem deu início à celeuma, lançando, em sua coluna na "Ilustrada" de 21 de fevereiro, de forma meio provocativa, uma variante do dilema conhecido como "problema da bomba-relógio": "Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?".
Vladimir Safatle e Marcelo Coelho aceitaram a provocação e responderam a Calligaris com artigos bastante interessantes. Na terça passada, o professor da USP criticou, em seu texto semanal na página 2, o que chamou de "paradoxos morais de laboratório" aos quais acusou de não informar nada e esconder interesses nem sempre confessáveis.
No dia seguinte, Coelho, na "Ilustrada", foi mais ou menos na mesma linha, afirmando que esse gênero de experimento mental combina muito mais com a ficção do que com a realidade, na qual não devemos admitir nenhum tipo de tortura.
Paradoxalmente, eu concordo com todos eles e também discordo, em proporções parecidas.
Receio que, para entender melhor o que está em jogo, tenhamos de traduzir a polêmica para o chamado filosofês.
SISTEMAS ÉTICOS Fazendo uma simplificação exagerada da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, têm como expoentes Platão (429-347 a.C.) e Immanuel Kant (1724-1804).
Para os dois autores, são os princípios que importam. Valem incondicionalmente regras como "não matarás" ou "não mentirás", porque estão amparadas pela ideia de justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.
No outro extremo dos sistemas éticos está o consequencialismo, defendido por intelectuais comoJeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Em resumo, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que acarretam. É preciso dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso de Bentham (conhecido como o pai do utilitarismo), o que interessa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula "o maior bem para o maior número de pessoas".
O argumento da bomba-relógio pode nos deixar em dúvida porque apela a nossas intuições consequencialistas. Se torturar um indivíduo nos faz salvar cem pessoas, ficamos com um saldo líquido de 99 vidas, mesmo que o suposto terrorista morra no processo.
O problema tanto com as éticas deontológicas como com as consequencialistas é que, se tomadas muito ao pé da letra, levam a situações que desafiam nosso senso de justiça. O dever de ser honesto para com todos, por exemplo, me obrigaria a revelar a um assassino o lugar onde sua presa se esconde.
O próprio Kant foi vítima desse paradoxo de laboratório. E caiu na esparrela. Após ter sido provocado por Benjamin Constant (1767-1830), o filósofo de Königsberg publicou "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor aos Homens", um dos mais estranhos textos da história da filosofia, no qual confirmou que não temos o direito de mentir para ninguém, nem para assassinos e outros celerados que nos ameacem a vida.
A situação dos consequencialistas não é muito mais confortável. Se só o que importa é produzir o maior bem possível para a maioria das pessoas, então o médico poderia matar o paciente saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que necessitavam de transplante. De forma análoga, o Estado estaria autorizado a torturar não apenas terroristas mas também seus familiares para demovê-lo de seus projetos funestos.
MECANISMOS É claro que filósofos são sujeitos espertos e, tendo percebido esses problemas, se puseram a elaborar mecanismos para contorná-los. Foi assim que surgiram propostas inventivas, como o consequencialismo de regras, o consequencialismo em dois níveis e as metaéticas contemporâneas, sem mencionar as éticas da virtude e as que pendem para o contratualismo.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit, em seu monumental "On What Matters", chega mesmo a propor uma interpretação que torna Immanuel Kant um consequencialista. Mas, se filósofos são bons em imaginar soluções, são ainda melhores em levantar objeções. Até o momento, não existe (e provavelmente jamais existirá) uma teoria que satisfaça a todas as partes.
Centremo-nos nas críticas ao consequencialismo, pois foi o que levantou o problema da tortura.
