domingo, 27 de janeiro de 2013

Cão evoluiu do lobo comendo restos de comida, indica estudo


DA BBC BRASIL

Qualquer pessoa que tenha um cachorro sabe que o animal, sempre que tem a oportunidade, tende a circular pela cozinha em busca de comida.
Esse hábito pode ter origens ocultas, apontam cientistas.
Um novo estudo de genética canina, publicado na revista Nature, revela a existência de numerosos genes envolvidos no metabolismo de amido, em comparação com lobos. A descoberta dá sustentação à ideia de que alguns cachorros evoluíram de lobos que eram capazes de vasculhar e digerir comida encontrada no lixo dos primeiros fazendeiros.
Ninguém sabe exatamente quando ou como nossos ancestrais se tornaram tão intimamente ligados aos cachorros, mas indícios arqueológicos levam a crer que isso ocorreu milhares de anos atrás.
Uma possibilidade é de que o vira-lata moderno evoluiu dos lobos usados por povos caçadores-coletores para companhia ou proteção.
Mas há quem pense que a domesticação dos cães tenha começado com lobos que roubavam restos de comida humana e, no fim das contas, acabaram vivendo junto aos homens.
BBC
Cão evoluiu do lobo comendo restos de comida, indica estudo
Cão evoluiu do lobo comendo restos de comida, indica estudo
Lixões
"Essa segunda hipótese indica que, quando nós humanos nos assentamos, e junto com o desenvolvimento da agricultura, produzimos lixões ao redor de nossos assentamentos", explica Erik Axelsson, da Universidade de Uppsala (Suécia).
"(Como consequência) criou-se essa nova fonte de comida, esse novo nicho para os lobos, e o lobo mais capaz de fazer uso dele se tornou o ancestral do cão."
Sendo assim, diz ele à BBC News, "acho que nossas descobertas se encaixam bem nessa teoria de que o cão evoluiu no lixão".
Axelsson e seus colegas suecos e americanos examinaram o DNA de mais de 50 cães modernos de diversas raças - do cocker spaniel ao pastor alemão. Depois, eles compararam suas informações genéticas genéricas com as de 12 lobos ao redor do mundo.
A equipe então escaneou as sequências de DNA de dois tipos de caninos de regiões distintas (e de alta possibilidade de conter genes importantes na ascensão genética do cão domesticado).
O grupo de Axelsson identificou 36 dessas regiões, onde foram encontrados pouco mais de cem genes. A análise identificou a presença de duas categorias funcionais principais: genes envolvidos no desenvolvimento cerebral e no metabolismo de amido.
No caso do metabolismo, aparentemente os cães têm muitos genes que codificam as enzimas necessárias para digerir o amido, algo vantajoso para seus ancestrais que vasculhavam restos de trigo e de outras colheitas.
"Lobos também têm esses genes, mas não os usam tão eficientemente quanto os cães", diz Axelsson.
"Ao observar o genoma do lobo, vemos apenas uma cópia do gene (para a enzima amilase) em cada cromossomo. No genoma dos cães, vemos de duas a 15 cópias; em média, são sete cópias a mais que os lobos. Isso significa que o cão é mais eficiente em usar os nutrientes do amido."
Diferenças de comportamento
No que diz respeito aos genes de desenvolvimento cerebral, eles provavelmente refletem algumas das diferenças de comportamento entre cães e lobos.
O cão é muito mais dócil, provavelmente porque os primeiros humanos os escolhiam por serem mais fáceis de se lidar. "Experimentos prévios indicam que, quando você seleciona (animais) de agressividade reduzida, você fica um animal que retém características juvenis por mais tempo, às vezes até a vida adulta", explica Axelsson.
Mas o estudo da origem dos cachorros continua sendo, sob muitos ângulos, um campo enigmático.
Há fósseis que sugerem que algumas populações (de cães) poderiam ter dezenas de milhares de anos de existência, muito antes da criação da agricultura. Também existe a possibilidade de a domesticação dos animais ter ocorrido em diferentes ocasiões.
Carles Vilà, da Estação Biológica de Donana, em Sevilha, opina que o debate está em aberto.
"Acho que os cães modernos derivam de múltiplas populações de lobos", afirma.
"Pode ser que sua domesticação tenha começado quando alguns animais começaram a ficar com humanos e frequentemente reproduziam com lobos. Mas podem ter ocorrido domesticações totalmente independentes (umas das outras). O que está claro é que há raros ossos remanescentes (do período prévio a) 14 mil anos atrás."

Uma fome colossal

FOLHA DE SÃO PAULO

Como deve funcionar o 'bolsa família' indiano
PATRÍCIA CAMPOS MELLORESUMO Em implantação, o programa Transferência Direta de Benefícios deve atender 600 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema até o ano que vem. O governo indiano enfrenta o desafio imposto pelos números superlativos da miséria no país e pela falta quase total de dados sobre a real situação de seus pobres.
A ÍNDIA ACABA de lançar o maior programa de transferência de renda do mundo. O "bolsa família" indiano vai atender 600 milhões de pessoas até 2014, o equivalente a três Brasis e quase a metade da população da Índia. Mas o programa indiano Transferência Direta de Benefícios, inspirado no sucesso do Bolsa Família brasileiro, enfrenta desafios colossais.
O país gasta US$ 60 bilhões por ano em subsídios para os pobres -das lojas oficiais que vendem comida, gás, querosene e fertilizantes a pensões e bolsas de estudos para as castas mais baixas. Fraudes e corrupção corroem quase 30% desse valor antes que chegue às mãos dos beneficiários.
"A longo prazo, o programa será uma forma de reduzir os gastos com subsídios, o que ajudará a diminuir o deficit do orçamento", disse à Folha Palaniappan Chidambaram, o ministro da Fazenda da Índia, entrevistado em seu gabinete na semana passada, em Nova Déli. As agências de classificação de risco ameaçam rebaixar a nota do país se o deficit fiscal, em 6% do PIB, não for reduzido.
Antes o beneficiário precisava retirar pessoalmente o dinheiro (ou as mercadorias). Mas, num país 70% rural como é a Índia, 60% da população não têm conta bancária e uma parcela igual não têm banheiro. Milhões não têm nenhum documento -e a primeira meta é dar uma carteira de identidade a 600 milhões de indianos.
RG BIOMÉTRICO À frente dessa tarefa monumental está Nandan Nilekani, o fundador da gigante de tecnologia de informação indiana Infosys, que agora coordena a Agência de Identificação Única da Índia. Já foram emitidas identidades biométricas para 250 milhões de pessoas. Cada indiano recebe um número, atribuído a uma foto, impressões digitais e da íris, ao baixíssimo custo de US$ 2 cada. Até agora, muitos tinham apenas um título eleitoral, sujeito a fraudes e duplicação, ou um cartão de ração para comprar comida subsidiada.
Cada "número Aadhaar" -em hindi, base, fundação- é ligado a uma conta bancária simplificada, aberta sem a exigência de saldo mínimo, na qual os benefícios passam a ser depositados. Anteriormente, muitos indianos precisavam ir até um posto do governo para retirar dinheiro em espécie, abrindo ampla margem para corrupção. Entre outras fraudes, o funcionário encarregado da distribuição invariavelmente ficava com uma parte.
Folha acompanhou a implantação do programa em cinco vilarejos no interior do Estado do Rajastão, um dos Estados com menor taxa de alfabetização do país, 66%, e entre os mais pobres, onde mais de 26% estão abaixo da linha de pobreza indiana: consomem menos de 35 rupias por dia (R$ 1,20), ou R$ 36 por mês. No Brasil, são consideradas extremamente pobres famílias que ganham menos de R$ 70 mensais.
Em vilarejos como Kailashpuri, que tem cerca de 2.000 habitantes e onde a maioria trabalha como boia-fria ou cortando mármore, ainda não há agentes bancários para levar o dinheiro até os beneficiários das localidades onde não há bancos. Nesses lugares, muita gente não sabe do programa nem tem documentos de identificação.
"Antes eu pegava meu dinheiro aqui com o funcionário do correio. Agora vou precisar caminhar dez quilômetros até o banco", diz
Mitha Lal, 35, um adivasi -uma das populações tribais da Índia que contam com uma série de cotas e pensões. Mitha ganha o equivalente a R$ 3 por dia cortando mármore.
No vilarejo de Gowala, há 800 pessoas e apenas duas televisões. Bhuribai Logar mora em uma casa de barro, de um só cômodo. No chão de terra batida, dormem ela, o marido, os três filhos e a sogra. Bhuribai acorda às 3h e caminha dois quilômetros até um lugar afastado, onde faz suas necessidades no mato. Tem só quatro horas de energia por dia. O marido ganha 100 rupias por dia (R$ 4) carregando caminhões com areia.
Ela está na lista das pessoas abaixo da linha de pobreza, então pode comprar trigo na loja do governo por R$ 0,06 o quilo, para fazer o "roti" (espécie de pão) para a família. Mas nunca ouviu falar no novo programa do governo, não sabe quantos anos ela mesma tem, ainda não tem um cartão Aadhaar nem conta no banco. "Não sei o que é isso", diz.
COMISSÃO A maioria dos vilarejos não tem agências, e os correios ainda não funcionam como postos bancários. O governo optou por contratar agentes bancários, habitantes locais que, com um caixa eletrônico portátil, levarão o dinheiro até os beneficiários e ganharão uma comissão do banco pela transação. Mas a expansão da rede de agentes vai devagar: no distrito de Udaipur, por exemplo, são necessários pelo menos 2.000, mas até agora só há 220. Os bancos, que designam os agentes bancários, não têm interesse em acelerar o processo, pois não têm lucro com as contas simplificadas.
O objetivo do governo é transformar todos os programas de auxílio do governo -são cerca de 30- em transferências diretas para a conta dos beneficiários, sem atravessadores. Por enquanto, foram incluídos no "bolsa família" bolsas de estudos e pensões, além de benefícios na área de saúde -como o bônus de 1.400 rupias (ou R$ 52) dado para mulheres que dão à luz em hospitais, em vez de em casa.
Nos próximos dois meses, entrarão nas transferências o programa de emprego rural, que paga a famílias pobres cem dias de trabalho por ano, além de subsídio para o gás de cozinha. Mas o grande desafio será transformar os subsídios de alimentos, querosene e fertilizantes em transferências de dinheiro para a conta dos beneficiários. Em vez de subsidiar diretamente mercadorias, o governo pretende que os beneficiários do "bolsa família" comprem diretamente no mercado, estratégia que, segundo estudos, se mostrou mais acertada no Brasil.
"Mas essa etapa ainda deve demorar uns dois anos", disse o sorridente Jairam Ramesh, ministro do Desenvolvimento Rural, que recebeu a Folha em seu gabinete enquanto tentava encontrar a foto que tirou ao lado da presidente Dilma Rousseff em Copenhague. "É muito controverso. Vamos deixar que os Estados decidam se querem ou não transformar os programas de alimentos e querosene em transferência de recursos."
Outro desafio é superar o risco de crise no setor agrícola, altamente dependente do Estado. Se o sistema público de compra de grãos for ameaçado, pode comprometer o voto rural, o mais importante do país. "Nosso sistema de assistência social é decrépito e não funciona, isso todos nós sabemos", diz Ramesh. "Mas é difícil mudar a cultura, e há muitos interesses em jogo. Por isso, a transição para transferência direta de recursos terá de ser gradual."
De início, o programa não exigirá contrapartidas dos beneficiários. No Brasil, para receber os recursos é preciso ter frequência mínima na escola, manter a vacinação dos filhos em dia e fazer exames pré-natais, por exemplo. "Por enquanto, queremos dar identificação Aadhaar para todos os beneficiários e garantir que o dinheiro saia de um lugar e chegue ao destino certo", disse à Folha Nandan Nilekani, presidente da Agência de Identificação Única da Índia. "São ferramentas para diminuir corrupção, desvios."
Mas o programa não resolve um problema central: na Índia, não se sabe quem é realmente pobre, porque não ainda há um cadastro único como no Brasil. Esse levantamento, o censo socioeconômico e de castas, só vai ficar pronto em junho deste ano.
"PINGA" Por enquanto, muitas dos que estão incluídos na lista dos indivíduos BPL (Below Poverty Line, abaixo da linha de pobreza, em inglês) não são verdadeiramente pobres. "A lista BPL poderia se chamar 'Bogus Poverty List' (lista falsa de pobreza)", brinca Ramesh. Uma pesquisa mostrou que só 39% das famílias pobres estão na lista, enquanto 17% de pessoas que estão na lista são "ricas".
"O 'sarpanch' [prefeito] aqui do vilarejo, que mora ali naquela casa boa, inclui na BPL a si mesmo, à sogra dele, à mulher e aos irmãos", conta um morador de Kailashpuri. "O anterior, que era rico, também se incluiu na BPL e ganhou subsídio de US$ 600 para construir uma casa."
"O programa não aborda os problemas de origem da pobreza, como acesso e melhora da qualidade da saúde e educação", diz Anirudh Krishna, professor da Universidade Duke (EUA) que pesquisa a pobreza na Índia.
O belga naturalizado indiano Jean Drèze, economista de desenvolvimento e professor honorário da Universidade de Déli, é ainda mais crítico. "Tenho grande preocupação em um programa apressado de substituir subsídios em espécie por transferência de dinheiro, especialmente se for acabar com o sistema público de distribuição", diz. "Como no Brasil, isso teria de ser parte de um sistema mais amplo de seguridade social. Não é essa panaceia que o governo indiano diz ser."
Na Índia, como no Brasil no início do Bolsa Família, há o temor "paternalista" de que as famílias, ao receberem dinheiro em vez de alimentos, gastem em besteira, ou em "pinga". No programa brasileiro, que repassa o dinheiro para as mulheres da família, isso não ocorreu. Na Índia, país muito patriarcal, há o medo de que os maridos forcem as mulheres a lhes entregar o dinheiro.

