João Paulo
Estado de Minas: 01/02/2014
Mateus Solano, como Félix, abriu uma fresta na porta dos preconceitos em Amor à vida |
De uns tempos para cá, sem que se fizesse muito alarde, a violência se tornou a principal mercadoria no noticiário brasileiro. É claro que o tema é importante e nunca esteve distante da realidade brasileira, mas havia uma gradação em seu tratamento que ganhava tradução na forma como o jornalismo se acercava de seus conteúdos. Assim, havia jornal que bastava torcer para verter sangue e noticiários de TV que espetacularizavam a violência, extraindo dela uma emoção construída e uma análise social capenga, que quase sempre vitimava pobres, pretos e periféricos.
Hoje, crimes de toda monta tomam conta do cardápio dos noticiários. Não há mais separação por horário, veículo ou linha de programação: todos servem violência como prato principal. Os vespertinos especializados em crimes fazem apenas o aperitivo para o que vem algumas horas depois. Assaltos, assassinatos e acidentes são mostrados com detalhes minuciosos. Há mesmo uma categoria de reportagem que se tornou clássica: a exibição de uma violência flagrada por câmeras de segurança, que são repetidas à exaustão. Reality show de violência sem necessidade de narração: a morte do jornalismo.
As páginas policiais nos jornais voltaram a ganhar força, os telejornais de horário nobre assumiram a pauta como de interesse púbico, a internet se tornou veículo por excelência do show de horror que se desdobra a cada dia na vida do cidadão. Ao mesmo tempo em que o tema ocupa maior espaço, perde-se em análise e contexto. Na verdade, ao assistir aos jornais de maior prestígio na TV ou acompanhar a cobertura policial nos jornais, o que se percebe é um desmembramento, uma tendência a tornar cada crime um episódio de uma onda indistinta de violência.
Na economia da notícia, sempre que um assunto ganha espaço outro perde destaque. A escalada das notícias de crime (ou de “más notícias”, como costuma reagir o telespectador) tem servido para reorientar o jornalismo em direção aos faits divers, esvaziando a reflexão sobre a sociedade para fortalecer o julgamento moral que emerge da emoção. Todos sentem repulsa, revolta e medo. Ninguém se mobiliza. Jornalismo serve para melhorar o mundo, não para insuflar emoções pré-políticas.
Há uma curiosa contradição na televisão brasileira: as novelas são muito mais realistas que os programas jornalísticos. Nos anos da censura, era comum acompanhar no noticiário entrevistas com políticos sabidamente corruptos, tratados como autoridades, que depois eram objeto de sátira em folhetins que davam a eles a dimensão real de seu ridículo. O mesmo se observa hoje. Quem quiser entender o Brasil tem mais a ganhar com uma boa telenovela do que com um jornal nacional.
Os programas jornalísticos não exprimem a verdade, muito menos a objetividade. São pautados pela ideologia, vendem uma crítica interessada como sendo análise isenta no campo da economia (não são capazes de deixar claro ao telespectador e ao leitor que são ultraliberais e o que isso significa) e fazem campanha política com o álibi de que cumprem o sagrado dever de fiscalizar o poder. Em outras palavras, o telejornalismo não cobre o setor político, mas tem feito política, muitas vezes de forma escancarada.
Amor e dignidade Não deve ser por acaso que as novelas, hoje, sejam mais discutidas que as próprias notícias. E, o que é mais grave, ao agir assim o telespectador tem mais chance, mesmo mirando na fantasia, de acertar na realidade. É só avaliar o a produção Amor à vida, de Walcyr Carrasco, longe de ser um modelo de telenovela, que terminou ontem. Ela trouxe para a arena pública um debate sobre a questão do amor homoafetivo muito mais eficiente que qualquer outra abordagem operada pela TV até hoje.