Um dos principais pontos fracos dessas éticas é o problema da falta de informação. Outro filósofo da atualidade, Daniel Dennett, exemplifica bem a questão com o que chamou de "efeito Three Mile Island". Em 1979, nessa localidade no Estado da Pensilvânia, ocorreu o pior desastre nuclear da história dos EUA, quando uma sucessão de eventos levou ao derretimento parcial do núcleo de um dos reatores. Houve vazamento de radiação, mas não se registraram mortes. A pergunta é: o incidente teve resultado positivo ou negativo?
À primeira análise, ninguém qualificaria um desastre nuclear como bom. Mas, considerando que não houve vítimas e que o ocorrido contribuiu para reformular os protocolos de segurança e tornar as usinas muito menos perigosas, essa ideia já não parece tão absurda. Um espírito de porco, porém, poderia afirmar que o incidente, ao nos empurrar para matrizes energéticas mais poluentes do que a nuclear, provavelmente foi responsável por alguns casos extras de câncer, o que reduziu o bem-estar da humanidade. O mundo é um lugar complexo demais para imaginarmos que seremos capazes de considerar todas as variáveis relevantes.
Outra dificuldade é que não é tão simples encontrar uma moeda corrente que permita intermediar as contas necessárias para fazer o consequencialismo funcionar.
Como observou a filósofa Patricia Churchland, "ninguém tem a menor ideia de como comparar a leve dor de cabeça de 5 milhões de pessoas com as pernas quebradas de duas pessoas, ou as necessidades de dois filhos contra as de cem crianças com paralisia cerebral das quais não somos parentes na Sérvia".
Nesse sentido, não dá para deixar de concordar com Vladimir Safatle e Marcelo Coelho quando afirmam que o paradoxo moral fora de contexto não pode servir de modelo para situações reais. Quantas vezes na história da humanidade o cenário da bomba-relógio de fato se materializou? Eu arriscaria dizer que nenhuma. E, mesmo que tivesse acontecido, que garantia teríamos de que todas as informações relevantes foram computadas? Será que entre as crianças que morreriam no atentado não estaria o próximo Hitler?
MORAL Sam Harris resume bem as coisas quando diz, em "The Moral Landscape", que o consequencialismo é muito mais uma afirmação sobre o status da moral do que um método para responder a problemas éticos específicos.
Daí não decorre que os paradoxos de laboratório sejam uma completa inutilidade. Eles oferecem uma janela perfeita para que perscrutemos nossas intuições morais, que podem ser bastante informativas, tanto do ponto de vista da filosofia como dos da psicologia evolutiva e da própria biologia.
O psicólogo Jonathan Haidt explora bem esse tipo de questão. Analisemos um dos paradoxos que ele propõe.
Julie e Mark são irmãos. Eles estão em férias da universidade, fazendo uma viagem pela França. Uma noite, sozinhos num bangalô à beira da praia, decidem que seria legal e divertido se fizessem amor. Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, e Mark resolveu que usaria também uma camisinha, só para garantir. Os dois fazem sexo e gostam da experiência. Combinam de mantê-la em segredo e jamais repeti-la. O que você acha disso? O que eles fizeram é correto?
A esmagadora maioria das pessoas pensa que não. Muitos sentem até um mal-estar visceral ao ler a descrição. Ninguém, entretanto, é capaz de apontar o que há de objetivamente errado na experiência dos irmãos, já que ela não produziu nenhuma espécie de dano para ninguém.
Desse pequeno paradoxo e da forma como as pessoas reagem a ele já podemos extrair "insights" valiosos sobre a origem da moral -que carrega muito de emocional, como, aliás, já apontara David Hume (1711-1776)- e sobre o lugar do incesto em nossa psique (ao que parece, ele provoca mais repulsa do que desejo).
Jonathan Haidt, porém, vai mais longe e, valendo-se de várias famílias de investigações com base em paradoxos, propõe uma genealogia completa da moral, que seria composta por seis sentimentos básicos: proteção, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade (pureza). Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. O mapa ético de cada indivíduo seria uma combinação de diferentes proporções desses ingredientes.