    Santoshi: hoje intocável, amanhã (talvez) enfermeira
    Vagat Ram, 47, ganha a vida recolhendo carcaças de búfalos, vacas e cabras em pastagens e tira o couro para vender. Ganha o equivalente a R$ 12 por carcaça. Ninguém mais no vilarejo de Rama, no Rajastão, faz esse trabalho, considerado sujo.
    Por ser um dalit -uma casta de intocáveis-, Vagat não pode se sentar à mesa com pessoas de outras castas nem tocar comidas, copos, pratos ou talheres. Foi assim com seu tataravô, seu bisavô, seu avô e seu pai. E ele não pode morar no vilarejo, tendo de viver em um lugar afastado.
    "Se ele me trouxer um copo de água, não posso beber", diz um morador do vilarejo que é brâmane, a casta mais alta. "Nós, brâmanes, somos pessoas sagradas, tomamos banho todos os dias e não bebemos. Os dalits não tomam banho, bebem e comem carne."
    Os dois filhos de Vagat também passarão a vida recolhendo carcaças. Mas a filha dele, Santoshi, tem a chance de fazer algo diferente: está no último ano do ensino médio. Por ser dalit, Santoshi tem uma bolsa do governo e estuda em um boa escola pública na cidade de Udaipur.
    Mas, no ano passado, as 3.000 rupias (R$ 110) da bolsa anual não vieram. Vagat conversou com o diretor e com funcionário da escola, mas ninguém sabe dizer o que houve. Ele recebia o dinheiro diretamente deles.
    Vagat Ram fez seu cartão Aadhaar e abriu conta uma conta bancária no mês passado. "Espero que agora não dê mais problema", afirma ele. "Quero que minha filha vá para a faculdade estudar enfermagem."

      A Guerra Civil, lá e cá - Luiz Felipe de Alencastro

      FOLHA DE SÃO PAULO

      Lincoln, de Nabuco a Spielberg
      LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
      RESUMO A reeleição de Obama e os contrastes culturais entre o século 21 e o 19 realçam teor contemporâneo e político de "Lincoln". Para o público brasileiro, o longa de Spielberg suscita reflexões sobre o abolicionismo num tempo em que o Brasil era visto, pelos escravocratas sulistas, como um exemplo a ser seguido nas Américas.

      DESDE O INÍCIO das celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas emopinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.
      Para não se enredar em batalhas oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de "Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano passado para não interferir na campanha presidencial.
      Pouco importa: a projeção de Lincoln nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.
      Logo de saída, a primeira cena do filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".
      Com o filme em cartaz, o noticiário fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada. Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC, abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual -"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".

      GANCHOS Na realidade, o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865, ao cotidiano das famílias do seculo 21, o diretor bota na mão do garoto, como se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.
      Várias cenas mostram Tad mexendo nas fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários. Num plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do "Obamacare" -como é chamada a reforma do sistema de saúde que favorece os pobres e regula as empresas do setor- e de outras reformas sociais.
      A busca do entendimento entre os partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.
      Mas há outros pontos importantes no filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln" consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece óbvio, mas não é.
      Em 2010, o governador da Virgínia, Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão. Mais ainda, o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.
      Numa cena, o vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão "extingue" a economia do Sul -e completa: "Todas as nossas tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".
      Lincoln, que era advogado, acreditava na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia. Para ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade (caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos confederados.
      Em editorial de 5 de novembro de 1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário, aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois na cozinha da Casa Branca.
      Na verdade, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado como exemplo pelos escravocratas americanos.

      PROSPERIDADE Um dos mais eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67), escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa, é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de 1831 e ilegalmente escravizados desde então.
      Em 1854, o então ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus descendentes -que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente sequestrados por seus alegados proprietários- passavam a ser escravos até morrer.
      Em fevereiro de 1909, em Washington, onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da escravidão."
      Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão: "Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias sucessivamente decretadas".
      Nabuco reescreve a história do abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".
      O Lincoln de Steven Spielberg mostra o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana. Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas, vencida pelos escravocratas.
      O "grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente, de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.

        Café, cigarros e autoironia - Há um ano morria a poeta Szymborska

        FOLHA DE SÃO PAULO


        RESUMO Prêmio Nobel de Literatura em 1996, a polonesa Wislawa Szymborska morreu em fevereiro de 2012, aos 88 anos, ainda pouco conhecida no Brasil. A autoironia e o lirismo sem melodramas que marcam sua vida e obra estão presentes em volume de poemas póstumos, "Chega", lançado na Polônia em abril passado.

        REGINA PRZYBYCIEN
        Há um ano, em 1º de fevereiro de 2012, morria de câncer, em Cracóvia, a poeta Wislawa Szymborska (pronuncia-se vissuava xemborska), Prêmio Nobel de Literatura em 1996. A notícia correu o mundo na mídia e, na Polônia, suscitou manchetes e edições especiais.
        Conhecendo o gosto de seus conterrâneos pelas pompas e cerimônias religiosas, a poeta deixou em testamento instruções para que seu corpo fosse cremado, e as cinzas, depositadas no túmulo de seus pais, numa cerimônia simples e laica. Mesmo assim, no dia do funeral, o centro de Cracóvia parou, os sinos da igreja de Maria badalaram e uma multidão, que incluía o presidente e o primeiro-ministro, foi ao cemitério.
        A poeta decerto teria um comentário irônico sobre essa notoriedade, já que sempre evitou o excesso de exposição. Colocava-se como uma mulher comum que, por acaso, fazia versos. Certa vez, ao ver uma multidão que rumava para o lançamento de um de seus livros, comentou que só podiam estar se dirigindo a um jogo de futebol. Essa autodepreciação irônica aparece em "Recital da Autora", incluído em sua única coletânea publicada no Brasil, "Poemas" (Companhia das Letras): o público de uma leitura de poesia (uma dúzia de pessoas) é contrastado com a "multidão ululante" que assiste a uma luta de boxe.
        Seu último poema, "Mapa", foi entregue a seu secretário em novembro de 2011. Em janeiro de 2012 ela fez chegar a seu editor 13 poemas acabados, para o seu último livro, que ela pretendia intitular "Wystarczy" (Chega).
        Assim, de fato, chamou-se o livro póstumo, lançado em abril na Polônia. O editor, Ryszard Krynicki, diz que, após pensar que se tratava de uma piada, considerou que o título, provocativo, fazia sentido: era uma tirada espirituosa, "como o 'bon mot' de uma dama do século 18 que, perto do fim, não renuncia à forma e se permite o riso". Os poemas fazem perguntas metafísicas, mas sem "páthos", sem melodrama. O eu lírico é um observador distanciado da vida, da morte e da passagem do tempo.
        O riso e a auto-ironia caracterizaram sua personalidade e toda a sua produção. Tantos os poemas como as crônicas que escreveu, primeiro para a revista "Zycie Literackie", depois para o jornal "Gazeta Wyborcza", estão permeadas de humor, mesmo quando abordam temas graves.
        "Sempre que escrevo", disse em entrevista, "parece-me que há alguém atrás de mim fazendo caretas, por isso não me levo muito a sério e evito ao máximo as grandes palavras". Sua obra cobre seis décadas, mas é relativamente curta: algumas centenas de poemas. Questionada sobre por que publicou tão pouco, respondeu: "Porque tenho uma lata de lixo em casa".

