João Paulo
Estado de Minas: 19/10/2013
...São casas simples, com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar...
“A vida é pra valer, a vida é pra levar”. Foi com esse verso, em Samba pra Vinicius, feito em parceria com Toquinho, que Chico Buarque definiu a existência do poeta. Com a simples mudança da posição das letras dos verbos, sintetizou toda uma vida. Para Vinicius, a vida era pra valer, carregava um sentido filosófico e, o que era mais sério, não tinha outra: o destino que nos aguarda a todos é “por cima uma laje, embaixo a escuridão”. Mas o poeta sabia que a melhor vingança para a inevitabilidade do fim é o prazer que se recolhe no durante: a vida é pra levar. Entre a metafísica e o prazer do instante, ficou com os dois.
Nascido em 19 de outubro de 1913, no Bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes foi sempre um homem dado a dualidades e à busca de superá-las. Na adolescência e juventude, mergulhou na poesia transcendental, mística, resultado de sua fase cristã. A tradução em sua obra dessa inclinação de alma foram poemas com versos longos, elegias, odes, sonetos e outras formas que fugiam do modernismo que dominava a cena literária. Para dar conta de temas como a visão trágica da existência, a culpa e a expiação religiosa, Vinicius escolheu modelos expressivos igualmente intensos e marcados pela tradição.
O contraponto da primeira poesia, de fundo espiritualista, foi a afirmação materialista que o poeta reconhecia como uma reação ao idealismo dos primeiros anos. Vinicius de Moraes foi seu próprio crítico literário e fez o trabalho de compreender e explicar para o leitor o sentido de seus versos. Em sua Antologia poética, divide sua obra em duas fases, a idealista – até o livro Ariana, a mulher, de 1936 – e a materialista – quando se afasta da religião para se dedicar à vida. Para Vinicius, entre esses dois momentos se situaria o livro Cinco elegias, de 1943. Em outras palavras, o poeta traçou um caminho que ia das ideias para a vida, da transcendência à imanência, do espírito para a matéria.
Para quem só conhece o compositor popular, talvez a poesia merecesse ter ficado para trás ou teria sido algo de interesse apenas dos estudiosos da literatura. Vinicius de Moraes, quando lido com seriedade, no entanto, se mostra sempre um poeta poderoso, senhor dos instrumentos mais sofisticados da lírica. A palavra escrita não foi uma preparação para o autor de letras de canções, nem apenas exercício literário abandonado com o tempo em favor do convite que lhe soprava do mundo. A obra de Vinicius de Moraes fixa um padrão de qualidade que precisa ser avaliado além da força mítica da existência do poeta. Quando Vinicius desloca o eixo da poesia para sua vida, parece deixar a obra escrita em segundo plano para dar mais valor à poesia vivida ou às letras das canções. Mas não foi bem assim: múltiplo, poeta e letrista conviviam no mesmo homem, como emanação de duas vertentes, a mão esquerda e a direita.
Entre os méritos literários do poeta está a variedade das formas, a absoluta mestria no culto do soneto, a capacidade de ir dos motivos transcendentais aos temas do cotidiano e, sobretudo, a capacidade de surpreender. Muitas vezes um poeta melhor se avalia pelo que desconcerta do que pela capacidade de consolar. Uma forma de avaliar como Vinicius de Moraes desafia a crítica é sua capacidade deixar críticos e poetas desconfiados.
Vem daí certa reserva da academia e inveja de colegas de profissão (claro que não os grandes, como Cabral, Bandeira e Drummond, que sempre o tiveram como par): para a universidade não é suficientemente sério; para os passadistas se perdeu em novidades; para os mordernistas, excessivamente formal; para os esquerdistas, muito alienado; para a direita, comunista e festivo demais. O público, felizmente, não perdeu tempo e sempre amou Vinicius. Declamar o Soneto da fidelidade é quase uma forma de oração laica. Vinicius ensinou ao brasileiro que o amor acaba, desde que seja amor de verdade. Essa é, talvez, uma das mais profundas revoluções na alma de uma nação católica, cheia de culpas, que o poeta carpiu em 14 versos sublimes para cada um de nós.
Letra e música
Se no interior de sua poesia há dualismo, a maior cisão, no entanto, estaria localizada entre o poeta da palavra e o poeta das canções. É claro que o Vinicius de Moraes compositor de clássicos como Chega de saudade, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, Berimbau, Samba da bênção, Primavera, Minha namorada, Arrastão e Tarde em Itapuã está na boca do povo e é cantado ainda hoje sempre que se puxa um violão. No entanto, o que parece ser uma concessão do poeta é, na verdade, um outro modo de expressão. O Vinicius de Moraes compositor não é menos poeta que o autor de sonetos e elegias. A canção popular, muito em função da obra do próprio Vinicius, se tornou veículo da melhor poesia feita no país.
O que a canção traz de diferente em relação ao poema escrito para ser lido é a soma de elementos próprios do universo da música: o ritmo que obriga ao virtuosismo de casar texto e melodia de forma impecável e a necessidade de comunicação mais imediata, já que a fruição se dá em outro tempo e motivada por aspectos também emocionais, não apenas construtivos e linguísticos. Vinicius de Moraes, além disso, se situa na inflexão de uma mudança na temática da canção, que abandona a origem literária para buscar um coloquialismo que a aproxime do dia a dia.
