sábado, 14 de junho de 2014

João Paulo - Quem tem medo do povo?‏

Quem tem medo do povo?
João Paulo
Estado de Minas 14/06/2014

Bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na janela do Ministério do Desenvolvimento Agrário, durante uma audiência em Brasília (Lieslei Marcelino/Reuters)
Bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na janela do Ministério do Desenvolvimento Agrário, durante uma audiência em Brasília

Todo mundo sabe o que é democracia. Mas nem todos sabem da mesma maneira. Conceito amplo, capaz de abranger desde o regime político até a forma como o poder é exercido, a democracia tem ainda muitas tensões internas. E é exatamente isso o que torna a palavra ainda mais rica e sua prática mais estimulante.

Há a democracia substantiva e a democracia adjetiva; a primeira estabelece uma forma de governo, a segunda qualifica suas ações. Há, no interior da democracia, um polo que aponta para a ordem, com sua tradução em normas universais e republicanas; e outro que indica o conflito, com seu desejo por mais direitos e reforma permanente das instituições.

No sentido talvez mais próximo do cidadão, existe a democracia representativa e a democracia direta. Enquanto a primeira estabelece que algumas pessoas, escolhidas pelo voto, farão valer suas vontades no âmbito dos negócios públicos (da criação de leis à fiscalização do exercício do poder), a segunda cria instâncias em que o próprio indivíduo ou grupos de interesses atuam diretamente nas questões referentes à vida pública.

A representação é um princípio de realidade nas sociedades complexas (não se pode chamar todas as pessoas à praça pública para resolver as questões atinentes à vida social); a participação é a garantia de que o vínculo com a sociedade e as pessoas não se perca. Um lado alimenta o outro e o faz funcionar. Os dois, conjuntamente, respondem pelo princípio maior da democracia, como está escrito na Constituição Federal: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”.

A polêmica recente em torno do Decreto 8.243, que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS), se alimenta exatamente na incompreensão desse duplo vínculo definido na Carta Magna: somos uma democracia que mescla representação e participação. Se um dos lados falha, o outro se exacerba; sem a ação combinada dos dois o conjunto fica mais pobre.

No entanto, o que se tem visto é um jogo duro contra o decreto, por um lado, e uma ausência de defesa por outro. Para certos setores, ele limita os poderes do Congresso, abre flanco para o corporativismo e aparelhamento do Estado. Por outro lado, quem sempre teve a participação popular como instrumento prioritário de exercício da política não parece ter se empolgado com o decreto, mesmo no que ele aponta de garantia legal para ações que vêm sendo constituídas ao longo dos anos, com a rica experiência dos conselhos, das conferências, das ouvidorias e dos orçamentos participativos.

Dando nome aos bois, a oposição critica tudo na medida: da sua forma de instituição (o decreto, como se não fosse algo constitucional) ao conteúdo, atacando falsamente a PNPS como um avanço ilegítimo sobre o poder da representação. Do lado das próprias organizações populares há um silêncio que parece constrangido em razão de outras possíveis estratégias pensadas para o campo político, sobretudo o plebiscito sobre a Constituinte exclusiva para a reforma política.

A chamada grande imprensa, de forma quase unânime e vazada pelos mesmos argumentos, detonou o decreto, dando a ele um caráter de oportunismo eleitoreiro. Outra linha de combate foi o deslizamento, recheado de má-fé, que enxerga num instrumento, que decorre diretamente da Constituição, o desvio em direção a outras realidades políticas. Assim, o PNPS foi traduzido como sendo a égide dos “conselhos populares”, quando não a ponta de lança do bolivarianismo venezuelano no país. Pura paranoia e ignorância sociológica.

