O homem que caminha em direção à ultima mesa do Nanquim, restaurante a quilo do Jardim Botânico, onde mora, é conhecido por não fazer qualquer tipo de concessão quando o assunto é música. Não espere o mesmo comportamento à mesa. Egberto Gismonti, apesar da quase magreza, é daqueles sujeitos que comem de tudo - com exceção de fígado e jiló - e que preferem a diversidade ao requinte, o que talvez explique a opção para o "À Mesa com o Valor" por um restaurante como este, onde é possível compartilhar no mesmo prato arroz integral, feijão preto e batata rosti com bacon. Nada mais natural para um filho de pai libanês com mãe italiana, criado à base do macarrão com quibe. "Era uma contradição danada lá em casa. Meu pai vindo de uma sociedade regida pelo patriarcado e minha mãe, pelo matriarcado. Quem prevalecia? Os dois."
O macarrão com quibe, como se vê, nada mais era do que a extensão culinária desse rico embate cultural, do qual o filho músico foi o maior beneficiário. Em Carmo, no interior do Rio, onde nasceu, Gismonti começou, estimulado pelo pai, a tocar piano - o instrumento apreciado pela aristocracia de Beirute - e antes que abraçasse o ofício, a mãe o lembrou que um homem que não sabia fazer serenata não era homem. Foi tocar violão. Atualmente, Gismonti domina os dois instrumentos como poucos músicos no mundo - ao lado da Orquestra Corações Futuristas, ele é uma das atrações de hoje, em São Paulo, do BMW Jazz Festival, evento que ocorre até segunda-feira também no Rio.
A pedido de Gismonti, o garçom apressa-se para desligar o ar-condicionado, posicionado acima da mesa. Apesar de protegido pelo indefectível gorro de crochê branco, o músico costuma dispensar o uso de refrigeração quando o inverno carioca permite. O gorro, que está para ele assim como a boina está para Milton Nascimento, foi uma invenção da "mamma" italiana. Ela fazia vários deles e decidia experimentá-los no filho caçula, Egberto. "Mamãe dizia que ficava lindo em mim. E acreditei. Quando percebi, já era tarde", diz. Milton já não usa a boina - Gismonti não pretende abandonar tão cedo a indumentária. Nem conseguiria. "Todo lugar onde vou tocar, ganho um gorro de presente. Agradeço e vou usando."
Mamãe dizia que [o gorro] ficava lindo em mim. Eu acreditei. Quando percebi, já era tarde (...) Todo lugar onde vou tocar, ganho um gorro de presente$
Apesar de ter rodado o mundo como músico, de ter morado em Paris, de ir pelo menos uma vez por ano ao Japão e ter 15 discos gravados por uma gravadora norueguesa (ECM), de ser reverenciado na Alemanha e nos Estados Unidos, Gismonti nunca deixou de ser um cidadão de Carmo, com a qual mantém um profundo vínculo afetivo. A demora para ir ao bufê, depois de meia hora de prosa, nada mais é do que uma herança trazida de sua cidade natal. "Lá não temos pressa pra nada. E somos todos prolixos, raciocinamos falando." Servido, enfim, de meio quilo de diversidade, Gismonti diz que a preferência por restaurantes com o perfil do Nanquim não se deve apenas pela heterogeneidade gastronômica, mas também pela praticidade.
Solução que o impediu de prolongar os dois anos e meio em que se afastou da música para criar os dois filhos, Alexandre e Bianca, logo após a separação da primeira de suas cinco mulheres - hoje, aos 65 anos, curte a solteirice. Sua mãe, aliás, estava certa quando insistiu para que deixasse um pouco o piano de lado e aprendesse a tocar o violão, instrumento dos seresteiros. Gismonti é um galanteador - interrompeu várias vezes a conversa para elogiar o "sorriso dadivoso" da fotógrafa do Valor. "Você tem uma beleza ao sorrir que poucas mulheres têm, sabia?", diz o violonista, corando a fotógrafa. "Ah, mas do que eu estava falando mesmo?" Dos filhos. "Sim. Quando digo que parei de fazer música para cuidar dos meninos não é força de expressão. Parei mesmo, pra valer", diz. E talvez ficasse ainda mais tempo se não descobrisse as facilidades da comida a peso - deixar de cozinhar para os rebentos economizou-lhe um bocado de tempo. "Isso aqui é uma beleza", diz, diante do prato, ainda intocado. Coisa de gente que raciocina falando.