Evidentemente, a teoria de Haidt está longe de ser um consenso. Ela recebeu muitas e variadas críticas, algumas bastante pertinentes. O objetivo, contudo, era apenas tentar demonstrar que os paradoxos podem ser produtivos -mesmo que não sejam capazes de nos oferecer um manual de conduta.
Aliás, o interessante nessa história toda é que, quanto mais nos embrenhamos nessas reflexões, mais precário parece o edifício lógico no qual sustentamos as convicções morais que expressamos com tanta veemência.

Arquitetura de palavras [Lina Bo Bardi] - Marcelo Ferraz

folha de são paulo

A escrita livre e exata de Lina Bo Bardi
MARCELO FERRAZRESUMO Pouco conhecida, obra escrita de Lina Bo Bardi espelha principais aspectos de sua arquitetura: rigor formal e apreço pelo convívio humano. Ex-assistente da criadora do Sesc Pompeia, obra exemplar desses princípios que comemora 30 anos com mostra e livro, comenta coerência entre pensar e fazer na obra da arquiteta.
"Quando não posso construir, desenho; quando não posso desenhar, escrevo; quando não posso escrever, falo." Com essa máxima, Le Corbusier não deixa dúvidas de que, para ele, a missão maior do arquiteto é a construção. É ela que fundamenta e alimenta o desenvolvimento tecnológico e intelectual em torno da disciplina arquitetura: modos de construir, de criar espaços e habitar. Mas, diz ele, qualquer recurso de linguagem -desenho, escrita ou fala- pode ser veículo da construção.
Com essa pequena introdução quero abordar aqui um aspecto da obra de Lina Bo Bardi (1914-92) que só agora começa a ser mais divulgado e conhecido por acadêmicos e arquitetos: seus escritos.
Prevê-se que essa lacuna diminua, com a promessa de que em pouco tempo os arquivos da arquiteta (cerca de 6.000 itens catalogados pelo Instituto Lina Bo e P.M. Bardi) possam ser acessados pelo público na Casa de Vidro, que ela construiu para si e para Pietro Maria Bardi no Morumbi, em São Paulo. Com isso, deve vir à luz a coerência que uniu sempre seu pensamento e sua obra construída.
A obra arquitetônica de Lina tem sido cada vez mais difundida mundo afora, surpreendendo e ganhando crescente prestígio por sua relevância na atualidade. Em tempos de crise econômica nos países ricos e de falência de certa arquitetura-espetáculo (pautada pela aparência e por malabarismos formais que acabam por roubar-lhe a alma), a obra de Lina Bo Bardi continua a apontar caminhos.
Na sua arquitetura pública e democrática, vale a definição de Alvar Aalto de que "o arquiteto é um servidor da sociedade". Nela, emoção, surpresa e descoberta, aliados a um extremo rigor, ditam o tom e o ritmo. Cito aqui o Solar do Unhão (1962), na Bahia; o Museu de Arte de São Paulo (1968) e o Sesc Fábrica da Pompeia (1982), ambos em São Paulo. São três obras exemplares, voltadas à promoção do encontro de pessoas e à convivência humana. Nelas, pode-se ver ao mesmo tempo a evolução do pensamento de Lina ao longo dos anos e também a permanência, ou insistência, de certas proposições em todo o período.
Mas o fato é que Lina Bo Bardi também escrevia -e escrevia bem. Entre tantos textos que comprovam como a linguagem escrita pode, para além do desenho, expressar conceitos de arquitetura, encontra-se, por exemplo, esta menção ao Sesc Pompeia:
"Existem sociedades abertas e sociedades fechadas; a América é uma sociedade aberta, com prados floridos e o vento que limpa e ajuda. Assim, numa cidade entulhada e ofendida pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. E aí está hoje a Fábrica da Pompeia, com seus milhares de frequentadores, as filas na choperia, o 'solarium' do deck, o bloco esportivo; a alegria da fábrica destelhada que continua: pequena alegria numa triste cidade."