Em vez de se aproximar do casal formado pelos atores Mateus Solano e Thiago Fragoso pelo aspecto da discriminação, que é o habitual no campo jornalístico, ou pelo viés preconceituoso do humor, o folhetim optou pelo tratamento realista, pelos conflitos humanos, pelos aspectos que unem e afastam todo tipo de casal. Mais que defender bandeiras, a novela se mostra eficiente pela forma aberta de narrar. Uma imagem vale por milhares de palavras, uma manifestação de afeto por vários discursos e mesmo beijos. Ao fugir da exceção para dar naturalidade ao amor entre pessoas dignas, o avanço é mais significativo.
Foi assim que as novelas, mesmo com suas limitações dramatúrgicas e técnicas, sem falar de vários limites éticos que foram sendo superados com o tempo, conseguiram trazer para a ágora questões como o racismo, o divórcio, a exploração do trabalho e a concentração da propriedade, entre outras. Ao deixar de lado grandes narrativas de fundo político, as novelas, de certa maneira, estabeleceram avanços pela trilha da moral. Foi uma saída brasileira, ancorada pela capacidade nacional de lidar bem como melodrama em seu imaginário. Somos bons de novela. Hoje, para ser sincero, muito melhor do que em futebol. Inclusive em audiência.
Não é fácil julgar a TV. Elogiar seus avanços em matéria de comportamento, sem matizar seus defeitos é perder o senso de proporção. Se há um nítido interesse em debater temas de interesse social – que repercutem na vida afetiva –, por outro há uma tendência a concentrar as transformações nas mãos do indivíduo, como se fosse sempre uma questão pessoal. O indivíduo é capaz de dar a volta por cima, mas muitas vezes como atitude que reflete apenas seu nível de excelência pessoal. Sair do herói para o cidadão tem sido o desafio das telenovelas. Pelo nível que se vê hoje em alguns debates, o resultado tem sido promissor (não é mais preciso matar casais homossexuais em explosões nem colocar os negros sempre como empregados domésticos).
Se há avanço no campo do comportamento, na política a televisão ainda patina. Há uma submissão das grandes questões ao julgamento moral, reduzindo a abrangência da análise a meras ações psicológicas. Na verdade, acaba-se por observar um horizonte duplo, que lança braços compreensivos para o lado da vida pessoal, ao mesmo tempo em que fecha qualquer perspectiva de pluralismo no campo da política. Por isso, ao contrário de países como a França, o Brasil aparece avançado em comportamento (aqui se fazem paradas gays, lá protestos contra casamento de homossexuais) e reticente em política. O Brasil coletiviza o individual; a França individualiza o coletivo.
Risco da reação A televisão brasileira, como arena do imaginário, vive hoje um dilema importante, que precisa ser debatido. Com a entrada em cena dos evangélicos, tanto em canais próprios como em horários comprados, o risco da regressividade é grande, sobretudo no que diz respeito às questões sexuais. Os pastores temem mais ao sexo que a Deus. Para complicar a situação, o crescimento desse contigente, com sua força de apelo no mercado, fez com que os temas ligados ao pentecostalismo fossem tratados com excessiva suavidade e falta de espírito crítico em matéria de direitos humanos.
A sociedade avança, mas está cercada de reacionários incapazes de lidar com a felicidade do outro. Os crimes contra gays são expressivos e a violência estúpida. Por isso não se pode relevar como opção de fé o comportamento que incentiva os homofóbicos: eles são execráveis e criminosos. Por razões de mercado, a mesma novela que levou aos lares brasileiros cenas dignas de afeto entre dois homens pintou os evangélicos como pessoas impolutas e marcadas pela aceitação integral do outro. É preciso realismo nessa hora. Os evangélicos têm se tornado ponta de lança da reação. Direitos humanos suplantam qualquer fé.
Nascemos para ser homens, não santos. O projeto de santidade só cria abismos e anátemas. Os únicos seres perfeitos são os perfeitos idiotas. Deus nos livre deles.