Dois anos e meio na vida de um músico como Gismonti podia significar, mais ou menos, quatro discos gravados, umas duas trilhas para o cinema, outras duas para o balé, além da descoberta de uma meia dúzia de músicos talentosos. Na história da música instrumental brasileira há poucos artistas capazes de rivalizar com Gismonti quando o assunto é produção. Há casos de músicos, sobretudo os instrumentistas, que produzem compulsivamente, como ele, mas que não conseguem dar forma ao processo criativo. No caso de Gismonti, ainda mais impressionante do que sua capacidade produtiva - são 66 discos gravados em pouco mais de 40 anos de carreira (sem contar as dezenas de trilhas para cinema e teatro) - é o seu posicionamento como artista. Ele é um dos raros compositores brasileiros donos do seu próprio acervo - foi o primeiro a comprar os direitos de comercialização de todos os seus fonogramas -, além de ser dono do selo Carmo, que relançou boa parte de sua discografia e tem revelado novos músicos.
Ainda sem tocar na comida, Gismonti começa a contar como o violonista e pianista do interior do Rio transformou-se em um bem-sucedido compositor independente. Ele explica que é preciso separar o músico independente chamado assim por parte da crítica especializada porque não consegue gravadora - e, portando, depende dela - do independente de verdade, como ele, que não depende de ninguém para gravar. Entre os independentes genuínos, Frank Zappa (1940-1993) é sua grande referência, com quem dividiu parceria na trilha do filme "Parceiros da Noite" (1980), de William Friedkin, com Al Pacino no papel principal. Os dois dias de estúdio com Zappa bastaram para que o violonista brasileiro aprendesse a lição. "Ele tinha acabado de fundar sua própria gravadora [Zappa Records] e não queria mais depender de ninguém. Lembro-me dele brindando com outros amigos o seu Independence Day. Era aquilo que eu queria pra mim."
Tornar-se independente não era simplesmente rasgar contratos com as gravadoras e dali em diante festejar sua alforria. Era preciso, como Zappa, conhecer todos os meandros da indústria fonográfica e estudar a fundo direito autoral. Durante dois anos, teve aulas quinzenais com dois advogados especializados no tema até que se achou, enfim, pronto para negociar, em Londres, com um alto executivo da Odeon - gravadora de seus primeiros discos - a compra dos fonogramas originais. Ele dependia agora apenas de coragem para ser dono do próprio nariz. Coragem, claro, que ele tinha de sobra por ser sobrinho de quem era, o homem que desafiara o impossível: Edgar Gismonti (1927-1989). "Cara, você precisa saber quem foi tio Edgar. Sem ele, eu não seria nada", diz Gismonti, desistindo de levar à boca o primeiro garfo de arroz integral.
Tornar-se independente não era simplesmente rasgar contratos com as gravadoras e dali em diante festejar sua alforria. Era preciso, como Zappa, conhecer todos os meandros da indústria fonográfica e estudar a fundo direito autoral. Durante dois anos, teve aulas quinzenais com dois advogados especializados no tema até que se achou, enfim, pronto para negociar, em Londres, com um alto executivo da Odeon - gravadora de seus primeiros discos - a compra dos fonogramas originais. Ele dependia agora apenas de coragem para ser dono do próprio nariz. Coragem, claro, que ele tinha de sobra por ser sobrinho de quem era, o homem que desafiara o impossível: Edgar Gismonti (1927-1989). "Cara, você precisa saber quem foi tio Edgar. Sem ele, eu não seria nada", diz Gismonti, desistindo de levar à boca o primeiro garfo de arroz integral.
Estou vendo amigos falindo, perdendo tudo. Já não tive tanto problema, pois sou compositor convidado de várias orquestras
"É a pessoa mais competente que eu já conheci. Vou resumir ao máximo quem foi tio Edgar e por que ele foi tão importante para mim", diz o violonista. Descobrimos que o reverenciado tio, compositor e pianista, não foi apenas o maior músico da história de Carmo - ele, conta Gismonti, conseguiu a proeza de viver de música sem jamais arredar o pé da pequena cidade, que no começo do século passado não tinha mais do que 3 mil habitantes. "Ele tomou uma decisão corajosa, maluca, contra a vontade de todos os familiares: 'Vou viver de música e não vou sair do Carmo'. Você imagina o que significava isso naquela época?"