INGENUIDADE Quando chega ao Brasil vinda da Itália, em 1946, Lina Bo Bardi rapidamente se apaixona pelo novo mundo, pela exuberante natureza tropical e pelo povo brasileiro, com sua descontração e um certo quê de ingenuidade, "ainda não contaminada pela soberba e pelo dinheiro", como costumava dizer. E essa paixão e dedicação ao país que escolhe para ser sua nova terra estarão presentes em toda a sua obra arquitetônica e em seus escritos. Mesmo quando não se vinculam a um projeto específico, seus textos clarificam o que sentimos diante de sua obra construída.
"Cada país tem sua maneira própria de encarar não somente a arquitetura, mas também todas as formas da vida humana. Eu acredito numa solidariedade internacional, num concerto de todas as vozes particulares. Agora, é um contrassenso se pensar numa linguagem comum aos povos se cada um não aprofunda suas raízes, que são diferentes. A realidade à beira do São Francisco não é a mesma que à beira do Tietê... Essa realidade é tão importante como a realidade da qual saiu Alvar Aalto ou as tradições japonesas. Não no sentido folclórico, mas no sentido estrutural", escreveu.
Lina jamais se deixou levar por modismos ou formalismos, um caminho perigoso pelo qual a arquitetura desandou no chamado estilo internacional, gerando projetos que se assemelham enormemente, a despeito da parte do globo em que se encontrem. São os hotéis, torres corporativas e, mais recentemente, a arquitetura de estrelas como Frank Gehry, Daniel Libeskind ou Santiago Calatrava.
Embora tenha tido seu nome muitas vezes associado ao movimento brutalista, Lina sempre achou essa associação mecânica, quase unicamente devida ao emprego que fazia de materiais nus, como o concreto rústico. Seguramente, porém, sua obra poderia ser associada ao movimento em sua essência e fundamento principal. Com a palavra os Smithsons, Alison e Peter, papas do chamado novo brutalismo inglês: "'Brutalista', para nós, significa 'direto' [...]. [Algo] necessário para se adequar aos novos tempos".
REFLEXÕES Suas anotações em bloquinhos, pedaços de papel ou versos de envelopes continham reflexões sobre os mais variados temas -receitas de comida, lendas sertanejas ou a própria vida-, mas eram, principalmente, lembretes de alguma boa ideia para um projeto que, muitas vezes, ainda não existia em sua agenda. Em textos de apresentação de trabalhos, artigos e cartas públicas, sua escrita brilha como a ferramenta eficaz de um arquiteto engajado de corpo inteiro, produzindo metáforas, imagens fantásticas e quase físicas, ironia fina, humor, contundência, postura política e rigor.
Assim, os suportes tubulares da estrutura metálica concebida para o projeto (perdedor) para o concurso do vale do Anhangabaú são "como árvores tropicais -árvores de aço- lembrando a gameleira brava brasileira". "Ideia fundamental: dar ao ferro/aço a liberdade natural e não simétrica da natureza, contra o esquematismo abstrato-regular. É preciso um suporte? É um cipó, uma escora? São raízes. É a liberdade rigorosamente controlada e calculada da natureza, obediência absoluta às 'leis que mandam', nada de arbitrário, mas, como na natureza, o máximo de fantasia", segue Lina.
Quando defende sua escolha para o piso do Sesc Pompeia, descreve os paralelepípedos como "um dos calçamentos mais sublimes da história da humanidade, documentos seculares de pedras cortadas e alisadas com as mãos, por homens, mulheres, crianças, documentos de civilização".
Lina escrevia em forma de manifestos ou plataformas de ação: com objetividade, síntese e economia -aspectos que, curiosamente, são também fundamentos da poesia. Sua obra espelha essa vontade de poesia em cada detalhe; é fiel à sua máxima tantas vezes repetida: "Nunca procurei a beleza, mas sim a poesia". Lina queria ser poeta com as armas da arquitetura. E foi.
