quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Entendimento - Eduardo Almeida Reis

O almoço estava sendo feito na outra cozinha, ao nível da piscina, dois andares abaixo, porque a cozinha inaugurada não é para ser usada como cozinha


Estado de Minas: 16/10/2014 




A gente nasce, cresce, estuda, trabalha e envelhece vendo, aprendendo e entendendo uma porção de coisas, mas há coisas difíceis de entender.Fui convidado para a inauguração de uma cozinha em casa de amigos. Almoço num dia de semana. Casa bonita, lugar bonito, quatro pavimentos. Ao nível da rua, salão com a sala de jantar, escritório, lavabo, suíte de hóspedes, sala de tevê e a tal cozinha inaugurada. Realmente, ficou um espetáculo. No andar de cima quatro suítes imensas, com os respectivos closets. Um piso abaixo do nível da rua, garagens para uma porção de automóveis. No piso térreo, salão imenso para festas, belíssima piscina, banheiros e cozinha. Qualquer coisa em torno de 1.400 metros quadrados sem contar o pátio da piscina, vista espetacular para boa parte da cidade, acabamento ótimo – o tipo da residência que você, pensando, não tem coragem de começar a construir, mas compra a obra iniciada, termina devagar e estima que tenha custado menos que um milhão de reais.

Educadíssimo, elogiei a cozinha inaugurada, visitei as suítes do quarto-pavimento e aceitei um uísque. Como tenho bebido pouco, em lugar do uisquinho preferi a cerveja que também me foi oferecida, mesmo sabendo que os donos da casa são fãs da Skol. Alfim e ao cabo, uma garrafa de Skol não mata ninguém.

Qual não foi minha surpresa quando vi chegar uma ampola de Deus, Brut des Flandres, a melhor cerveja do mundo, 11,5% de álcool por volume. Respirei fundo e fui à luta, intrigado com o fato de a cozinha inaugurada, vizinha da sala de tevê, continuar virgem de barulhos e movimentos. Meu relógio, que ainda não é um smartwatch, marcava uma hora da tarde.

Aí, entra o negócio que a gente vê e não entende, mesmo já tendo visto um monte de coisas difíceis de entender: o almoço estava sendo feito na outra cozinha, ao nível da piscina, dois andares abaixo, porque a cozinha inaugurada não é para ser usada como cozinha. Por quê? Ora, porque suja com a gordura das frituras.

Almoço feito lá embaixo, que subiu na munheca pelas escadas e foi servido na imensa mesa de madeira maciça, design Le Corbusier, que fica na cozinha inaugurada. Comida deliciosa com direito ao indispensável sorvete Häagen-Dasz e café expresso destas máquinas modernas de cápsulas. Acendi imenso Cohiba, agradeci o convite e voltei para casa sem entender absolutamente nada.

Pesquisas

Longe das eleições, porcentagem, percentagem ou percentual é a proporção de uma quantidade ou grandeza em relação a uma outra avaliada sobre a centena: símbolo %. Nas pesquisas eleitorais, 95% deixam de ser 95 em 100 e passam a merecer a seguinte explicação: “o que quer dizer que, respeitada a margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos, o resultado será igual em 95% dos casos”.

No país dos meus sonhos, com todo o respeito pelos institutos que pesquisam a opinião do distinto público, as pesquisas eleitorais seriam proibidas. Por quê? Ora, porque influenciam o eleitorado. Claro que influenciam: a espécie humana é muito influenciável. Se desonesta, uma pesquisa condena Jesus e absolve o mau ladrão.

Não invento. Conheço um procurador de Justiça que, universitário, precisando reforçar seus rendimentos, fazia bicos como pesquisador do maior e mais famoso dos institutos. E me contou que à época, sendo petista, influenciava os entrevistados para que respondessem de acordo com os objetivos dele, entrevistador.

Aliás, no país dos meus sonhos o voto não seria obrigatório nem universal, no sentido de peso igual. Tenho amigos cujos votos valem cinquenta vezes mais que o meu, que já não é de se jogar fora. Do jeito que está, a governança fica difícil. Basta ver a turminha que tem sido eleita em todos os níveis “dado o alto grau de baixo nível do nosso povo, cujo índice mais verídico é o analfabetismo”, com escreveram os portugueses Mário e Fernando Vieira de Sá, pai e filho, num delicioso livro sobre vacas leiteiras.