Gismonti conta que o tio foi bater de porta em porta, perguntando para o proprietário de cada casa qual era o dia de seu nascimento. Voltava sempre na data festiva, cantando uma valsa para o aniversariante e, assim, sustentou uma família inteira até o fim da vida. "Cresci com esse exemplo. O meu parâmetro, desde então, é o impossível. Tudo ficou mais fácil pra mim."
O purê de mandioquinha é tocado pela primeira vez. "Você acha que, se não fosse pelo tio Edgar, eu sairia pelo Brasil afora regendo uma orquestra de 22 jovens músicos, todos recém-profissionalizados? Nunca." Gismonti refere-se à Orquestra Corações Futuristas, que ele abraçou após a súbita morte, em 2008, de sua idealizadora, a educadora e musicista Tina Pereira, aos 50 anos.
"Eu já tinha criado os meus filhos, que são adultos hoje, e também vivem de música, e de uma hora para a outra me vi dirigindo um monte de garotos que não eram ainda profissionalizados. O que fiz? Fui tomar conta deles." Desde então, Gismonti dita o seu ritmo à molecada: juntos, violonista e orquestra, além de apresentarem dezenas de concertos pelo Brasil e Europa, já gravaram trilhas para três filmes ("Tempo de Paz" e "Chico Xavier", ambos dirigidos por Daniel Filho, e "O Senhor do Labirinto", de Geraldo Motta) e uma peça de teatro ("Folias Metafísicas", com direção de Fransérgio Araújo). "Culpa" de tio Edgar.
"Eu já tinha criado os meus filhos, que são adultos hoje, e também vivem de música, e de uma hora para a outra me vi dirigindo um monte de garotos que não eram ainda profissionalizados. O que fiz? Fui tomar conta deles." Desde então, Gismonti dita o seu ritmo à molecada: juntos, violonista e orquestra, além de apresentarem dezenas de concertos pelo Brasil e Europa, já gravaram trilhas para três filmes ("Tempo de Paz" e "Chico Xavier", ambos dirigidos por Daniel Filho, e "O Senhor do Labirinto", de Geraldo Motta) e uma peça de teatro ("Folias Metafísicas", com direção de Fransérgio Araújo). "Culpa" de tio Edgar.
O tio materno tornou-se tão onipresente que até hoje, mesmo duas décadas depois de sua morte, há quem encontre com Gismonti e mande lembranças ao irmão de sua mãe. O cantor João Gilberto, por exemplo, costuma ligar de madrugada e cantar um trecho do hino da cidade do Carmo, composto, evidentemente, por tio Edgar.
"Quando atendo ao telefone de madrugada, e começa aquela voz baixinha, inconfundível, cantando o hino da minha cidade ["Oh! Carmo, cidade bela/ Oh! Terra onde nascemos/ Todo filho teu, te ama de verdade/ Para toda a eternidade!], eu já sei: é o João." O gênio da bossa nova e Edgar Gismonti nunca foram apresentados - mas o histórico de coragem do músico de Carmo bastou para que ganhasse mais um admirador. O mesmo João trava na Justiça uma luta contra a gravadora EMI para reaver o controle sobre três grandes discos de sua carreira, entre eles a obra-prima "Chega de Saudade" (1958). Gismonti, dono do seu próprio acervo desde o começo da década 1980, conseguiu se proteger. "É difícil opinar nesse caso. Falando do ponto de vista romântico, de quem gosta e admira o João, é claro que quero que tenha todos os direitos sobre sua obra, mas é preciso ver o que ele assinou na época."
A conversa passa a girar em torno de João Gilberto. Faz tempo que ele não canta o hino da cidade de Carmo para Gismonti. "João sempre foi muito atencioso comigo", diz o violonista. Carinhoso à maneira João Gilberto. Gismonti conta que certa vez ficou hospedado em um flat em Nova York, longe da agitação de Manhattan e que, 15 minutos após sua chegada, recebeu uma encomenda: um saquinho de Café Pelé. Enquanto preparava-o, o telefone do quarto tocou.