Ao falar da visão que Lina Bo Bardi expressou em seus textos, estamos falando, é claro, de arquitetura como forma de intervir na realidade, na vida das pessoas e comunidades, como forma de mudar o mundo -grande desejo da arquiteta. "No fundo, vejo a arquitetura como serviço coletivo e como poesia. Alguma coisa que nada tem a ver com 'arte'; uma espécie de aliança entre 'dovere' [dever] e 'prática científica'. É um caminho meio duro, mas é o caminho da arquitetura."
Combatendo certa hegemonia ou mitificação do desenho arquitetônico como forma final de construir, Lina, provocadora que era, dizia ser capaz de fazer um projeto totalmente escrito. Nós, seus assistentes, pudemos ver isso acontecer em 1991, no concurso de projetos para o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Sevilha, que ocorreria no ano seguinte. Adoecida, ela ditou todos os nossos passos -desenhos e textos-, sem tocar em um lápis ou folha de papel. Para Lina, era como empreender um passeio literário -ou, quem sabe, reger uma orquestra.
Arquitetura, para Lina Bo Bardi, não era se debater diante do papel em branco, à espera de uma inspiração arbitrária. Para ela, tratava-se de organizar ideias, de ligar polos inusitados; tratava-se, enfim, de criar, a partir de uma visão individual e de um modo de estar e interagir com o mundo em que habitamos -sempre com uma forte carga de sentido humano. Havia, em Lina, a busca da síntese coerente entre pensar e fazer arquitetura. "A emoção da ciência traduzida em técnica pelo homem é a mesma comunicada pela obra de arte. Equilíbrio, estrutura, rigor, aquele mundo outro que o homem não conhece, que a arte sugere, do qual o homem tem nostalgia."
Temos, na história da arquitetura, muitos arquitetos brilhantes, fundamentais, com uma obra fantástica construída, que não deixaram nem sequer um pequeno texto, um registro escrito sobre seu trabalho -Luis Barragán foi um deles. Outros, muitos, produziram escritos brilhantes aos quais suas obras arquitetônicas não fazem jus; falta-lhes, ao transitar entre uma e outra linguagem, unidade de pensamento-Robert Venturi e Aldo Rossi o exemplificam.
O pensamento, a ação política e, mais do que isso, a arquitetura de Lina Bo Bardi encontram a mais fiel expressão em sua escrita lúcida e seca. Ler seus textos é também revisitar seus espaços construídos, projetados ou sonhados; é passear por sua arquitetura feita como a melhor poesia: livre e exata.

    Raul Juste Lores - Especulação acadêmica

    folha de são paulo

    DIÁRIO DE NOVA YORK
    o mapa da cultura
    Duas universidades e o mercado imobiliário
    RAUL JUSTE LORESQuarteirões inteiros do Village e do West Harlem serão transformados na próxima década se saírem do papel as ambiciosas ampliações das duas principais universidades de Nova York.
    Para comemorar seus 200 anos, a Universidade de Nova York (NYU) conseguiu a aprovação da prefeitura para a construção de mais de 260 mil m2 em diversas construções ao redor de seu campus urbano, no Village nova-iorquino.
    No projeto NYU 2031, estão previstos novos laboratórios, edifícios de dormitórios para os estudantes e muito espaço comercial -de um novo hotel a restaurantes e lojas. A NYU já é chamada de "imobiliária do Village" (veja outros detalhes em nyu.edu/nyu2031).
    Dos 6.000 professores da universidade, 40% vivem na região em apartamentos subsidiados (alguns em prédios desenhados pelo arquiteto I. M. Pei, autor da pirâmide do Louvre). Eles estão entre os maiores opositores da expansão e votarão uma moção de repúdio ao reitor neste mês -que pode forçar sua renúncia.