Parece que o decreto não foi lido. O que ele estabelece é, na verdade, um aprofundamento da democracia direta no Brasil, não a sua criação. Menos ainda o avanço sobre o terreno do Legislativo, que será parceiro imediato e necessário em sua regulamentação. A realidade da participação direta na democracia brasileira é histórica e legal, desde 1988, mas precisa ser impulsionada em razão da nova conjuntura política e, até mesmo, dos instrumentos de intervenção na agenda pública que não existiam na época da promulgação da Constituição Federal, como a rica e complexa agitação dos meios virtuais.

Os conselhos municipais, estaduais e nacional e suas conferências, em diversos setores, vêm mostrando que há um rico tecido participativo organizado, que soube intervir na elaboração, deliberação e acompanhamento das políticas em vários setores, como saúde, assistência social e juventude, por exemplo. No entanto, mesmo regulamentados e ativos, esses instrumentos não dão conta de todo o potencial de participação exigido pela democracia contemporânea. O cenário, como todos sabem, é de crise de representação.

Avanço e polêmica É sempre curioso o jogo finório que se estabelece quando se analisam as crises. Os movimentos de junho, que completam um ano, deixaram poucas unanimidades entre os intérpretes – já que todos quiseram se assenhorar de sua força e se afastar de seus aspectos mais polêmicos –, entre elas, com certeza, a ideia de que a política tradicional “não nos representa”. No entanto, bastou cogitar em reforma política para que a máquina do mundo, como no poema de Drummond, se fechasse ao engenho das mudanças.

Crise de representação, um fenômeno mundial, tem muitas origens, desde o esgotamento das formas convencionais da política frente à globalização e aos efeitos da comunicação em rede até a nova postura psicológica do cidadão, que teve seu tempo político acelerado. Ninguém quer saber mais de esperar a próxima eleição, há um sentido real de urgência que cobra mudanças em ciclos menores, de acordo com as demandas apresentadas pelas pessoas e grupos em processo permanente de ampliação de direitos.

Além disso, há um descompasso cada vez maior entre o que o cidadão deposita com seu voto e o resultado da atuação do político de seu representante. Mesmo supondo que há uma identidade ideológica madura em torno das grandes questões, há temas que fogem a esse padrão, exigindo respostas mais ágeis, que vão além da temporalidade do jogo político.

Em algumas situações, a representatividade é colocada em segundo plano em razão de pressões mais diretas, que não estão previstas no jogo político. Um bom exemplo foi o afastamento do deputado Marcos Feliciano da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A cidadania ativa não pode esperar o cronos tinhoso e manhoso dos arranjos partidários. Há valores igualmente democráticos e muito mais urgentes em jogo. A nova proposição é a seguinte: a sociedade deve pautar a agenda política, não ser pautada por ela.

O que o decreto que institui a Política Nacional de Participação Social propõe é um diálogo respeitoso entre o Estado e as várias instâncias da sociedade organizada. É também bastante curioso que uma das linhas de oposição parta exatamente da negação de legitimidade da participação social. Assim, a mesma sociedade que se diz democrática, porque tem cidadãos participantes, discrimina o ativismo desde que não venha do momento eleitoral, que emite um cheque em branco resgatável em quatro anos.

De uns tempos para cá, sociedade civil organizada passou a ser vista com desconfiança, longe do otimismo nela depositado no período de luta contra a ditadura e transição democrática. Duvida-se de sua honestidade, formas de financiamento, condução, presença ideológica dominante, capacidade de aparelhar interesses de minorias, corporativismo. Nada menos democrático. Desconhecer o potencial das organizações populares é fechar canais de negociação e ampliação dos interesses da sociedade.

De acordo com o decreto, haverá um incentivo para que as instâncias de governo criem formas de diálogo e presença da sociedade na definição das ações que dizem respeito a cada setor. A forma como a atuação dos cidadãos, ONGs, conselhos, movimentos, coletivos e outras organizações vão ser incorporadas ao processo passa pela regulamentação legislativa. Não há subordinação ou substituição de funções, mas complementaridade. No âmbito da sociedade organizada, o desafio é exatamente ampliar seu potencial de representatividade e legitimidade. Todos vão precisar amadurecer e melhorar. Vai dar trabalho.