Gismonti em ensaio para show no Teatro Opinião, no Rio, em 1972
Créditos: Antonio Nery/Agência O Globo
"Era o Naná [Vasconcelos]: 'Cara, estou aqui com o sujeito que lhe mandou o café. Ele quer falar com você'. O João já atendeu cantando o hino do Carmo", conta Gismonti. Durante o tempo em que ficou hospedado em Nova York, João Gilberto mandou presentes e ligou todas as madrugadas. "Quando encontrei o Naná, semanas depois, e perguntei onde João estava hospedado em Nova York, ele disse: 'No mesmo hotel que o seu. No andar de cima'."
Gismonti assobia o hino do Carmo e chega pela primeira vez ao peixe grelhado. No entanto, ele nem sempre encarou todos os desafios de peito aberto. Quando recebeu, em 1976, o convite para gravar um disco pela gravadora ECM Records, da Noruega, Gismonti pensou em desistir. As referências, conta, não eram as melhores: um frio de rachar e até uma história de sol ao meio-dia. "Fiquei apavorado." Antes de chegar em Oslo, a capital norueguesa, decidiu passar por Paris, "para tomar um vinho com amigos e criar coragem". Acabou, depois de esbarrar com o ator Zózimo Bubul, convidado para comer uma galinha cabidela na casa de um músico pernambucano, radicado na cidade. Era Naná Vasconcelos, que ele conhecia apenas de nome. "Na falta de assunto, perguntei pra ele: 'Quer gravar um disco comigo?".
Começava a nascer "Dança das Cabeças", um dos maiores discos de música instrumental brasileira, lançado em 1977, álbum que até hoje os donos de lojas não sabem em qual sessão colocar. Há quem jure que é um disco de música erudita, outros o classificam como jazz de alta qualidade - os mais preguiçosos, de "world music". Nem os prêmios que ganhou o ajudaram a situá-lo. "Dança das Cabeças" venceu o Deutsche Schallplatten Preis (uma espécie de Grammy alemão) como melhor disco de música instrumental - na Inglaterra, ganhou um prêmio de música pop e nos Estados Unidos, um prêmio de jazz. Um disco à imagem e semelhança de seu criador: inclassificável. Gismonti credita a feitura do disco à generosidade de Naná. "Quando terminaram as gravações em Oslo, ele se recusou a assinar a feitura do disco comigo. Disse: 'É seu. Estou apenas prestando serviço'."
Gismonti deu o troco. Três anos depois, também pela gravadora norueguesa, Naná gravou o disco "Saudades", concerto de berimbau com orquestra. "Escrevi todos os arranjos para orquestra pra ele. O meu nome não aparece em lugar nenhum." Hoje, depois de mais de 300 shows juntos, os dois são amigos e parceiros viscerais. "Naná é uma beleza, um homem muito sabido. Fiquei feliz em saber que ele está de volta ao Recife e bem de saúde."
Naná voltou ao Brasil, depois de um longo exílio, e hoje concentra as energias para recuperar blocos de maracatu na periferia do Recife, diferentemente de Gismonti, que, apesar de ter vendido o pequeno apartamento em Paris, onde morou muitos anos, continua rodando o mundo.
A crise internacional, que levou centenas de instrumentistas brasileiros a retornarem ao Brasil, onde continuam enfrentando as mesmas dificuldades de quando deixaram o país, não afetou Gismonti diretamente. "Estou vendo amigos falindo, perdendo tudo. Já não tive tanto problema, pois sou compositor convidado de várias orquestras pelo mundo, que são subsidiadas pelos governos locais. Tive sorte." Sorte ou competência? "Sorte. Nego me dá muito mais crédito do que mereço. E não é falsa modéstia, não. Eu tenho zero de modéstia."
Zero de modéstia e zero de entusiasmo com o futuro do Brasil. "Não vejo com muito otimismo essa 'nova fase do país'. Fui eleitor do PT por muitos anos, cansei de tocar piano na casa do Eduardo e da Marta Suplicy para arrecadar fundos para o partido. E do que adiantou?" O músico conta que foi patrulhado por caciques do PT quando, em 1999, aceitou convite de Francisco Weffort, ministro da Cultura do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) para compor uma sinfonia para os festejos dos 500 anos do Descobrimento do Brasil.
Egberto Gismonti conta que daria um péssimo político. "Em Carmo não tem essa história de inimigo virar amigo de uma hora para outra. Não aprendi a engolir todas as contradições." Como bom cidadão de Carmo, aliás, continua o músico "raciocinando falando" - o prato está pela metade e o restaurante praticamente às moscas. "Agora preciso comer. Faz uma pergunta longa aí, vai."