    No outro lado de Manhattan, ao norte da ilha, a Universidade Columbia também está em um processo de expansão em um terreno de 70 mil m2 de área no West Harlem. As duas ampliações são orçadas em US$ 6 bilhões cada uma.
    Para o prefeito Michael Bloomberg, a cidade formará mais engenheiros e especialistas em computação e poderá continuar a atrair estudantes de todo o mundo; para moradores, as universidades viraram agentes da especulação imobiliária e precisam ser freadas.
    TERMÔMETRO URBANO
    Alheio à polêmica no redor, o laboratório de cidades inteligentes da NYU acaba de inaugurar sede e pretende estudar a ciência das cidades -o nome oficial é Centro de Ciência Urbana e Progresso.
    Usando sensores, radares e softwares desenvolvidos por empresas parceiras, como IBM, Cisco e Xerox, o centro vai estudar e medir o consumo de energia e água, a produção de lixo e até mensurar o barulho em cruzamentos na cidade.
    Os dados servirão para políticas públicas que visem a economia e o fim do desperdício. A ambição é repetir o sucesso do programa CompStat, que desde meados da década de 90, compila todas as ocorrências policiais na cidade -tipo de crime, horário, protagonistas, local. Com os dados, foi possível otimizar a patrulha da cidade e concentrar o foco em padrões repetidos de infração.
    PASTA E BYTES
    Até os anos 90, por causa da criminalidade, o parque da praça Madison era um lugar do qual guardar distância depois das 18h.
    Hoje, ao seu redor, surgiu um Vale do Silício em miniatura. Sedes de sites populares como Tumblr e Mashable ficam na vizinhança, e dois hotéis-design, Ace e Nomad, reúnem dezenas de jovens com seus laptops (o wi-fi é gratuito, e os hotéis lucram pela popularidade de seus bares).
    Há instalações de arte temporárias na praça, que abriga quiosques de comida rápida, um dos segredos locais que deixam calçadas vivas até tarde da noite.
    Duas atrações chamam os turistas para a área: o Museu da Matemática, para crianças, aberto em dezembro, e um paraíso dos gourmets, o Eataly, complexo de restaurantes e mercado de produtos importados da Itália, aberto há dois anos.
    A CIA ISRAELENSE
    Vizinho ao Lincoln Center, o único cinema de Nova York a exibir o documentário "The Gatekeepers", de Dror Moreh, se tornou ponto de encontro da numerosa comunidade judaica.
    Com entrevistas exclusivas dos últimos seis dirigentes da Shin Bet -a agência de inteligência de Israel-, o documentário mostra um bastidor único e quase asfixiante de 30 anos de espionagem (assista a trailer do documentário embit.ly/thegatekeepersfilm).
    Fora do cargo, eles criticam o oportunismo dos políticos, falam francamente sobre a dúvida moral que envolve atingir um alvo sabendo que vidas inocentes serão destruídas e fazem afirmações como "o terrorista de um lado é o guerreiro da liberdade no outro".
    O filme foi derrotado no Oscar de melhor documentário, mas quem se importa? Em tempos que incensam filmes como "Argo" e "A Hora Mais Escura", é difícil imaginar que algo similar fosse feito sobre a CIA.
    Sinal de marketing esperto: um dos trailers projetados antes das exibições de "The Gatekeepers" é o do documentário "Hava Nagila - The Movie", de Roberta Grossman, sobre a música onipresente em festas judaicas. A peça de divulgação do filme pode ser vista em bit.ly/havanagila.

      Vinicius Torres Freire

      folha de são paulo

      Mentiras petistas e tucanas
      Pibinhos e Pibões não dizem tudo sobre um governo; debate está partidarizado além da conta
      ESTÁ DIFÍCIL de achar um canto onde a conversa sobre Pibinhos e Pibões não esteja adulterada por mentiras cruas, pílulas douradas e outras malversações da inteligência e da dignidade.