Por fim, há que se reconhecer a incapacidade parlamentar em torno de certos temas, que representam interesses muito fortes do sistema hegemônico, e que capitalizam recursos para a eleição de parlamentares em todas as instâncias. Bancadas de ruralistas e de representantes de construtoras e mineradores, por exemplo, serão sempre impermeáveis a medidas que firam seus interesses de origem, como reforma agrária, controle de transgênicos e agrotóxicos, autorização para mineração em terras indígenas ou de preservação, apoio à mudança da matriz energética e de transporte no país, entre outras. Nesses casos, a intervenção terá que vir da sociedade, por meio de confronto ou de campos sistemáticos de negociação, como previstos no decreto.

Para os acusadores da inspiração venezuelana, basta consultar o edifício político de países insuspeitadamente liberais, como Estados Unidos, Inglaterra e França, para identificar suas formas próprias de incorporação da participação popular na definição e acompanhamento de projetos de interesse público. São ideias bem diferentes das expressas no decreto brasileiro, mas que mostram a mesma preocupação com a proximidade do controle do cidadão, além das instâncias do Legislativo.

Para quem acha que o decreto é perigosamente esquerdista, talvez fosse bom ir à fonte. Ao contrário do que muita gente pensa, Marx sempre desconfiou do Estado sem a seiva da sociedade. Para ele, havia uma falta de conexão entre as duas instâncias: as pessoas eram abstratamente iguais, mas viviam situações absolutamente desiguais no dia a dia. O grande objetivo do pensador era acabar com esse abismo política e vida. Para isso, era preciso que as pessoas, homens e mulheres, reivindicassem na prática o que o Estado lhes tirava a todo momento. O nome que ele deu a essa fusão de vida e política foi democracia. Não seria muito diferente do conceito de um liberal empedernido que, como Marx, assinaria embaixo da seguinte afirmação: a vida em sempre em primeiro lugar.

Para quem pensa que participação política é festa, da qual apenas a minoria de esquerda conhece a fórmula, aqui vai a má notícia. Democracia dá trabalho, cobra presença, disputa de ideias e projetos. Acima de tudo, honestidade de propósitos e organização. O limite do Decreto 8.243 não é seu objeto – a presença da sociedade nas ações de Estado –, mas sua eficácia. Só vai dar certo se a democracia passar a fazer parte do DNA do brasileiro. Pelas reações da direita e descaso da esquerda, a tarefa é árdua.

Orelha

Orelha
Estado de Minas 14/06/2014

O filósofo Slavoj Zizek disseca o monstro visível e invisível da violência dos nossos dias (Wikimedia Commons/Divulgação)
O filósofo Slavoj Zizek disseca o monstro visível e invisível da violência dos nossos dias


Zizek e a violência

O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek não para. Um dos mais radicais e eruditos analistas da cena internacional, ele tem novo livro lançado no Brasil – seu 11º título no país –, Violência, pela Editora Boitempo. A edição tem um prefácio escrito especialmente para o leitor brasileiro. O tema, geralmente tratado pelo viés da ciência política ou da sociologia, ganha novo enquadramento na obra do pensador, em método que ele define como “reflexões laterais”. A partir sobretudo de Hegel e Lacan, o autor estuda a estagnação do modelo de sociedade atual, que multiplica insatisfações e frustrações coletivas e pessoais. Zizek busca identificar os aspectos subjetivos e objetivos da violência, indicando tanto a expressão visível como invisível do fenômeno. Sob seu crivo estão o medo, a liberalização da sexualidade, o comunitarismo e o terrorismo fundamentalista.