        STALINISMO No início dos anos 1950, sob o Estado totalitário, de orientação stalinista, Szymborska se filiou ao Partido Comunista e publicou poemas acordes à ideologia vigente. Em 1966, deixou o partido e passou a apoiar a oposição, embora nunca mais tenha abraçado causas políticas. A vida cotidiana na Polônia comunista propiciou inspiração para a sátira de vários escritores.
        Também Szymborska ironiza o controle ideológico e a censura em poemas como "Uma Opinião Sobre a Pornografia": "Não há devassidão maior que o pensamento/Essa diabrura prolifera como erva daninha/num canteiro demarcado para margaridas".
        Seu humor também transparece em atitudes como posar para fotos de viagem ao lado de placas com nomes de lugares famosos ou estranhos, como Limerick, na Irlanda, Neandertal, na Alemanha, e Corleone, na Sicília. Ou confeccionar cartões com colagens insólitas, que enviava aos amigos, hobby que durou décadas.
        Colecionava objetos kitsch e ganhava-os aos montes, pois as pessoas sabiam dessa preferência. Quando a quantidade excedia o espaço que tinha, rifava-os entre os amigos presentes aos jantares que oferecia. Essas rifas ("loteryjki") se tornaram famosas no seu círculo. Szymborska casou-se em 1948 com o poeta Adam Wlodek (1922-86) e, embora tenham se divorciado seis anos depois, continuaram amigos até a morte dele.
        Em 1969 iniciou um relacionamento com o escritor Kornel Filipowicz (1913-90). Ao contrário dela, que era reservada, ele era um líder nato, que se engajou em diversas causas. Sua relação durou até a morte de Filipowicz, embora nunca tenham vivido juntos.
        "Que graça teria", comentava, "ele batendo à máquina num canto, eu no outro." Sua perda se expressaria no poema "Gato num Apartamento Vazio", em que a morte é abordada pela perspectiva de um gato, desnorteado com a ausência do dono -Filipowicz tinha uma gata chamada Mizia.

        BLOQUEIOS Como todos os escritores, em alguns períodos Szymborska enfrentou bloqueios de escrita. Um dos mais longos veio logo após o Nobel, quando o telefone não parava de tocar e choviam convites de diversas partes do mundo para recitais, entrevistas etc. Desesperada pela intrusão na sua privacidade, contratou um secretário para cuidar de assuntos burocráticos e mundanos, na esperança de encontrar paz para escrever. As solicitações duraram um bom tempo, e ela levou seis anos até reunir um número suficiente de poemas para o livro seguinte, "Chwila" (Instante), de 2002.
        Amada e admirada em todo o mundo, Szymborska, entretanto, não é uma unanimidade em seu país. Parte da direita católica da Polônia democrática não lhe perdoa os versos de juventude homenageando Lênin e Stálin. Mesmo o Nobel gerou protestos: diziam que Zbigniew Herbert (1924-98) era melhor poeta.
        Szymborska permaneceu alheia tanto às críticas quanto aos elogios. Sobre a adesão juvenil ao comunismo, nunca se justificou -só falou a esse respeito em 1991, por ocasião do recebimento do Prêmio Goethe na Alemanha, quando afirmou pertencer a uma geração que, naqueles anos do pós-Guerra, acreditara na utopia.
        Seu secretário, Michal Rusinek, a acompanhou até o fim e é o executor do seu testamento, no qual deixou instruções para a criação de uma fundação em seu nome, para cuidar do seu espólio e oferecer bolsas a escritores e tradutores. A Fundação Wislawa Szymborska foi inaugurada em abril de 2012.
        Agora ela volta a criar polêmica. Um dos prêmios para jovens escritores, por vontade expressa no testamento dela, deve levar o nome do ex-marido Adam Wlodek. O anúncio do nome do prêmio pela diretoria da fundação gerou uma enxurrada de protestos na imprensa e nas redes sociais porque Wlodek, no início dos anos 1950, supostamente teria denunciado um colega às forças de segurança.
        Discursando no enterro da poeta, Rusinek lembrou que, numa visão negativa da eternidade, ela se imaginava no inferno, dando autógrafos para uma fila de pessoas que nunca termina. Instado a dar uma visão positiva, Rusinek disse imaginá-la de olhos semicerrados ouvindo Ella Fitzgerald -sua cantora favorita, para quem escreveu o poema "Ella no Céu"-, tomando café e fumando.

          O verbete - Angelo Ishi [diário de tóquio]

          FOLHA DE SÃO PAULO


          DIÁRIO DE TÓQUIO
          o mapa da cultura
          O verbete
          "Shuukatsu", o neologismo do ano
          ANGELO ISHINo universo midiático e linguístico do Japão, não é a imagem que vale por mil palavras. Todos estão a procura da palavra mágica que possa valer por mil imagens. Um dos anúncios mais aguardados no final de cada ano é a lista das palavras mais populares, selecionadas por um júri de intelectuais.
          Quem promove a seleção é a editora Jiyu Kokumin, cujo anuário Gendai Yogo no Kiso Chishiki (conhecimentos básicos sobre o vocabulário contemporâneo) tem lugar cativo nas bibliotecas públicas e escolares. Seus verbetes servem como referência para os termos que deverão ser incluídos nos dicionários.
          O prêmio dos neologismos e termos mais populares do ano já está na 29ª edição. A palavra nova mais instigante é "shuukatsu", combinação dos kanjis "fim" e "agir", significando "preparar o seu próprio fim". Com o envelhecimento da população, aumentou o número de pessoas que fazem questão de preparar a sua morte para não causar transtornos aos seus familiares.
          O tema se tornou mais evidente depois de o ministro das Finanças, Taro Aso, dizer na segunda (21) que idosos como ele -um senhor de 72 anos- deveriam "se apressar e morrer" para desonerar o Estado.
          Os manuais do "shuukatsu" recomendam deixar pago o seu túmulo, combinar os detalhes do funeral, resolver pendências financeiras e preparar um testamento que não dê margem para brigas.
          O termo foi cunhado pelo semanário "Shukan Asahi", que publicou em 2009 uma série sobre o tema, mas se popularizou de vez no ano passado, quando o jornalista Tetsuo Kaneko morreu de câncer aos 41 anos. Ele preparou em dois meses o que a mídia chamou de o funeral perfeito, escolhendo até a flor que iria ao lado da sua foto no velório.

          PATRIOTISMO NA TV
          O Koohaku Utagassen, exibido anualmente pela NHK na véspera de Ano-Novo, é o programa mais antigo da TV japonesa. É um inofensivo festival musical competitivo entre homens e mulheres.
          Na edição de 2011, a emissora foi pega de surpresa quando manifestantes nacionalistas ocuparam a praça em frente à sua sede, protestando contra o excesso de artistas coreanos no programa: "A NHK foi vendida para os estrangeiros!". Desta vez, a rede cortou os artistas coreanos, mas exibiu um longo número musical com personagens da Disney. Ninguém protestou.

          CRISTÃOS ESCONDIDOS
          O Museu da Universidade de Kyoto exibe até 2 de março dois quadros raros pintados pelos "cristãos escondidos" do século 17, quando o cristianismo era proibido no Japão. Ambos revelam a devoção dos autores pela Virgem Maria e foram descobertos em residências particulares entre as décadas de 20 e 30. Veja os quadros no sitebit.ly/mukyoto.

          O IMPÉRIO DA CENSURA
          Ao contrário do que possam imaginar seus fãs no Ocidente, a morte do diretor Nagisa Oshima, em 15/1, não provocou comoção nacional. Nenhuma emissora dedicou a ele um bloco inteiro do noticiário, como foi feito quando morreu, em dezembro, o astro do teatro kabuki Nakamura Kanzaburo. Ainda hoje, os japoneses não conhecem o legítimo Oshima -a censura castrou o clássico "O Império dos Sentidos" (1976). Ninguém viu a versão sem cortes, exibida no exterior.
          Na memória de muitos, ele ficará marcado como o diretor de "Furyo - Em Nome da Honra" (1983). Para mim, seus filmes mais memoráveis são "Kôshikei" ("O enforcamento", 1968), no qual um descendente de coreanos condenado à morte por estupro não consegue morrer nas sucessivas tentativas de execução, e "Shonen" ("O menino", 1969), em que um casal joga o filho contra carros para simular um acidente e conseguir uma indenização.
          Cada qual ao seu modo, são eletrizantes dissertações sociológicas em forma de filme.