      O descaramento das turumbambas entre tucanos e petistas contribui muito para a degradação da conversa, como se sabe.
      Mas por que damos de barato que a política politiqueira grossa domine todo o debate político entre os partidos que muito mal e mal ainda merecem tal nome? Pior que isso, a grossura domina muito do debate entre simpatizantes mais instruídos e menos envolvidos na refrega eleitoral.
      Democracias costumam suscitar comportamentos demagógicos e populistas. Mas exageramos até no debate que deveria ter mais substância e clareza. Nem explicitamos interesses de classe (ou algo assim) ou a lógica econômica dos argumentos.
      Exemplo. Muita gente sensata diz que consumimos demais, investimos menos, com o que crescemos pouco. Isto quer dizer, desculpem, que devemos consumir menos e investir mais (mesmo que isso apenas não resolva nossos problemas).
      Como? Por exemplo, limitando gastos correntes do governo (afora investimento) e salários, uma intersecção que de imediato sugere restrição ao aumento do salário mínimo e de benefícios sociais, por algum tempo.
      Certo ou errado, é o que está na cabeça da maioria dos economistas públicos mais relevantes e é mesmo dito de modo disfarçado pela maioria dessa maioria.
      Dilma Rousseff chutaria o eleitorado se fizesse tal coisa. Mesmo que achasse correto fazê-lo, o tempo político é curto. A próxima eleição está sempre ali na esquina. Os danos seriam imediatos; eventuais benefícios viriam no governo seguinte.
      Mas o que governo, sindicatos ou movimentos sociais propõem para lidar com inflação (excesso de consumo), custos produtivos, poupança ínfima, investimento baixo? Aliás, calam-se também todos os muitos empresários beneficiados por subsídios e proteções do governo.
      Mais exemplo. Governos podem ser avaliados apenas por Pibinhos e Pibões? Não. Petistas e tucanos mentem sobre o passado e o presente. Quando a economia se arrastava sob Lula 1, tucanos faziam troça da inépcia petista. Quando crescemos a mais de 4%, passaram a dizer que o sucesso se devia à herança de FHC.
      Petistas chutam a "herança maldita" de FHC. Qual? Menos inflação, fim da esbórnia fiscal dos Estados, controle da baita crise bancária, empresas algo mais eficientes? Pode-se maldizer heranças fernandinas, claro, mas gente civilizada do governo petista não cospe nesse prato (mas não o dizem de público).
      Sim, governos podem causar danos imediatos. Mas muitas de suas melhores ações farão efeito mais tarde (como iniciativas de Dilma, como a maioria das decisões de FHC). Surtos de crescimento ou crise muita vez dependem de ações passadas, de efeitos externos ou de incógnitas. De resto, decisões de política econômica são, bidu, políticas; o debate não se resolve num seminário acadêmico. Mas fomos longe demais no partidarismo.

        Pastores vão à escola aprender liderança

        folha de são paulo

        Cursos dão aulas de gestão e comunicação; religiosos defendem criação de plano de carreira e benefícios sociais
        Evangélicos passam de 15,4% a 22,2% da população entre 2000 e 2010 e aquecem demanda por ministros
        CLARA ROMANCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAResponsáveis por liderar uma comunidade de 42,3 milhões de pessoas, segundo o IBGE, pastores evangélicos têm buscado melhorar sua formação com cursos de especialização para o cargo.
        As disciplinas alternam noções de teologia e entendimento da Bíblia com conceitos de administração e estratégias de liderança.
        Entre 2000 e 2010, os evangélicos aumentaram sua fatia na população de 15,4% para 22,2%, impulsionando também a demanda por pastores e, consequentemente, a criação de cursos e escolas para sua formação.
        Na Faculdade de Educação Teológica de São Paulo, o curso é on-line e tem duração de cerca de um ano, ao custo de R$ 999. O material didático consiste em 101 apostilas, com lições de antropologia, código civil e penal, administração eclesiástica, didática e ética, entre outras.