Mais bola

Há alguns anos, era comum criticar a academia por sua surdez aos gritos da multidão em torno do jogo de futebol. Os tempos mudaram e o esporte é hoje tema importante nos estudos nas áreas de literatura e ciências sociais. Um bom exemplo é o livro Futebol: objeto das ciências humanas, organizado por Flávio de Campos e Daniela Alfonsz, que reúne ensaios sobre o tema. Entre eles, “A crônica de esportes no Brasil”, de José Carlos Marques; “Cidade esportiva/cidade das letras”, de Marcelino Rodrigues da Silva; “Arquitetura da exclusão”, de Flávio Campos, entre outros. A edição é da Leya.


Lições de Zuza


Um dos mestres da crítica e da história da música brasileira e internacional, Zuza Homem de Mello reúne em volume 140 textos jornalísticos sobre o tema. São artigos, reportagens e entrevistas que cobrem o período que vai de 1957 a 2014. Focalizando principalmente o jazz, a MPB e a música norte-americana, o livro traz, entre outras, entrevistas com Charles Mingus, um encontro com Chet Baker, análise da obra de Noel Rosa e a primeira entrevista com Itamar Assumpção. Para recordar e aprender.


Tempo do rei
A sedução pela realeza não cessa, como prova o fuzuê em torno da renúncia do rei Juan Carlos, da Espanha. Livro que merece atenção na seara é a biografia de Edward VII, de autoria de André Maurois, que acaba de chegar às livrarias pela Editora Globo. Depois da rainha Victoria, Edward VII, lançado originalmente em 1933, traça um perfil do monarca repleto de contradições, em momento marcante da história mundial, a passagem do século 19 para o 20, perto da ruína dos grandes impérios europeus e da ascensão dos EUA no concerto das nações.


Dois Machados

O alienista, de Machado de Assis, acaba de ganhar nova edição pela Penguin Companhia, com introdução de John Gledson e notas de Hélio Guimarães. Na esteira, chega também a reedição da peça A lata de lixo da história – Chanchada política, de Roberto Schwarz, grande especialista na obra de Machado, que inspira seu enredo exatamente na história de Simão Bacamarte, mas escrita sob o impacto da ditadura militar. Para completar o pacote, o clássico ensaio de Schwarz, As ideias fora do lugar, ganha nova reimpressão.


Clássico esquecido


   (Arquivo EM)


Conhecido principalmente pelo livro Amanuense Belmiro, o escritor mineiro Cyro dos Anjos (1906-1994, foto) tem relançado o pouco comentado romance Montanha. Trata-se de obra que reflete sobre a politicagem, lobbies, repressão e chantagem num país à beira de um golpe militar. O livro foi publicado originalmente em 1956. Com seu domínio narrativo clássico, Cyro dos Anjos desvela o jogo político que envolve a sociedade. Mesmo passado em Montanha, um lugar fictício, o livro é um quebra-cabeça do período pós-Vargas, em que é possível identificar a trajetória de vários personagens da história brasileira.


Inédito de Joyce

 (Fran Cafrey/AFP)


Todo mundo sabe que Finnegans wake, de James Joyce (1882-1941 - foto), é um dos livros mais difíceis de todos os tempos, com sua fabulosa criação linguística, filosofia e jogos de palavra. Em 1990, surgiu um manuscrito que causou alarde entre os seguidores de Joyce: uma versão mais simples do livro, quase um embrião. O livro, batizado de Finn’s Hotel, chega esta semana às livrarias brasileiras em tradução de Caetano Galindo, responsável pela mais recente versão de Ulysses. Pela Companhia das Letras.