            A poesia de Paulo Freire [arquivo aberto] - Sérgio Haddad

            FOLHA DE SÃO PAULO


            memórias que viram histórias
            São Paulo, anos 70
            SÉRGIO HADDADAnos 1960, casa de André Franco Montoro: como aluno do ensino médio do colégio Santa Cruz, fui convidado para uma reunião sobre Paulo Freire coordenada pelo professor Flávio Di Giorgi. Falamos sobre educação libertadora, analfabetismo, diálogo como método pedagógico, relação horizontal entre professor e aluno e conscientização. Ainda não tinha a dimensão da importância daquelas ideias para a minha vida. Mesmo assim, senti um encantamento.
            Final dos anos 60, anos de chumbo: retorno ao mesmo colégio como professor e, mais tarde, como coordenador de um curso popular noturno para trabalhadores jovens e adultos. O curso se apresentou como uma oportunidade para vivenciar o que havia escutado anos atrás, agora em um cenário político de autoritarismo e ausência de diálogo.
            Com uma equipe de professores, pudemos comprovar a força do pensamento de Paulo Freire. Eram ideias simples: dialogar sobre os problemas do cotidiano a partir do conhecimento que cada um trazia; ir atrás das raízes destes problemas; construir alternativas para superá-los; e buscar soluções individuais e coletivas de curto prazo e as de longo prazo.
            Tudo isso chamávamos de conscientização, o que significava descolonizar o pensamento, enxergar a realidade com clareza, superar os problemas a partir da análise sobre suas causas, dialogar para buscar soluções e agir para mudar a realidade de acordo com os interesses do coletivo.
            Como resultado, nossos alunos contavam que haviam perdido o medo de falar para defender suas ideias, que aprenderam a argumentar com seus patrões, que não aceitavam mais piadas racistas ou de quem os diminuía por sua condição social, que não permitiam a violência dos seus namorados e maridos, que não precisavam mais bater nos seus filhos para educá-los e que começavam a se organizar de maneira coletiva.
            Aquele pequeno universo escolar de aprender e ensinar para atuar sobre o cotidiano conviveu com o grande universo da sociedade brasileira de aprender e ensinar para agir nos movimentos contra a carestia, pela anistia daqueles que foram obrigados a partir por pensar diferente dos que estavam no poder, nas grandes manifestações por eleições diretas.
            Anos depois, voltei a me encontrar com Paulo Freire, agora como colegas professores na PUC-SP. Comentando a importância de descolonizar o pensamento, contou-me histórias que se passaram com ele, mestre do pensar crítico.
            Paulo morou em Genebra durante seu exílio político. Procurava ser o mais genuíno nordestino nos seus hábitos para resistir ao modo de vida daquela cidade de primeiro mundo. Mesmo assim, nos primeiros dias, impressionado com a limpeza da cidade, comentou, rindo, que se pegou com medo de sujar o corrimão de uma das pontes, de tanto que ele brilhava.
            Mas o mais incrível, continuou, foi que durante os anos em que trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas, saía sempre no mesmo horário, tomava o ônibus que passava no ponto em frente da entrada do edifício religiosamente na mesma hora, descia quatro paradas à frente, tomava outro ônibus dois minutos depois e, finalmente, chegava em casa, sempre no mesmo horário. Um dia o primeiro ônibus se atrasou, ele perdeu o segundo e chegou 10 minutos atrasado em casa.
            "O pior, Sérgio, é que eu fiquei indignado! Foi aí que eu pensei que já estava na hora de voltar ao Brasil".
            Hoje, como educadores e educadoras, andamos enredados com ideias sobre ranqueamento de escolas e alunos, avaliações de todos os tipos, nacionalização de modelos internacionais, padronização dos conteúdos, sistemas apostilados, tecnologias pedagógicas, ensino à distância, tablets, multimídias, lousas eletrônicas etc. Que falta nos faz a poesia de Paulo Freire que nos ensinou a sonhar que é possível aprender com a própria vida!

              Mapa e outros três poemas - Wislawa Szymborska

              FOLHA DE SÃO PAULO


              IMAGINAÇÃO
              prosa, poesia e tradução
              Mapa e outros três poemas
              WISLAWA SZYMBORSKA
              TRADUÇÃO REGINA PRZYBYCIEN

              Mapa
              Plano como a mesa
              na qual está colocado.
              Debaixo dele nada se move
              nem busca vazão.
              Sobre ele -meu hálito humano
              não cria vórtices de ar
              e deixa toda a sua superfície
              em silêncio.
              Suas planícies, vales, são sempre verdes,
              os planaltos, montanhas, amarelos e marrons
              e os mares, oceanos, de um azul delicado
              nas margens fendidas.
              Tudo aqui é pequeno, próximo, acessível.
              Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
              acariciar os polos sem luvas grossas.
              Com um olhar posso
              abarcar cada deserto
              junto com o rio logo ali ao lado.
              Selvas são assinaladas com arvorezinhas
              entre as quais seria difícil se perder.
              No Ocidente e Oriente
              acima e abaixo do equador -
              assentou-se um manso silêncio.
              Pontinhos pretos significam
              que ali vivem pessoas.
              Valas comuns e súbitas ruínas
              não cabem nesse quadro.
              As fronteiras dos países mal são visíveis
              como se hesitassem entre ser e não ser.
              Gosto dos mapas porque mentem.
              Porque não dão acesso à dura verdade.
              Porque, generosos e bem-humorados,
              estendem-me na mesa um mundo
              que não é deste mundo.

              Tem aqueles que
              Tem aqueles que cumprem a vida com mais eficácia.
              Põem ordem em si mesmos e a seu redor.
              Têm resposta certa e jeito para tudo.
              Logo adivinham quem a quem, quem com quem,
              com que objetivo, por onde.
              Batem o carimbo nas verdades únicas,
              atiram ao triturador fatos desnecessários,
              e a pessoas desconhecidas
              de antemão destinam fichários.
              Pensam só o quanto vale a pena,
              nem um instante mais,
              pois depois desse instante espreita a dúvida.
              E quando recebem dispensa da existência,
              deixam o posto
              pela porta indicada.
              Às vezes os invejo
              - por sorte isso passa.

              Coação
              Comemos a vida de outros para viver.
              A falecida costeleta com o finado repolho.
              O cardápio é um necrológio.
              Mesmo as melhores pessoas
              precisam morder, digerir algo morto,
              para que seus corações sensíveis
              não parem de bater.
              Mesmo os poetas mais líricos.
              Mesmo os ascetas mais severos
              mastigam e engolem algo
              que, afinal, ia crescendo.
              Custa-me conciliar isso com os bons deuses.
              Talvez crédulos,
              talvez ingênuos,
              deram à natureza todo o poder sobre o mundo.
              E é ela, louca, que nos impõe a fome,
              e ali onde há fome
              finda a inocência.
              À fome se juntam logo os sentidos:
              o paladar, o olfato, o tato e a visão,
              pois não é indiferente quais iguarias
              e em quais pratos.
              Até a audição participa
              no que sucede, pois à mesa
              não raro há conversas alegres.

              Para o meu poema
              Na melhor das hipóteses,
              meu poema, você será lido atentamente,
              comentado e lembrado.
              Em uma hipótese pior,
              apenas lido.
              Terceira possibilidade -
              escrito, de fato,
              mas logo jogado no lixo.
              Você pode se valer ainda de uma quarta saída -
              desaparecer não escrito
              murmurando satisfeito algo para si mesmo.

                Desgarrados do guarda-sol - DIANA LICHTENSTEIN CORSO

                Zero Hora - 27/01/2013

                Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do carrinho, no que devo concordar que ele tem razão.

                Outro tipo comum de meninos perdidos são os desgarrados do guarda-sol. Os pequenos por vezes aproveitam que a vigilância familiar relaxa para explorar o mundo sem bússola nem mapa. Quando percebem a ausência dos seus adultos, apesar de que foram eles mesmos que se afastaram, sentem-se abandonados e abrem o berreiro. Neste veraneio, até inventaram umas pulseirinhas eletrônicas, que permitem a localização da família quando a sirene do mini aventureiro começa a tocar.


                Paradoxalmente, é mais fácil ser curioso e correr o risco de perder-se quando nos sentimos cuidados. Geralmente acontece com pequenos que desenvolveram a "capacidade de estar só". Ela pressupõe o seguinte: uma criança vive em conexão direta com uma figura materna, fonte máxima de segurança, apesar de que ninguém pode estar presente o tempo todo. A duras penas ela acaba descobrindo que a mãe não some, nem ele, e que é bom que isso aconteça. Mas também há formas menos dramáticas de aprender, que é distrair-se, tornar-se capaz de ficar só. Acontece quando o bebê fica absorto em seus assuntos, cantarolando e brincando, esquecido de chamar a atenção da mãe ou de controlar seus movimentos. Eis uma pequena pessoa crescida, que tem em si mesma uma boa companhia. O fugitivo das areias é alguém que sai consigo mesmo a passear. Carrega dentro de si, por um tempo, seus adultos.


                Os pais, nem que seja por momentos, também se permitem desligar na presença do pequeno. Distraem-se porque precisam tirar um pouco do pensamento essa obsessão de fraldas. Mas há os pesadelos, como os bebês que morrem esquecidos em carros, afogados ou são sequestrados. São ameaças que dificultam esse jogo benéfico de mútua desatenção, já que um vacilo pode ser fatal. Somos todos ousados sobreviventes dessas incursões perigosas nos momentos de desatenção que em algum momento vivemos. Não foi necessário o resgate mágico, mas alguma fada madrinha olhou por nós. Tristemente, isso não ocorreu com os pais e filhos que a fatalidade castigou. É bom lembrar que eles não são monstros. Pais e filhos precisam desligar-se mutuamente, nestes casos extremos algo falhou.


                Até hoje me emociono nas praias em que há o hábito de colocar a criança perdida nos ombros e sair batendo palmas, com o coro dos banhistas, até encontrar a família da criança apavorada. A cena me leva às lágrimas, porque sinto que fora do guarda-sol familiar, há um mundo de gente disposta a zelar por nós. Quando dá certo, é bom perder-se do território conhecido para descobrir que há incursões seguras por terras estranhas. Faz parte da aventura interminável de crescer e, com sorte, baterão palmas por nós quando o medo chegar.

                O humor do poeta - LUIS FERNANDO VERISSIMO

                O GLOBO - 27/01/2013


                “O fantasma é um exibicionista póstumo.”

                “Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.”

                “Os verdadeiros crimes passionais são os sonetos de amor.”

                “A coisa mais solitária que existe é um solo de flauta.”

                “A verdadeira couve-flor é a hortênsia.”

                “A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta.”

                “A vista de um veleiro em alto-mar remoça a gente no mínimo uns cento e cinquenta anos.”

                “Atenção! O luar está filmando.”

                “A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe.”

                “Os clássicos escreviam tão bem porque não tinham os clássicos para atrapalhar.”

                “Le Penseur do Rodin... Coitado. Nunca se viu ninguém fazendo tanta força para pensar.”

                “A natureza é barroca, o sonho é barroco... O que teriam vindo fazer neste mundo as colunas gregas?”

                “O mais triste da arquitetura moderna é a resistência dos seus materiais.”

                “O crítico é um camarada que contorna uma tapeçaria e vai olhá-la pelo lado avesso.”

                “A expressão mais idiota que existe é ‘adeusinho’.”

                “Não sou mais que um poeta lírico,/ Nada sei do vasto mundo.../ Viva o amor que eu te dedico,/ Viva Dom Pedro Segundo!”

                As frases e os pensamentos acima não são nem do Millôr Fernandes nem do Ivan Lessa, são de outro humorista brasileiro que também já morreu: Mario Quintana. Estão no livro Do Caderno H, que a Alfaguara está publicando junto com toda a obra poética do Quintana, uma compilação do que ele escreveu, durante anos, na sua seção do Correio do Povo de Porto Alegre. Quem já gostava do Quintana poeta vai gostar de descobrir que ele era um dos melhores humoristas do seu tempo.