O mundo é uma bola

16 de outubro de 1769: concessão do título de marquês de Pombal ao conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Mello, português da melhor supimpitude. Em 1798, Hipólito José da Costa embarca para os Estados Unidos com a missão de conhecer as novas técnicas industriais dos americanos e levá-las para Portugal. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça nasceu em 1774, na Colônia de Sacramento, e morreu em Londres no ano de 1823. Três anos depois de seu nascimento a Colônia de Sacramento foi devolvida aos espanhóis, portanto o jornalista, maçom e diplomata era brasileiro, foi adolescente em Pelotas (RS) e se formou em leis, filosofia e matemática na Universidade de Coimbra.

Em 1846, marco inicial da anestesiologia com a anestesia baseada em éter etílico, substância (C4H10O) usada como solvente, como antisséptico externo e como anestésico. Em 1862, Francisco Solano López cria o congresso especialmente convocado para elegê-lo presidente da República do Paraguai. Em 1936, inauguração do Aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, o primeiro aeroporto civil brasileiro. Hoje é o Dia do Anestesiologista, da Ciência e Tecnologia, do Engenheiro de Alimentos e do Pão.

Ruminanças


“Oh! Meu Deus! Por que o pão deve ser tão caro / E a carne e o sangue tão baratos?” (Thomas Hood, 1799-1845)

Vida como ela é

Na quebrada, longa de ficção de Fernando Grostein Andrade, estreia hoje em 200 salas do país. Filme narra a trajetória de cinco jovens que vivem na periferia de São Paulo


Mariana Peixoto
Estado de Minas: 16/10/2014



Jorge Dias, filho do rapper Mano Brown, estreia no papel do jovem Gerson:
Jorge Dias, filho do rapper Mano Brown, estreia no papel do jovem Gerson: "Conheço muita gente como ele"


Alguns se salvam, muitos se perdem. Na quebrada, primeiro longa-metragem de ficção de Fernando Grostein Andrade, que estreia hoje em 200 cinemas de todo o país, não tem a pretensão de mudar o mundo. Mas busca mostrar que quando existe opção, há como encontrar uma saída. Com roteiro nascido a partir de depoimentos reais, cruza a trajetória de cinco jovens que vivem em comunidades na periferia de São Paulo: Zeca sobreviveu a uma chacina; Gerson vive com a mãe, já que o pai está preso desde que ele se conhece por gente; diferentemente de seus pais e irmão, Mônica sofre e, ao mesmo tempo, fica aliviada por isso; oprimido pelo pai, Júnior é fascinado por aparelhos eletrônicos; e Joana, que tem como referência a rua, sonha com a mãe que nunca teve. Em meio aos seus próprios dramas, os garotos têm que conviver, ainda que involuntariamente, com a marginalidade. No meio do caminho, os cinco se deparam com uma ONG que ensina os primeiros passos para o universo do audiovisual.

“Não quis dar nenhuma solução definitiva, e sim mostrar o poder transformador da arte, cultura e educação”, afirma Fernando, que começou a desenvolver o longa a partir de sua experiência no curta Cine Rincão (2011). Exibido no Festival de Veneza, o curta foi realizado para um projeto da revista italiana Colors (iniciativa da marca Benetton) sobre iniciativas que tentavam desafiar a injustiça social em zonas de conflito armado. Cine Rincão retratava a vida de um jovem da ONG Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, fundada pelo apresentador e empresário Luciano Huck, irmão de Fernando. Huck é um dos produtores de Na quebrada.

“Depois de três longas, estava um pouco cansado de documentários”, acrescenta o cineasta, conhecido pelos filmes Coração vagabundo (2008), sobre Caetano Veloso; Quebrando o tabu (2011), que abre a discussão sobre a guerra contra as drogas; e Breaking the taboo (2013), sua versão para o mercado externo, narrado por Morgan Freeman.