Sem aviso prévio [ Praia do Futuro] - Gracie Santos

Sem aviso prévio
Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, escreve história de amor e descobertas e se inscreve como cinema potente com contornos revolucionários ao tratar a relação homossexual como deve ser, com respeito 
 
Gracie Santos
Estado de Minas 14/06/2014

Os atores Wagner Moura e Jesuíta Barbosa vivem irmãos em conflito no filme de Karim Aïnouz: sensibilidade que emociona e faz pensar   (Coração de Pedra/Divulgação)
Os atores Wagner Moura e Jesuíta Barbosa vivem irmãos em conflito no filme de Karim Aïnouz: sensibilidade que emociona e faz pensar

A polêmica que envolveu os ingressos marcados com o selo de “avisado” em João Pessoa, para quem fosse assistir ao filme Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, merece mais do que as bem-humoradas brincadeiras que circularam pelas redes sociais em defesa do longa. Primeiro, a Cinépolis escorregou, alegando não se tratar de prevenir o público sobre as cenas de homossexualismo masculino, e garantiu que o alerta referia-se à necessidade de apresentação dos documentos para confirmar a meia-entrada. Depois, acabou tratando o caso como isolado e garantiu que não se repetirá. De qualquer jeito, o ocorrido gerou discussões e reações.

Uma coisa é certa: Praia do Futuro, como outras obras da cinematografia recente envolvendo relações homossexuais, veio em momento oportuno. E no caso particular do filme de Karim, a grande sacada é exatamente partir do princípio de que a sociedade está pronta (ou pelo menos deveria estar) para lidar com o fato de duas pessoas do mesmo sexo se apaixonarem e viverem um romance, sem pedir licença, sem precisar de permissão ou aviso prévio. É esse o primeiro grande trunfo do filme, que tem vários outros.

O problema é que ainda que o mundo tenha girado e a humanidade dado muitas voltas, muitos não consigam perceber que “a moral e os bons costumes”, tal como foram desenhados, não cabem mais nas relações atuais. É o conjunto de regras sociais que deve ser revisto e questionado, não a sinopse ou a trama de Praia do Futuro. A sociedade do controle, que aceita (e gosta) de vigiar sem pudores uma casa onde pessoas vazias disputam na TV muita grana para humilhar o outro e serem humilhadas, não quer ser desafiada a enfrentar a realidade. Prefere viver no faz-de-conta. Por essas e outras, é que muita gente queria saber com antecedência que veria cenas de sexo entre um casal gay ou nus masculinos. Ou, mais grave ainda, um dos atores em questão é ninguém menos que Wagner Moura, o eterno capitão Nascimento dos Tropa de elite, símbolo de poder e masculinidade. Logo ele – por que não dizer? –, o herói brasileiro contemporâneo. Assim é que “desavisados” vêm deixando as salas de exibição, perdendo o melhor da festa.

Na contramão de tudo isso, Praia do Futuro aponta para o hoje; o futuro do título é apenas o nome da praia de Fortaleza onde trabalha o salva-vidas interpretado por Wagner Moura (ele sim, ainda bem, deixou seu capitão Nascimento no passado). O personagem não está em conflito com sua sexualidade. Parece bem resolvido e, se não estiver, não é essa a questão fundamental da trama de Karim. O grande conflito de Donato, que move a história, é mais o profissional. Ele tem orgulho de seu trabalho e pela primeira vez foi malsucedido.

Afogado É a perda de um afogado, uma vida que escapa de suas mãos, que o atormenta. E é nesse momento de fragilidade que Donato se envolve com alguém. Ao mesmo tempo em que se sente incapaz para continuar salvando vidas, ele é movido pela paixão (não por acaso pelo homem que era companheiro daquele que “deixou” morrer, elemento que pode – vai entender a psique humana – ter ligação com seu interesse pelo alemão Konrad.). E são exatamente esses dois fatos: a culpa de errar e permitir que uma vida se fosse e essa paixão repentina que injetam energia no lugar em que poderia se instalar a depressão, e que alimentam o salva-vidas em sua busca por si mesmo e pelo novo.

Donato abandona o trabalho e se deixa levar por outro futuro. Tudo isso e muito mais é revelado devagar, que é como o cinema de Karim se desenha, sem pressa, com poucas palavras. O diretor prefere trabalhar com o não dito e com boas interpretações. E também, acima de tudo, com a plasticidade e a força das imagens, de um primor que encanta, embaladas por afinada trilha sonora. A Karim não interessa explicar a quantas anda a relação dos dois amantes um tempo depois. Afinal, podemos nos perguntar (e também imaginar) o que se passou entre eles.