                EU TAMBÉM

                A Alice é um encanto, mas não posso deixar que o Zuenir Ventura monopolize o gênero crônica-vovô. Também tenho histórias para contar da Lucinda. No outro dia o pai e a mãe dela brigavam com ela (alguma ela tinha feito) e ela respondia à altura – e terminou, dramaticamente, perguntando aos céus:

                – Onde estão meus verdadeiros pais?! 

                Matéria-prima de biografias - MARTHA MEDEIROS

                ZERO HORA - 27/01/2013


                Uma amiga possui um casamento duradouro, filhos ótimos, uma penca de parentes ao redor, um trabalho satisfatório, o melhor dos mundos. Reconhece que tem uma vida bacana, mas volta e meia diz, brincando: Se eu escrevesse minha biografia, não daria mais do que três páginas. Ela sente falta de imprevistos, novidades, abalos. Se duvidar, sente falta até de sofrimentos.

                Analisando sob esse prisma, a recém lançada biografia de Diane Keaton não deverá se tornar um best seller, já que não há fartura de romances clandestinos, envolvimento com drogas, traumas e psicopatias. Ao contrário: o que prevalece é sua declaração de amor à família. É isso que torna o livro tão especial, humano e diferente de outras histórias de celebridades.

                Diane Keaton certamente não é uma mulher como as outras. Namorou Woody Allen, Warren Beatty e Al Pacino e ganhou um Oscar por sua atuação em Annie Hall. Essas experiências seriam suficientes para deixar qualquer leitor salivando diante da oportunidade de ouvir os detalhes a respeito. Ela até comenta sobre isso tudo, e sobre o início da carreira, seus ídolos, seu jeito peculiar de se vestir, mas são pinceladas sem profundidade, que ficam em terceiro plano diante do que realmente importa e comove no livro: sua relação com a mãe.

                Diane transforma a desconhecida Dorothy Keaton Hall em coautora de sua biografia. Publica trechos dos seus diários, narra os anos em que esta enfrentou o mal de Alzheimer, as particularidades do casamento dela com seu pai e como foi a criação dos quatro filhos do casal – Diane e seus três irmãos. Talvez o leitor se pergunte: mas o que me interessa essa tal de Dorothy?

                Sem Dorothy, não haveria o que veio depois.

                Claro que é um privilégio ter acesso aos bilhetes escritos por Woody Allen e aos bastidores da filmagem de O Poderoso Chefão, pra citar outro filme da extensa carreira da atriz, mas não é um livro de fofocas, e sim o retrato de uma vida que, apesar do entorno glamouroso, nunca deixou de ser prosaica. Não exalta os tapetes vermelhos, os namorados famosos ou ter o nome piscando na fachada de um cinema, e sim os laços afetivos. É de uma singeleza inesperada.

                Diane Keaton, apostando no que lhe é íntimo, inverteu o que se espera de uma biografia. Através de um relato nada modorrento, e sim ágil, divertido e tocante, colocou sob os holofotes aquilo que passou de comum a incomum: a valorização da nossa formação dentro de casa, a influência do afeto na construção de um futuro, a beleza dos pequenos episódios que acontecem diante dos olhos da família, nossa primeira plateia.

                Numa época em que todos andam viciados em existir publicamente, transformando suas vidinhas triviais num reality show, uma estrela de Hollywood vem recolocar as coisas em seus devidos lugares: o superficial pra lá, o essencial pra cá.

                Claro que uma hipotética biografia daquela minha amiga do início do texto nunca atrairia a atenção de ninguém, ao contrário da de Diane Keaton, mas o que ela teria para contar – e o que todos teriam para contar, se o mundo estivesse a fim de ouvir - é que ter uma vida interessante depende apenas do olhar amoroso que lançamos sobre nossa própria história. 

                A guerra dos drones O que sabemos (e o que não) sobre os aviões assassinos dos EUA

                FOLHA DE SÃO PAULO

                O que sabemos (e o que não) sobre os aviões assassinos dos EUA
                CORA CURRIERTRADUÇÃO CLARA ALLAINRESUMO Os drones, veículos aéreos não tripulados, se firmaram como a arma favorita da política de contrainsurgência da primeiro mandato de Obama. A falta de clareza quanto à forma de definição de alvos, a legalidade das ações e o número de mortos transformou-os em alvo privilegiado das críticas ao democrata.
                Você talvez já tenha ouvido falar da "kill list", lista de alvos a serem mortos. Com certeza já ouviu falar em "drones" (literalmente, "zangões"), ou, em português, Vants, veículos aéreos não tripulados. Mas os detalhes da campanha dos EUA contra militantes no Paquistão, no Iêmen e na Somália -um elemento central na política de segurança nacional do governo Obama- continuam envoltos em segredo. Aqui dizemos o que sabemos -e o que não sabemos- sobre o assunto.

                ONDE ACONTECE A GUERRA DOS DRONES? QUEM A TRAVA?
                Os drones vêm sendo a ferramenta preferida do governo Obama para abater militantes fora do Iraque e do Afeganistão. Não são a única arma empregada: relatam-se também ataques aéreos convencionais e outros. Mas, segundo uma estimativa, 95% dos assassinatos seletivos desde o 11 de Setembro foram realizados por drones. Entre as vantagens que os drones representam, está não colocar em risco a vida de militares americanos.
                O primeiro ataque de drones contra a Al Qaeda de que se tem registro ocorreu no Iêmen, em 2002. Em 2008, no mandato de George W. Bush, a CIA intensificou os ataques secretos com drones no Paquistão. Na gestão de Barack Obama, eles aumentaram dramaticamente no Paquistão e, em 2011, no Iêmen.
                A CIA não é a única a atacar com drones. As Forças Armadas americanas admitem ter levado a cabo "ações diretas" no Iêmen e na Somália. Nesses países, as incursões seriam realizadas pelo JSOC [sigla em inglês para Comando Conjunto de Operações Especiais], unidade secreta de elite. Desde o 11 de Setembro, o JSOC cresceu mais de dez vezes e passou a coletar informações e a desempenhar papéis no combate. A operação que matou Osama bin Laden, por exemplo, foi responsabilidade do JSOC.
                A guerra dos drones é travada à distância, a partir dos EUA e de uma rede de bases secretas mundo afora. O "Washington Post" -que examinou contratos de construção e foi até o local sem ser convidado- conseguiu vislumbrar a base localizada no Djibuti, pequeno país africano a partir da qual são lançadas muitas das incursões no Iêmen e na Somália. No início deste ano a revista "Wired" reconstituiu, a partir de trechos esparsos, um relato da guerra contra o grupo militante Al Shabaab, na Somália, e da presença militar que os EUA expandiram na África.
                Os ataques no Paquistão diminuí-ram nos últimos anos, passando do pico de mais de cem em 2010 para estimados 46 em 2012. Enquanto isso, os ataques no Iêmen aumentaram: foram mais de 40 no ano passado. Houve sete incursões no Paquistão nos primeiros dez dias de 2013.

                COMO OS ALVOS SÃO ESCOLHIDOS?
                Uma série de artigos baseados principalmente em declarações anônimas de funcionários do governo americano permitiu formar um quadro parcial de como os EUA escolhem os alvos e lançam os ataques. Dois relatos recentes -de pesquisadores da Columbia Law School e do Council on Foreign Relations- deram uma minuciosa visão geral do que é sabido sobre o processo.
                Segundo esses relatos, a CIA e as Forças Armadas mantêm, há muito tempo, listas de alvos, que em parte se sobrepõem. De acordo com notícias publicadas no primeiro semestre do ano passado, a lista das Forças Armadas foi redigida em reuniões entre agências comandadas pelo Pentágono, e a Casa Branca aprovou os alvos propostos. O presidente Obama teria autorizado missões especialmente delicadas.
                Neste ano o processo teria mudado, com a Casa Branca concentrando tanto a análise dos indivíduos alvejados e os critérios de definição de alvos. Segundo o jornal "Washington Post", as revisões agora são feitas em reuniões regulares entre as agências, no Centro Nacional de Contraterrorismo. As recomendações são enviadas a um comitê de membros do Conselho Nacional de Segurança.
                As revisões finais passam pelo assessor para contraterrorismo da Casa Branca, John Brennan, para então chegar ao presidente. Vários perfis destacaram o papel poderoso e controverso exercido por Brennan na definição da trajetória do programa de assassinatos seletivos. No começo do mês, Obama nomeou Brennan diretor da CIA.
                Ao menos parte dos ataques da CIA prescinde do sinal verde da Casa Branca. Consta que o diretor da CIA pode autorizar ataques no Paquistão. Em entrevista de 2011, John Rizzo, ex-advogado-chefe da CIA, afirmou que advogados da agência faziam análises detalhadas de cada alvo.

                OS EUA ÀS VEZES MIRAM PESSOAS CUJOS NOMES NÃO CONHECEM?
                Sim. Embora representantes do governo volta e meia tenham descrito as incursões com drones como dirigidas a "líderes de alto nível da Al Qaeda que estejam planejando ataques" contra os EUA, muitas delas visam supostos militantes cuja identidade os EUA não conhecem. Os chamados "signature strikes" [ataques a supostos militantes, identificados como alvos pelo seu padrão de comportamento], começaram sob Bush, no início de 2008, e foram ampliados por Obama. Não se sabe ao certo quantos dos ataques são "signature strikes".
                Em vários momentos o recurso a esse tipo de ataque pela CIA, em especial no Paquistão, gerou tensões com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Um funcionário contou ao jornal "The New York Times" uma piada: para a CIA, três sujeitos fazendo polichinelo já bastam para indicar a presença de um campo de treinamento de terroristas.
                No Iêmen e na Somália, discute-se se os militantes na mira americana estão de fato conspirando contra os EUA ou se estariam lutando contra seus próprios países. Micah Zenko, membro do Council on Foreign Relations e autor de críticas ao programa de drones, disse ao "ProPublica" que, basicamente, os EUA estão operando "uma força aérea de contrainsurgência" para países aliados (leia mais sobre drones e Zenko na pág. 6). Alguns ataques se basearam em informações locais que, mais tarde, se mostrariam erradas. O "Los Angeles Times" examinou recentemente o caso de um iemenita morto por um drone dos EUA e da teia complexa de submissão e política que cercou sua morte.

                QUANTAS PESSOAS JÁ FORAM MORTAS NOS ATAQUES?
                Não se sabe o número preciso. Mas,segundo algumas estimativas, o total ronda os 3.000 mortos.
                Diversos grupos rastreiam os ataques com drones e estimam o número de baixas: O "Long War Journal" cobre o Paquistão e o Iêmen. A New America Foundation cobre o Paquistão. O London Bureau of Investigative Journalism cobre o Iêmen, Somália e Paquistão, além de estatísticas sobre ataques com drones lançados no Afeganistão.