A revolução da bossa, quase sempre calcada na música (a celebrada batida de João Gilberto) só tem sentido quando percebida em sua totalidade, na qual as letras de Vinicius são elementos igualmente definidores. Há uma canção brasileira antes e depois de Tom e João Gilberto; há uma lírica da canção que tem como marco as letras de Vinicius de Moraes. Ao compreender a nova canção, o poeta percebeu a necessidade de uma poesia que se casasse a ela de acordo com suas demandas estéticas. A melodia de Garota de Ipanema convoca a memória afetiva para a letra; é impossível ler os versos sem cantarolar. Essa indivisibilidade é obra de Vinicius de Moraes.
Vinicius dominava a música. Soube compor para os vibratos de Elizete Cardoso (com a carga dramática necessária) e para a limpidez de João Gilberto (com o minimalismo exigido pelo novo canto). Suas letras, além disso, respondem às exigências do tempo, à renovação da sensibilidade do ouvinte urbano e até, sempre com equilíbrio, às demandas da política. Além disso, Vinicius parecia se tornar outro a cada parceiro, criando obras únicas com cada um deles. Com Tom, a arte direta, moderna, sem maneirismos; com Baden, a influência africana; com Lyra, um estado de alma marcado pela paixão sombreada pela melancolia; com Toquinho, a juventude na maturidade, um sentimento que intui a decadência da vitalidade e se traduz em impulso para a comunicação.
Há ainda outras divisões que apontam exatamente para o caráter múltiplo da obra e da presença de Vinicius de Moraes na cultura brasileira: o prosador (um cronista admirável) e o poeta; o escritor e o jornalista (crítico de música e cinema); o diplomata e o boêmio. Mas nenhuma dualidade é mais marcante e foi resolvida com mais sabedoria que a que separa a vida e a obra.
Vinicius foi um homem de paixões. Teve muitos relacionamentos, casou-se nove vezes, foi da dor intensa da perda ao nirvana do amor correspondido. A única saída para uma vida sem sofrimento seria a negação do amor. Algo impensável para um poeta do amor demais. A cada movimento de alma, foi aproximando mais e mais a obra da vida, até que, numa síntese da qual só ele teve a fórmula, realizou uma existência poética, com suas dores e alegrias.
A vida, para Vinicius, foi sempre pra valer. Por isso ele levou a vida como poeta.
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar...
“A vida é pra valer, a vida é pra levar”. Foi com esse verso, em Samba pra Vinicius, feito em parceria com Toquinho, que Chico Buarque definiu a existência do poeta. Com a simples mudança da posição das letras dos verbos, sintetizou toda uma vida. Para Vinicius, a vida era pra valer, carregava um sentido filosófico e, o que era mais sério, não tinha outra: o destino que nos aguarda a todos é “por cima uma laje, embaixo a escuridão”. Mas o poeta sabia que a melhor vingança para a inevitabilidade do fim é o prazer que se recolhe no durante: a vida é pra levar. Entre a metafísica e o prazer do instante, ficou com os dois.
Nascido em 19 de outubro de 1913, no Bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes foi sempre um homem dado a dualidades e à busca de superá-las. Na adolescência e juventude, mergulhou na poesia transcendental, mística, resultado de sua fase cristã. A tradução em sua obra dessa inclinação de alma foram poemas com versos longos, elegias, odes, sonetos e outras formas que fugiam do modernismo que dominava a cena literária. Para dar conta de temas como a visão trágica da existência, a culpa e a expiação religiosa, Vinicius escolheu modelos expressivos igualmente intensos e marcados pela tradição.
O contraponto da primeira poesia, de fundo espiritualista, foi a afirmação materialista que o poeta reconhecia como uma reação ao idealismo dos primeiros anos. Vinicius de Moraes foi seu próprio crítico literário e fez o trabalho de compreender e explicar para o leitor o sentido de seus versos. Em sua Antologia poética, divide sua obra em duas fases, a idealista – até o livro Ariana, a mulher, de 1936 – e a materialista – quando se afasta da religião para se dedicar à vida. Para Vinicius, entre esses dois momentos se situaria o livro Cinco elegias, de 1943. Em outras palavras, o poeta traçou um caminho que ia das ideias para a vida, da transcendência à imanência, do espírito para a matéria.
Para quem só conhece o compositor popular, talvez a poesia merecesse ter ficado para trás ou teria sido algo de interesse apenas dos estudiosos da literatura. Vinicius de Moraes, quando lido com seriedade, no entanto, se mostra sempre um poeta poderoso, senhor dos instrumentos mais sofisticados da lírica. A palavra escrita não foi uma preparação para o autor de letras de canções, nem apenas exercício literário abandonado com o tempo em favor do convite que lhe soprava do mundo. A obra de Vinicius de Moraes fixa um padrão de qualidade que precisa ser avaliado além da força mítica da existência do poeta. Quando Vinicius desloca o eixo da poesia para sua vida, parece deixar a obra escrita em segundo plano para dar mais valor à poesia vivida ou às letras das canções. Mas não foi bem assim: múltiplo, poeta e letrista conviviam no mesmo homem, como emanação de duas vertentes, a mão esquerda e a direita.