Praia do Futuro tem muitas reticências, pausas que levam à reflexão e à leitura particular da trama. O filme vai ao que interessa, à riqueza de relações verdadeiras, construídas em cima de sentimentos que podem ou não durar, mas que, fundamentalmente, vão deixar marcas e ficar para sempre em algum lugar da vida daquelas pessoas (e nas nossas). Karim escreve sua história simples, mas potente, nas entrelinhas e o filme ganha contornos revolucionários por tratar o amor homossexual como deve, sem amarras e sem a necessidade de ser explicado. Karim não levanta bandeiras, apenas conta história que parece bem real. E talvez seja esse o maior incômodo trazido pelo filme. Afinal, as cenas de sexo são bonitas e, ao contrário do que podem imaginar, não são nada explícitas. São imagens românticas de um casal que se conheceu, apaixonou-se e decidiu viver esse amor que terá lugar especial em suas vidas.

A pergunta que fica é poderosa. Afinal, Donato se perdoou e se encontrou depois do episódio terrível que o marcou profundamente? As pessoas conseguem se perdoar por erros cometidos e se sentem no direito de seguir em frente, tocar a vida e ser felizes? As perdas deixam um buraco que, mesmo não sedimentado, deve pertencer ao passado. Quem não perdoa (o outro e a si mesmo), envelhece, endurece, amarga.

O que claramente se vê em Praia do Futuro é que o mote do filme de Karim não é, como querem pensar alguns, a homossexualidade. O filme não é como telenovelas que procuram discutir (e isso não é demérito) a questão de gênero na sociedade atual. Praia do Futuro não quer saber se o Félix de Mateus Solano pode beijar o companheiro ou se a Marina de Tainá Müller tem o direito de lutar pelo amor de outra mulher. Claro que tais tramas levadas ao ar às 21h são importantes, principalmente quando deixam de lado a visão apenas estereotipada das minorias. Afinal, se todo mundo quer usar o esmalte da Giovana Antonelli, muito mais gente vai ter chance de compreender que ela pode deixar o marido gato para viver outro amor, não é verdade?

Incômodo O que ocorre no filme de Karim, na verdade, e esse é certamente outro incômodo gerado por Praia do Futuro, é que o longa não pede permissão para nada. Parte do princípio de que as pessoas são adultas e vivem no mundo atual. Já compreenderam (e aceitaram) fato inegável do cotidiano: as relações homossexuais são relações como quaisquer outras. Podem ser apenas sexuais; podem também ser românticas; podem também ser bonitas; podem também não ser. Ponto. O que não pode é ter que avisar ao espectador que ele vai assistir a uma história de amor, mas terá que ver dois homens se beijando. Os tempos de censura estão (ou não) enterrados?

Que a censura fique por conta de quem sai da sala de cinema exasperado (não seria bom que essas pessoas se perguntassem o que tanto as incomoda?). Que fique para quem não compreende a poesia de uma história de busca e amor bem contada. Para quem prefere fechar os olhos para ao que ocorre em pleno século 21, nas noites da Praça da Savassi e no mundo, na casa do vizinho ou em sua própria residência, nas novas configurações das famílias. Para pessoas que, independentemente de suas religiões e credos, ainda não conseguiram compreender que não é mais necessário pedir permissão para beijar. As novas gerações (e não as do futuro, mas as de hoje) já escrevem suas histórias de outra forma, ainda que muitos tenham que lutar pela liberdade, exatamente por causa de quem sai no meio da sessão.