                QUANTOS SÃO OS MORTOS CIVIS ATÉ AGORA?
                É impossível saber.
                Os números divergem consideravelmente, para mais e para menos, quanto às baixas civis. A New America Foundation, por exemplo, estima que entre 261 e 305 civis tenham sido mortos no Paquistão; para o Bureau of Investigative Journalism, foram entre 475 e 891. Todas as contagens superam em muito os números divulgados pelo governo (detalhamos diferenças até mesmo nessas estimativas baixas). Algumas análises indicam que as mortes de civis teriam diminuído proporcionalmente nos últimos anos.
                Em grande medida, essas estimativas se fundam na interpretação do noticiário produzido com base em depoimentos de funcionários americanos anônimos ou em relatos da mídia local, de credibilidade variável. Um exemplo: o "Washington Post" publicou, no fim de dezembro, um texto afirmando que o governo iemenita procura ocultar o papel dos EUA em ataques aéreos que resultam em mortes de civis.
                A controvérsia se intensificou pelo fato de que os EUA supostamente consideram militante qualquer indivíduo do sexo masculino e em idade militar morto num ataque por drones. Como disse um funcionário do governo ao "ProPublica": "Se um grupo de homens em idade militar está numa casa onde sabemos que estão sendo fabricados explosivos ou onde esteja sendo tramado um ataque, presume-se que todos estejam fazendo parte desse esforço". Não se sabe ao certo se, após o fato, há investigações em curso.
                A Columbia Law School fez uma análise aprofundada do que sabemos sobre os esforços dos EUA para mitigar e calcular baixas civis. O estudo concluiu que a natureza sigilosa da guerra dos drones prejudica os mecanismos usualmente empregados em ações militares tradicionais para determinar responsáveis. Outro relatório, produzido pela Universidade Stanford e pela Universidade de Nova York, documentou "ansiedade e trauma psicológico" entre habitantes de aldeias paquistanesas.
                Em outubro, a ONU anunciou que investigaria o impacto civil das ações com drones, com especial atenção aos ataques em dois tempos -nos quais uma segunda investida abate pessoas que estejam no local resgatando vítimas da primeira.

                POR QUE SIMPLESMENTE MATAR? POR QUE NÃO CAPTURAR?
                Em discursos, autoridades norte-americanas disseram que os militantes se tornam alvos quando representam uma ameaça iminente aos EUA e sua captura não é viável. Mas o assassinato parece ser bem mais frequente do que a captura, e os relatos sobre ataques não definem o que seria "iminente" nem "viável". Casos de capturas secretas no exterior, sob a Presidência de Obama, lançam luz sobre os dilemas políticos e diplomáticos em jogo nas decisões sobre como e quando é possível capturar um suspeito.
                O "Washington Post" descreveu, em outubro, algo chamado "disposition matrix" -processo que determina planos de contingência para decidir, conforme onde eles estiverem, que destino dar aos terroristas. Com base em exemplos conhecidos, a revista "Atlantic" traçou como ocorreria essa tomada de decisão, no caso de um cidadão americano suspeito. Mas é claro que os detalhes sobre a matriz de descarte não são conhecidos, da mesma forma como não o são os das "kill lists" -que ela em tese substituiria.

                QUAL É LÓGICA LEGAL QUE EXPLICA TUDO ISSO?
                Em diversos pronunciamentos, funcionários do governo Obama apresentaram, em linhas gerais, as justificativas legais para os ataques, mas em nenhuma ocasião foram comentados casos específicos. Na verdade, não existe um reconhecimento oficial, por parte das autoridades, de uma guerra dos drones.
                A Casa Branca argumenta que a lei de Autorização de Uso de Força Militar (AUMF), de 2001, bem como a legislação internacional sobre o direito dos países à autodefesa, fornecem base legal consistente para realizar ataques seletivos contra indivíduos vinculados à Al Qaeda ou a "forças associadas a ela", mesmo fora do Afeganistão. Isso pode incluir cidadãos americanos.
                "O devido processo legal", disse, num discurso em março passado o secretário de Justiça, Eric Holder, "leva em conta as realidades do combate." A forma assumida por esse "devido processo legal" ainda não está clara. E, como relatamos, o governo volta e meia se fecha em copas quanto a questões específicas -como a morte de civis ou as razões pelas quais determinados indivíduos são mortos.
                No começo do mês, um juiz federal determinou que o governo não tem a obrigação de divulgar um memorando legal secreto que argumenta em favor do assassinato de Anwar al Awlaki, um cidadão americano, num ataque de drone. O juiz também decidiu que o governo não é obrigado a atender a outros pedidos de informação sobre os assassinatos seletivos, de modo geral.
                (Ao tomar a decisão, o juiz reconheceu o paradoxo, dizendo que o governo alega "serem perfeitamente legais certas ações que, à primeira vista, possam parecer incompatíveis com nossa Constituição e nossas leis, ao mesmo que se reserva o sigilo quanto às razões que levaram a tais conclusões".)
                Os EUA também vêm tentando fazer com que se julgue improcedente uma ação movida por parentes de Awlaki por sua morte e a de seu filho de 16 anos, cidadão americano como ele.

                QUANDO A GUERRA DOS DRONES VAI ACABAR?
                Há quem diga que o governo já teria discutido a possibilidade de reduzir a guerra dos drones. Outros, porém, afirmam que o programa de assassinatos seletivos vem sendo formalizado para que sua duração seja estendida. Os EUA estimam que a Al Qaeda na Península Arábica tenha "alguns milhares" de membros. Mas autoridades já declararam também que os EUA "não podem capturar ou matar cada terrorista que alega ter vínculos com a Al Qaeda".
                Em dezembro, Jeh Johnson, que acaba de deixar o cargo de advogado-geral do Pentágono, fez um discurso intitulado "Como Terminará o Conflito Contra a Al Qaeda e Suas Organizações Afiliadas?". Ele não deu uma data.
                John Brennan teria declarado que a CIA deveria voltar a se concentrar na coleta de informação. Mas seu papel crucial no comando da guerra dos drones na Casa Branca suscitou a dúvida sobre quanto ele de fato limitará o envolvimento da agência como chefe da CIA.

                E AS REAÇÕES NEGATIVAS NO EXTERIOR?
                Ao que parece, elas são abundantes. Nos países submetidos a ataques com drones, a guerra é profundamente malvista e suscita protestos frequentes. Apesar disso, Brennan afirmou, em agosto, que os EUA veem "pouca evidência de que as ações estejam gerando indisposição contra os EUA ou engajamento antiamericano em grande escala".
                Recentemente, porém, o general Stanley McChrystal, que comandou as Forças Armadas no Afeganistão, contradisse essa visão: "O ressentimento gerado pelo uso americano de ataques com aviões não tripulados [...] é muito maior do que percebe o americano médio. Os americanos são visceralmente odiados, mesmo por pessoas que nunca viram um americano ou sofreram com as ações de um americano." O "New York Times" relatou recentemente que militantes paquistaneses vêm promovendo uma campanha de represálias brutais contra locais, acusando-os de espionar para os EUA.
                No que diz respeito aos governos internacionais, a maioria dos principais aliados dos EUA se mantém em silêncio. Em relatório de 2010, a ONU demonstrou preocupação quanto ao precedente de uma guerra oculta e sem fronteiras. O presidente do Iêmen, Abdu Hadi, apoia a campanha dos EUA, enquanto o Paquistão se mantém sobre uma incômoda combinação de protestos públicos e aparente concordância.

                  QUEM SEGUIR
                  Para reportagens e comentários no Twitter sobre a guerra com drones:
                  @drones reúne editoriais, artigos de opinião e notícias sobre drones. É administrado por membros da Electronic Frontier Foundation, que cobre segurança nacional e manifesta diretamente preocupações com privacidade no uso de drones dentro dos EUA.
                  @natlsecuritycnn traz últimas notícias.
                  @Dangerroom, da "Wired", cobre segurança nacional e tecnologia, incluindo muitas informações sobre drones.
                  @lawfareblog cobre as dimensões legais dos drones.
                  @gregorydjohnsen é especialista no Iêmen e acompanha de perto a guerra nesse país.
                  @AfPakChannel, da New America Foundation e "Foreign Policy", tuíta notícias e comentários sobre Afeganistão e Paquistão.

                    VOCABULÁRIO DA GUERRA DOS DRONES
                    AUMF: Autorização de Uso de Força Militar, uma lei aprovada pelo Congresso dias após os ataques de 11 de setembro de 2001, autorizando o presidente a usar de "toda a força necessária e apropriada" contra qualquer pessoa envolvida nos ataques ou que desse abrigo aos envolvidos. Baseados na AUMF, tanto Bush quanto Obama reivindicaram autoridade ampla para deter e matar suspeitos de terrorismo.
                    AQAP: A Al Qaeda na Península Arábica é a filial iemenita da Al Qaeda ligada à tentativa de explosão de um avião comercial no dia de Natal de 2009.
                    No último ano os EUA intensificaram os ataques à AQAP, alvejando líderes e também militantes não especificados.
                    "Disposition Matrix": Um sistema para rastrear alvos terroristas e avaliar quando -e onde- eles podem ser mortos ou capturados. O "Washington Post" divulgou no semestre passado que a matriz é uma tentativa de codificar para o longo prazo as "kill lists", ou listas de alvos da administração.
                    Glomar: Uma resposta que rejeita um pedido de informação sobre um programa classificado, alegando simplesmente que a existência da tal informação não pode ser confirmada nem desmentida. O nome remonta a 1968, quando a CIA disse a jornalistas que não poderia "nem confirmar nem negar" a existência de um navio chamado Glomar Explorer. Aos pedidos de informações sobre seu programa de drones, a CIA vem dando respostas glomar.
                    JSOC: O Comando Conjunto de Operações Especiais é um setor de elite e sigiloso das Forças Armadas. Unidades do JSOC realizaram o ataque a Bin Laden, operam os programas de drones das Forças Armadas no Iêmen e na Somália e também realizam coleta de informação.
                    Ataque a personalidade: Um ataque seletivo contra um indivíduo específico identificado como líder terrorista.
                    "Signature Strike": Um ataque contra alguém que se acredita ser militante, mas cuja identidade não é necessariamente conhecida. Esses ataques seriam baseados numa análise de "padrão de vida" -ou seja, informações sobre seu comportamento que sugerem que o indivíduo seja militante. Essa política, que teria sido iniciada por Bush no Paquistão em 2008, hoje é permitida no Iêmen.
                    TADS: Ataque de Interrupção de Ataques Terroristas, termo usado ocasionalmente para descrever alguns ataques em que a identidade do alvo é desconhecida. Funcionários do governo disseram que os critérios que definem esses ataques são diferentes dos critérios que determinam os "signature strikes", mas não está claro de que modo.