Entre os méritos literários do poeta está a variedade das formas, a absoluta mestria no culto do soneto, a capacidade de ir dos motivos transcendentais aos temas do cotidiano e, sobretudo, a capacidade de surpreender. Muitas vezes um poeta melhor se avalia pelo que desconcerta do que pela capacidade de consolar. Uma forma de avaliar como Vinicius de Moraes desafia a crítica é sua capacidade deixar críticos e poetas desconfiados.
Vem daí certa reserva da academia e inveja de colegas de profissão (claro que não os grandes, como Cabral, Bandeira e Drummond, que sempre o tiveram como par): para a universidade não é suficientemente sério; para os passadistas se perdeu em novidades; para os mordernistas, excessivamente formal; para os esquerdistas, muito alienado; para a direita, comunista e festivo demais. O público, felizmente, não perdeu tempo e sempre amou Vinicius. Declamar o Soneto da fidelidade é quase uma forma de oração laica. Vinicius ensinou ao brasileiro que o amor acaba, desde que seja amor de verdade. Essa é, talvez, uma das mais profundas revoluções na alma de uma nação católica, cheia de culpas, que o poeta carpiu em 14 versos sublimes para cada um de nós.
Letra e música
Se no interior de sua poesia há dualismo, a maior cisão, no entanto, estaria localizada entre o poeta da palavra e o poeta das canções. É claro que o Vinicius de Moraes compositor de clássicos como Chega de saudade, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, Berimbau, Samba da bênção, Primavera, Minha namorada, Arrastão e Tarde em Itapuã está na boca do povo e é cantado ainda hoje sempre que se puxa um violão. No entanto, o que parece ser uma concessão do poeta é, na verdade, um outro modo de expressão. O Vinicius de Moraes compositor não é menos poeta que o autor de sonetos e elegias. A canção popular, muito em função da obra do próprio Vinicius, se tornou veículo da melhor poesia feita no país.
O que a canção traz de diferente em relação ao poema escrito para ser lido é a soma de elementos próprios do universo da música: o ritmo que obriga ao virtuosismo de casar texto e melodia de forma impecável e a necessidade de comunicação mais imediata, já que a fruição se dá em outro tempo e motivada por aspectos também emocionais, não apenas construtivos e linguísticos. Vinicius de Moraes, além disso, se situa na inflexão de uma mudança na temática da canção, que abandona a origem literária para buscar um coloquialismo que a aproxime do dia a dia.
A revolução da bossa, quase sempre calcada na música (a celebrada batida de João Gilberto) só tem sentido quando percebida em sua totalidade, na qual as letras de Vinicius são elementos igualmente definidores. Há uma canção brasileira antes e depois de Tom e João Gilberto; há uma lírica da canção que tem como marco as letras de Vinicius de Moraes. Ao compreender a nova canção, o poeta percebeu a necessidade de uma poesia que se casasse a ela de acordo com suas demandas estéticas. A melodia de Garota de Ipanema convoca a memória afetiva para a letra; é impossível ler os versos sem cantarolar. Essa indivisibilidade é obra de Vinicius de Moraes.
Vinicius dominava a música. Soube compor para os vibratos de Elizete Cardoso (com a carga dramática necessária) e para a limpidez de João Gilberto (com o minimalismo exigido pelo novo canto). Suas letras, além disso, respondem às exigências do tempo, à renovação da sensibilidade do ouvinte urbano e até, sempre com equilíbrio, às demandas da política. Além disso, Vinicius parecia se tornar outro a cada parceiro, criando obras únicas com cada um deles. Com Tom, a arte direta, moderna, sem maneirismos; com Baden, a influência africana; com Lyra, um estado de alma marcado pela paixão sombreada pela melancolia; com Toquinho, a juventude na maturidade, um sentimento que intui a decadência da vitalidade e se traduz em impulso para a comunicação.
Há ainda outras divisões que apontam exatamente para o caráter múltiplo da obra e da presença de Vinicius de Moraes na cultura brasileira: o prosador (um cronista admirável) e o poeta; o escritor e o jornalista (crítico de música e cinema); o diplomata e o boêmio. Mas nenhuma dualidade é mais marcante e foi resolvida com mais sabedoria que a que separa a vida e a obra.
Vinicius foi um homem de paixões. Teve muitos relacionamentos, casou-se nove vezes, foi da dor intensa da perda ao nirvana do amor correspondido. A única saída para uma vida sem sofrimento seria a negação do amor. Algo impensável para um poeta do amor demais. A cada movimento de alma, foi aproximando mais e mais a obra da vida, até que, numa síntese da qual só ele teve a fórmula, realizou uma existência poética, com suas dores e alegrias.
A vida, para Vinicius, foi sempre pra valer. Por isso ele levou a vida como poeta.