“Tenho algumas paixões que acabam ficando claras nos meus filmes. Uma delas é a lucidez combatendo as trevas. Em Coração vagabundo era o provincianismo versus o cosmopolitismo, com a mensagem do Caetano que dizia que não importa onde você vá, tem que abrir a cabeça. Já em Quebrando o tabu apresentamos medidas pragmáticas e não moralistas. É impossível radicar o tráfico, qualquer cidade do mundo tem. Mas há como prevenir o aumento do consumo por meio da educação. E quando há a interseção entre educação e cultura, você pode ajudar a prevenir algo mais grave do que a experimentação ocasional de drogas, que é a marginalização, essa a grande questão do tema”, afirma Fernando

Por meio da ficção, que bebe muito na realidade, Na quebrada traz essas questões à tona. A inclusão social, um dos vértices do debate proposto pelo cineasta, está presente não só dentro da tela, como fora dela. O codiretor do longa é Paulo Eduardo, formado na primeira turma de edição do Instituto Criar. Vinte e cinco alunos e ex-alunos da ONG também participaram do projeto. O elenco principal é formado por jovens que até então nunca haviam atuado no cinema – a exceção é o ator Jean Luis Amorim, protagonista de Capitães de areia (2011). Todos os detentos, traficantes e policiais foram interpretados por detentos que integram o grupo de teatro Do Lado de Cá, da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Desativado até então, o projeto voltou à ativa por causa do filme.

Irmã de Jorge, Domênica vive no filme o drama de Mônica, uma garota que receia ficar cega como os pais

 (Paris Filmes/Divulgação)
Irmã de Jorge, Domênica vive no filme o drama de Mônica, uma garota que receia ficar cega como os pais


Dois filhos de Brown


Jorge e Domênica, de 18 e 15 anos, filhos de Mano Brown, líder dos Racionais MCs, estão no elenco principal de Na quebrada. Eles vivem Gérson e Mônica, dois garotos que entram para a ONG do filme. Ambos sem experiência alguma com cinema, chegaram até a produção graças à mãe, Eliane Dias, que conheceu Fernando Andrade numa palestra. “Nem queria fazer o teste, foi minha mãe quem falou para eu fazer. Nunca atuei na vida, mas quando comecei a preparação, tomei gosto”, assume Jorge. Domênica, que na época das filmagens tinha apenas 13 anos, já levava jeito para a coisa. “Indicaram meu grupo de teatro (que atua no Centro Cultural Monte Azul, Zona Sul de São Paulo) para o teste”, conta.

Moradores da Zona Sul, assim como os personagem do filme (vivem com os pais numa região entre o Campo Limpo e o Capão Redondo), Jorge e Domênica veem muito da vida real no filme. “Na periferia tem muito Gérson. Ele foi convocado (pelo tráfico), ameaçado e não conseguiu sair. Conheço muitas histórias parecidas com a dele. Mas tem gente que mesmo com o pai preso não segue o mesmo caminho. Ou que começou pelo errado e conseguiu se direcionar pelo esporte ou pela arte”, diz Jorge. E acrescenta: “Aqui tem certa disciplina, não tem morte como antes. A violência não vem do bandido, o medo é da polícia. Hoje mesmo, minha mãe ligou dizendo para eu tomar cuidado na rua pois viu o (Batalhão de) Choque abordando dois jovens.”

Depois de cursar um semestre do curso de nutrição, Jorge trancou matrícula para estudar cinema. Como seu personagem, ele também criou uma grife de roupa de hip-hop, Müe. “É uma gíria da área que moro, que pode ser usada para várias coisas. Se você for jogar futebol, pode falar: ‘Vamos müe’, jogar muito.” Já Domênica estuda teatro desde os 10 anos. Mônica, sua personagem, é filha de um casal cego devido ao glaucoma. Seu irmão acaba desenvolvendo a doença, perdendo gradativamente a visão. O grande medo da menina é que ocorra o mesmo com ela. “Não conheço nenhum deficiente visual, não sei como funciona. Mas conheci a família da Mônica (a menina cuja história inspirou a personagem), que tem uma história bonita.”

Para a garota, que vai continuar estudando teatro, mas também tentar um curso de cinema – “a atuação é muito diferente nas duas áreas” – o mais importante de Na quebrada foi o envolvimento das pessoas. “É um filme que transformou quem participou dele. Tanto para a gente, que nunca tinha feito nada, quanto para os detentos, que têm agora outra perspectiva.” Se há muito interesse dos irmãos pelo cinema, não há nenhum pelo hip-hop. “Não, não. Gosto de teatro e moda, nunca quis experimentar a música”, fala Domênica. “Só trabalho como produtor para o Mano Brown e os Racionais. Fora isso, quando era bem pequeno, cantei num grupo de rap com meu primo, mas nada de mais. Nunca tive vontade”, assume Jorge, que é a cara do pai. O garoto ri da comparação. “O pessoal fala, né?! Não tem como esconder.”