                      SETE CONTOS SOBRE DRONES PUBLICADOS PELO ESCRITOR TEJU COLE NO TWITTER (@TEJUCOLE)
                      1. Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores. Uma pena. Um "signature strike" arrasou a floricultura.
                      2. Trate-me por Ishmael. Eu era um jovem em idade militar. Fui imolado no meu casamento. Meus pais estão inconsoláveis.
                      3. Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma. A bomba silvou. Sangue nas paredes. Fogo do céu.
                      4. Sou um homem invisível. Não se sabe meu nome. Meus amores são um mistério. Mas um Vant veio de um local secreto em minha direção.
                      5. 'Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã, sem ter feito mal algum, ele foi morto por um drone Predator
                      6. Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Seu torso foi encontrado; sua cabeça, não.
                      7. Hoje, mamãe morreu. O programa salva vidas de americanos.

                        Drones: controvertidos franco-atiradores
                        LUCIANA COELHOEnquanto Barack Obama se preparava para subir ao palco do Centro de Convenções de Washington e celebrar, dançando, sua segunda posse, apenas um pequeno grupo de manifestantes enfrentava a baixa temperatura e a polícia para protestar.
                        O alvo único? Aquilo que se tornou a marca -ou mácula- registrada do primeiro governo do democrata e prêmio Nobel da Paz em 2009: os drones.
                        A palavra em inglês, roubada da zoologia (significa "zangões"), define aeronaves robóticas, não tripuladas, que conduzem tanto operações de vigilância como de ataque, e se tornou o código para uma controversa política de assassinatos seletivos que Obama ampliou em lugares como o Paquistão, a Somália e o Iêmen.
                        Números a esse respeito são estimativas com base em registros da imprensa. Mas um surto de mortes ocasionadas por ataques de drones em 2010 -quando elas somaram 818 só no Paquistão segundo a independente New America Foundation- causou reveses de opinião pública e vozes dissidentes no governo e na academia.
                        De 20 países analisados pelo Centro Pew de pesquisas em 2012, só nos Estados Unidos uma maioria apoiava seu uso. E um em cada três americanos se opunha a ele.
                        CAMPANHA Críticas e pedidos por transparência ganharam eco nos últimos meses, com a campanha que reelegeu Obama -um presidente que diz ter acabado com a tortura em suas fileiras e prometera, sem sucesso, fechar a prisão de Guantánamo para suspeitos de terrorismo, heranças do governo George W. Bush com as quais os drones competem em impopularidade.
                        "Há exagero do governo [americano] em dizer a toda hora que os drones são a melhor coisa que existe", reclamou em teleconferência nesta semana o almirante Dennis Blair, que de janeiro de 2009 a maio de 2010 foi Diretor Nacional de Inteligência.
                        "Isso é uma visão de curto prazo para algo que será um problema de longo prazo", afirmou.
                        Blair, como outros críticos militares e civis, não vê erro no uso de drones, que descreve como "evolução dos franco-atiradores usados por Estados contra inimigos de peso em situações de guerra".
                        Tampouco teme que ele se reverta a favor dos inimigos -a tecnologia dos robôs armados ainda é privilégio dos Estados Unidos e só agora começa a ser desenvolvida por Israel; além disso, para que ela tenha serventia é preciso contar com uma ampla rede de inteligência da qual outros governos e atores não estatais carecem.
                        O problema, ressalta o militar, é que falta ao governo transparência para explicitar sua política e a inexistência de balizas ao conduzi-la.
                        Micah Zenko, um especialista em segurança do influente centro de estudos Council on Foreign Relations, concorda e lista as consequências do silêncio público.
                        Autor de um estudo abrangente e sóbrio sobre o tema apresentado nesta semana, ele aponta para uma corrosão do "soft power" americano e para a alienação da opinião pública doméstica -ambos, a seu ver, fundamentais para amparar as operações.
                        "Nas áreas tribais do Paquistão e nas zonas rurais do Iêmen, os drones são a cara da política externa dos Estados Unidos. E, porque nós não articulamos nem descrevemos nossa política, permitimos que outros o façam", ponderou Zenko em entrevista à imprensa. "É um erro estratégico de comunicação."
                        Seu relatório, "Reformando as Políticas de Ataque com Drones dos Estados Unidos", traz recomendações à Casa Branca, ao Congresso dos Estados Unidos e às instituições internacionais, quase todas voltadas à melhor divulgação de informações, no primeiro caso, e à supervisão e à revisão das ações militares americanas, nos demais.
                        Uma de suas propostas é a criação de uma associação internacional de fabricantes de drones, que poderia coletar informações e produzir dados hoje inexistentes.
                        CIVIS Por ora, o pesquisador usa uma média de estimativas de ONGs para contabilizar em 3.430 os assassinatos por drones nos últimos 12 anos. Ao menos 401 deles, calcula, são de civis. Mas muito poucos, frisa, são de líderes terroristas de alto escalão.
                        "O governo Obama afirma, por questões legais, que todos os indivíduos visados são líderes sêniores da Al Qaeda e que representam uma ameaça significativa e iminente à segurança dos Estados Unidos", afirma. "Na verdade, não são essas pessoas que os Estados Unidos visam, e isso traz à tona a questão dos 'signature strikes'."
                        Os "signature strikes" de que Micah Zenko fala são ações que visam militantes não identificados com base em seu perfil, seus padrões de comportamento e redes de contatos -uma aplicação, com pena capital, da máxima "diga-me com quem andas que te direi quem és".
                        "Os Estados Unidos deveriam explicar melhor sua política e rever esse aspecto, limitando os assassinatos a líderes de organizações terroristas internacionais e indivíduos com envolvimento passado ou corrente em tramas contras os Estados Unidos e seus aliados", argumenta Zenko.
                        No último domingo, o jornal "Washington Post", citando fontes no governo e militares, revelou que uma cartilha de contraterrorismo que vem sendo preparada pelo governo Obama com objetivo de fixar regras claras sobre potenciais alvos de operações de assassinato seletivo nada diz sobre drones.

                          Ilha do Caribe pode baixar filme grátis para retaliar os EUA

                          FOLHA DE SÃO PAULO

                          País ganhou o direito a sanções na OMC e abre porta para que outros adotem medida similar
                          DA REUTERSCom direito a impor sanções comerciais aos EUA, a ilha caribenha de Antígua e Barbuda estuda a criação de um site em que a população vai poder baixar grátis filmes americanos, sem o pagamento de direitos autorais.
                          O anúncio será feito amanhã na OMC, onde o país da América Central ganhou uma disputa com os EUA envolvendo a proibição americana de apostas pela internet.
                          Em troca, os antiguanos ganharam o direito de impor sanções que equivalem a US$ 21 milhões contra os Estados Unidos, inclusive contra propriedade intelectual norte-americana.
                          Por isso, a autorização para baixar filmes americanos sem pagar é uma das hipóteses que estão sendo estudadas pelo país.
                          "Os donos de direitos intelectuais nos EUA estão lutando contra a pirataria no mundo. Eles odeiam o roubo dessas propriedades e gastam montantes enormes para impedi-lo", disse Mark Mendel, advogado que representa Antígua e Barbuda no caso.
                          Ele não disse qual será o caminho adotado nas sanções, mas considera o site para fazer download de filmes e softwares é uma hipótese.
                          Segundo Mendel, o valor de US$ 21 milhões não é uma barreira para o efeito que as sanções podem provocar.
                          "Os US$ 21 milhões podem ser obtidos de uma vez só ou em 50 milhões de vezes. O montante não é importante."
                          O advogado reconheceu que uma das possibilidades é a criação de um site estatal no qual seria cobrado US$ 0,01 por cada download.
                          Ele disse ainda que o governo dos EUA deveria estar preocupado com essa hipótese, já que poderia abrir a porta para outros países seguirem esse caminho.
                          "As consequências podem ser enormes. Com Antígua, são US$ 21 milhões, mas talvez com a China sejam US$ 21 bilhões", afirmou.
                          A OMC concedeu há cinco anos o direito de Antígua retaliar os EUA e anunciou no mês passado que desistiu de esperar por uma proposta americana de acordo.
                          Um porta-voz do governo americano afirmou que "os EUA estão em constantes discussões com Antígua para encontrar uma solução satisfatória para os dois lados".

                            AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Escolher a morte


                            Estado de Minas: 27/01/2013 
                            Estes são os fatos recentes:

                            1 – Walmor Chagas se matou em seu sítio em Guaratinguetá. Os jornais ficaram meio constrangidos, sem saber o que dizer ou como aprofundar o assunto. Era um belo ator, amado pelo público, e de repente desistiu de seu corpo.

                            2 – Um ministro japonês declarou que deveríamos ajudar os mais velhos a morrer, porque eles causam muitas despesas ao governo. Além do mais, não têm mais nada o que fazer na vida.

                            3 – Há esse filme, L’amour, com Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, tratando da decrepitude de um casal depois dos 80 anos (a solidão, o amor e a morte), que está ganhando todos os prêmios; as pessoas que assistem a ele saem atônitas entre a vida e a morte.

                            A esses fatos recentes poderia somar algo que se passou com Rubem Braga, cujo centenário de nascimento foi fartamente retratado em reportagens e crônicas em todos os jornais. No entanto, esqueceram-se de dizer que Rubem Braga decidiu como ia morrer. Tendo incurável câncer na garganta, não querendo se submeter às humilhacões do tratamento que pouco prometia, ele reuniu uns amigos em sua casa, bebeu uísque com eles, no dia seguinte comprou umas frutas de que gostava na feira, pegou um táxi, foi para o hospital, internou-se e ali um médico amigo o ajudou a morrer. Como diria um humorista, no dia seguinte, quando acordou, estava morto.

                            Aliás, na crônica “Berço do mata-borrão”, que está no livro As boas coisas da vida, ele fala dessa preparação para a morte, da ida à Santa Casa, da busca de um crematório. Vejam: o título fala das boas coisas da vida. E a morte faz parte da vida. Deveria deixar de ser uma coisa ruim para ser uma coisa normal, que se deve organizar.