        Na aula de administração, por exemplo, são ensinados conceitos clássicos como o PODC (planejar, organizar, decidir, controlar), da obra "Administração", de James Stoner e Edward Freeman.
        "Na estrutura organizacional, um pastor tem a incumbência de um profissional na área de marketing e vendas", analisa Antonio Sauaia, professor da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade).
        Ao término das disciplinas, o pastor Lawton Ferreira, coordenador do curso, oferece consultorias nas igrejas para acompanhar a prática dos pastores. "Os pastores precisam melhorar a capacidade de liderança, de coordenar equipes", afirma Ferreira.
        Lawton também ensina técnicas para melhorar a comunicação com o público, como utilizar linguagem mais acessível durante os cultos.
        O pastor Emerson Acioli, 32, afirma que o curso o ajudou a desenvolver uma base teórica para construir seus discursos nas cerimônias.
        Nos primeiros cinco meses, teve dificuldade em compreender a linguagem dos textos, conta. Hoje, ele afirma receber uma remuneração mensal de R$ 1.500, além de ter a moradia garantida pela igreja onde ministra os cultos, mas não possui direitos trabalhistas e recolhe o INSS como autônomo.
        Lawton pretende lançar um novo módulo, com o nome de "Atividade Pastoral na Contemporaneidade". O objetivo desse novo curso é aumentar a expansão dos fiéis na igreja. Segundo Lawton, sua nova técnica, que consiste em convencer os fiéis de que possuem os mesmos "poderes" de um pastor, fará a igreja angariar cerca de 8.000 seguidores por ano.
        Métodos de administração para multiplicação de membros são também objeto de aulas na Faculdade Gospel, que mantém desde 1994, em um curso criado pelo pastor Omar Silva da Costa.
        Segundo a escola, são ensinadas práticas usadas pelas igrejas Mundial e Universal do Reino de Deus. O curso tem ainda disciplinas como "Estresse e Depressão" ou "Como Trabalhar com Homossexuais".
        Apesar da multiplicação dos cursos e da perspectiva de altos salários -o pastor Silas Malafaia, da Associação Vitória em Cristo, causou polêmica ao afirmar que os salários de seus pastores variam de R$ 4.000 a R$ 22 mil-, a carreira religiosa ainda enfrenta percalços.
        No fim do ano, o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício entre um pastor evangélico e a igreja Universal do Reino de Deus.
        O pastor Glauber Alencar, da Assembleia de Deus do Bom Retiro em São Paulo, central de cerca de 150 filiais na cidade, diz que a profissionalização do pastor, ou seja, seu reconhecimento como empregado, é uma discussão frequente dentro das igrejas.
        Alencar defende a criação de um plano de carreira para os pastores, além de benefícios sociais, como plano de saúde e previdência, de modo a inserir uma gestão mais próxima à de uma empresa.
        Segundo ele, a ideia encontra resistência em setores da comunidade evangélica, sobretudo em relação a remuneração por comissão, ou seja, proporcional ao número de seguidores angariados. A Assembleia de Deus, por exemplo, é contra essa ideia.

          FRASES
          "Na estrutura organizacional, um pastor tem a incumbência de um profissional de marketing e vendas"
          ANTONIO SAUAIA
          professor da FEA-USP
          "Os pastores precisam melhorar a capacidade de liderança, de coordenar equipes"
          LAWTON FERREIRA
          coordenador da Faculdade de Educação Teológica de São Paulo


          GESTÃO DA FÉ
          Mercado se expande
          42,3 milhões
          de pessoas são evangélicas no Brasil, segundo o IBGE
          de 15% a 22%
          cresceu a fatia de evangélicos, de 2000 a 2010
          R$ 999
          é o custo de um curso de pastor, on-line, de um ano
          8.000
          seguidores novos por ano é o que o curso promete propiciar aos alunos pastores