                            Poderia também dizer que todos os dias abro o jornal e me surpreendo com amigos morrendo. Andam morrendo demais ultimamente. Evidentemente, não é “ultimamente”. É que “depois de uma certa idade”, como disse uma amiga, que, aliás, já morreu, “depois de certa idade, isso acontece”.

                            E nossos amigos e parentes estão perdendo a memória. Alguns estão usando cadeira de rodas. Numa praça perto de minha casa, vejo-os sentadinhos, velhinhos, tomando sol, uma empregada ao lado. Outro dia, um amigo americano narrou que vendeu tudo e foi para magnífica clínica de repouso – tipicamente americana – esperar a morte com sua mulher. A mulher morreu antes. Ele me mandou uma linda carta, nada fúnebre, sobre como jogou as cinzas onde ela queria.

                            Claro que há pessoas excepcionais. Uma pessoa querida, de 96 anos, me disse que fez conferência na Arcadia Mineira sobre a evolução dos estilos musicais desde a Idade Média. Manolo Grana, genro do Drummond, com 96 anos, está terminando a tradução do meu A grande fala do índio guarani. A querida professora Angela Leão fez 90 anos publicando seus trabalhos sobre as Cantigas de Santa Maria, escritas por Afonso X, O Sábio.

                            No entanto, estou falando de nós outros, pobres mortais. E volta e meia me lembro de um filme dos anos 1970 que marcou muita gente: Soylent green. Profeticamente, projetavam um mundo futuro (acho que é este em que vivemos) onde haveria uma série de problemas e era dado aos indivíduos escolher o dia e a hora em que morreriam. A cena era maravilhosa: o sujeito entrava numa ampla sala, ficava deitado enquanto projetavam nas amplas telas cenas idílicas da natureza, ao som da Sinfonia Pastoral, de Beethoven. Era uma morte divina, harmoniosa, natural.

                            Outro dia, no Fantástico, vi que um cientista japonês (terra daquele mesmo ministro que está sugerindo o fim dos velhinhos) descobriu uma água-viva que nunca morre. Vai ficando velha e, de repente, o organismo dá a contraordem e ela renasce de si mesma. Estão pensando em pegar células dessa criatura e injetar na gente.

                            Estou fora.

                            Tem gente que acha que deve ficar decrépita, dando trabalho aos outros, porque Deus mandou. Cada um com sua crença ou descrença.

                            Sou a favor da morte programada, escolhida com antecedência. Estou pensando até em publicar uma antologia de poemas chamada Aprendizes da morte.

                             É isto aí: Oh! Morte! Os que vão viver/ morrer te saúdam!


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                            Você, amanhã -Ana Clara Brant ‏

                            Interesse despertado por filmes como Amor e E se vivêssemos todos juntos? mostra que a temática da velhice é cada vez mais atual e atrai público de todas as idades ao cinema 

                            Ana Clara Brant
                            Estado de Minas: 27/01/2013 
                            “Parece que nos descobriram”, constata a aposentada Alda Braga, de 72 anos, depois da sessão do filme Amor, um dos candidatos ao Oscar, que retrata os desafios de um casal octogenário para lidar com a idade, a família e o relacionamento a dois. O longa-metragem do diretor austríaco Michael Haneke, que arrebatou prêmios como o Globo de Ouro e a Palma de Ouro em Cannes, é apenas uma das produções recentes que focam a terceira idade. 
                            E se vivêssemos todos juntos?, de Stéphane Robelin, que conta a história de seis amigos na faixa etária dos 70 que decidem montar uma espécie de república, é outro que está em cartaz e vem conquistando as plateias. “Acho que é uma tendência do cinema mundial. No Brasil isso ainda está engatinhando e começamos a ter vários curtas com essa temática. Os cineastas orientais já exploram o assunto há algum tempo. O mundo está envelhecendo e acho maravilhoso o cinema dedicar seus enredos às pessoas mais velhas. É um sintoma das sociedades modernas”, acredita o professor de cinema e crítico Ataídes Braga.

                            As sessões lotadas dos dois filmes e a repercussão que estão provocando demonstram como as pessoas começam a se interessar pelo assunto. “Todo mundo passou ou vai passar por isso. Um dia chega a hora. Acho que o mundo acordou, percebeu que está envelhecendo, e por isso o tema é bem atual e deve ser levado para a telona”, frisa Alda. Cinéfila assumida, Selma de Carvalho Azevedo Alcici, de 84 anos, assistiu tanto a Amor quanto a E se vivêssemos todos juntos? e acha extremamente válido que as produções abordem a terceira idade. “Apesar de não ter gostado de Amor,  nem tê-lo entendido, até porque imaginava outra coisa, considero muito importante falar sobre isso. E tanto é que tem atraído gente de todas as gerações. Mas há filmes e filmes, e preferi E se vivêssemos todos juntos?”, opina.

                            A verdade nua e crua e a fragilidade do ser humano presentes na obra de Michael Haneke têm despertado os comentários mais diversos. Há quem ame e quem odeie, mas não se pode negar que o longa, que teve cinco indicações da Academia, reflete a realidade de muitos idosos. “Ele revela o amor sem véus, um sofrimento que é real. Como é a vida de quem passa a lidar com aquilo, suas angústias, mas ao mesmo tempo tem muita sensibilidade. Porém, isso não significa que é a realidade de todas as pessoas mais velhas. Vários idosos conseguem envelhecer de uma maneira satisfatória e digna. Não é algo homogêneo, eu mesmo tenho pacientes com 90, 95 anos, que moram sozinhos, vão ao teatro, fazem cursos e não ficam esperando a morte chegar”, lembra o psicogeriatra e professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, Rodrigo Nicolato.

                            Interpretação Já Ataídes Braga considera Amor um dos filmes mais densos dos últimos tempos, o que nos leva obrigatoriamente a uma reflexão sobre várias coisas importantes. O crítico ressalta também a atuação dos protagonistas, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, esta a atriz mais velha a concorrer a um Oscar, com 86 anos. “Enquanto E se vivêssemos todos juntos? é mais festivo, mais atual, e tem essa coisa do coletivo, o Amor não faz concessões e é mais frio e cerebral. Para mim, ele é o grande filme do ano. Um dos pontos altos dessas produções é ter no elenco atores mais velhos e de um talento fora de série. Pena que não valorizamos esse pessoal tão bom de serviço. O próprio Walmor Chagas, que morreu recentemente, reclamava muito disso. Ele estava muito insatisfeito e deprimido por não ser mais chamado para atuar”, lamenta Ataídes. O crítico está finalizando dois trabalhos com foco no tema: o documentário Resíduos da memória, que traz cineastas na faixa dos 70 e 80 anos; e o roteiro de um filme sobre amigos idosos que não se veem há anos.

                            Com mais de cinco décadas de carreira e prestes a completar 82 anos, a atriz mineira Wilma Henriques acha importante que produções do teatro, cinema e televisão abordem a questão do idoso. No entanto, acredita que deve haver uma política efetiva com relação aos mais velhos. “Eu, particularmente, não posso me queixar porque nunca faltou trabalho e não diminuíram os convites. Mas é natural que à medida que o ator vá envelhecendo a visibilidade diminua. Isso é normal porque a vida é assim. Começo, meio e fim”, diz. 

                            Mesmo quem ainda não ingressou na chamada terceira idade faz questão de conhecer os filmes, como é o caso da cantora Lígia Jacques, de 52 anos. Para ela, o grande mérito das produções é que, independentemente da cultura ou do país, o assunto é universal e, gostando ou não, o público se identifica. “Amor é ao mesmo tempo um filme delicado e difícil de digerir. É um tema espinhoso. E se vivêssemos todos juntos? tem mais fantasia, é mais leve. De qualquer modo, vale a pena ver os dois”, aconselha.

                            “Os cineastas orientais já exploram o assunto há algum tempo. Acho maravilhoso o cinema dedicar seus enredos às pessoas mais velhas” -  Ataídes Braga, professor de cinema

                            “É natural que à medida que o ator vá envelhecendo a visibilidade diminua. Isso é normal porque a vida é assim. Começo, meio e fim” - Wilma Henriques, atriz

                            Questão de respeito 
                            Ana Clara Brant
                            Levar a terceira idade para as telas, seja da TV ou do cinema, já é um grande ganho para a sociedade e um reflexo de que o idoso começa a ser uma preocupação real. No entanto, segundo os especialistas, isto é mais frequente em países da Europa – tanto é que Amor e E se vivêssemos todos juntos? são produções europeias. O pscogeriatra Rodrigo Nicolato afirma que essas nações lidaram com o envelhecimento de forma progressiva e lenta, e que no Brasil o processo é mais recente. “Aqui ainda não há preparo econômico, logístico e cultural para lidar com esta questão. Mas, agora que a população está começando a envelhecer, há preocupações neste sentido, inclusive do poder público. Porém, infelizmente, ainda temos a cultura de que o idoso é aquela pessoa que atrapalha”, declara o médico e professor da UFMG. 

                            Nicolato destaca que deveria haver maior respeito da comunidade aos mais velhos e que, sob esse ponto de vista, os filmes exercem um papel muito relevante. “Os jovens e adolescentes deveriam ser treinados e orientados a lidar desde cedo com a questão do envelhecimento. Não só dos que os cercam, como os pais e avós, mas os idosos de uma maneira geral. São pessoas que merecem todo o respeito e dignidade e não existe mais isso de que você fica velho e tem que ficar esperando pela morte. As coisas estão mudando”, enfatiza. 

                            Doce de mãe ganha espaço

                            Uma das atrações da programação de fim de ano da TV Globo tinha como protagonista uma atriz de 83 anos, que sempre esteve na ativa: a grande dama Fernanda Montenegro. Doce de mãe, produzido especialmente para a televisão, contou a história de dona Picucha, viúva de 85 anos, que reúne os quatro filhos em torno de um banquete de panquecas para contar uma notícia bombástica: a empregada que cuida dela há décadas está indo embora. Tem início uma delicada comédia, com os filhos se desdobrando de forma atabalhoada para cuidar da mãe. O telefilme do diretor Jorge Furtado e de Ana Luiza Azevedo fez tanto sucesso que é forte candidato a virar seriado ainda este ano.

                            "Não há preparo econômico, logístico e cultural para lidar com essa questão. Infelizmente ainda temos a cultura de que o idoso é aquela pessoa que atrapalha" Rodrigo Nicolato,  psicogeriatra