É nas histórias escritas hoje que Praia do Futuro se inspira. O filme parte daqui pra frente. Karim evita conversas desnecessárias. Há, é verdade, uma cena em que o irmão provoca Donato, insinuando que ele fugiu do Brasil para viver sua sexualidade escondido da família, na Alemanha. Pode até ser. Afinal, estar num país em que as pessoas não conseguem assistir a um romance que não tenha o “casal margarina” em cena e só aceitem na TV gay estereotipado como mordomo de madame. Será que nos resta pedir licença ao poeta e dizer que a melhor saída é o aeroporto?

Amor Foi o que fez Donato e é o que faz Karim, que roda o mundo com seus filmes. Praia do Futuro é bem maior que as polêmicas que suscitou, que os incômodos que provoca. Trafega ao lado de outros longas importantes da produção recente, que também causaram burburinho: Amor (2013, França, Alemanha, Áustria), de Michael Haneke, e Azul é a cor mais quente (2013, França), de Abdellatif Kechiche. No primeiro, um casal octogenário vive os últimos momentos do que se percebe ter sido uma bela história de amor e cumplicidade. Não há flashbacks que permitam conhecer detalhes do passado dos dois, mas é possível saber, a cada gesto, que eles tiveram como poucos a chance de viver um grande amor e, certamente, fazer seus pactos bons e ruins.

Em Azul é a cor mais quente (que tem tórrida cena de sexo explícito entre duas mulheres, o que é obviamente mais aceito que o envolvimento de dois homens – teve muito marmanjo indo ao cinema ver as atrizes esculturais nuas, sem qualquer incômodo), o casal feminino tem a mesma sorte, encontra o amor. O filme não se limita a abordar as questões de gênero, o preconceito e o bullying que vêm no pacote da opção homossexual. A trama tem interessante discussão sobre até que ponto o amor é capaz de vencer barreiras socioculturais. Independentemente de todos os problemas enfrentados na relação, é possível perceber que a experiência de amor (e não apenas a sexual) vivida por aquelas duas mulheres marcará a vida delas para sempre, da mesma maneira como ocorreu com os octogenários de Amor e com Donato e o alemão Konrad de Praia do Futuro.

Praia do Futuro está em cartaz no Belas 1 às 14h, às 17h40 e 21h30 (Hoje não haverá a última sessão)

A Copa e seu legado

A Copa e seu legado
Nem salvador da pátria nem responsável por todos os problemas, torneio evidencia nossos limites reais. O futebol, entre as exigências do alto rendimento e mercantilização excessiva, pode ser a maior vítima
Rubens Goyatá Campante
Estado de Minas 14/06/2014


Arena Corinthians, em São Paulo: obra necessária para o esporte brasileiro ou pauta afetiva para agradar à torcida do Coringão? (François-Xavier Marit/AFP)
Arena Corinthians, em São Paulo: obra necessária para o esporte brasileiro ou pauta afetiva para agradar à torcida do Coringão?

‘‘A  Copa do Mundo de futebol de 2014 deixará para este país um legado que irá muito além dos estádios de futebol, um legado de infraestrutura e bem-estar para a população”, afirmou, em 2011, o então ministro dos Esportes Orlando Silva. Quatro anos antes, em 2007, em discurso em Zurique, Suíça, na cerimônia oficial de anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou: “Realizar uma Copa do Mundo é uma tarefa imensa, (mas) essa não é uma responsabilidade apenas do atual presidente – que já não serei mais em 2014. No fundo, estamos aqui assumindo uma responsabilidade enquanto nação, enquanto Estado brasileiro”. E prometeu que, além dos jogos, dos estádios, das belezas naturais, o que mais empolgaria na Copa seria “o comportamento extraordinário do povo brasileiro”, pois “o futebol não é para nós apenas um esporte, é mais, é uma paixão nacional”

Iniciada a tão esperada e discutida Copa do Mundo, a questão é: haverá o prometido legado social e econômico positivo?. E a propalada “paixão pelo futebol” dos brasileiros trará o anunciado “comportamento exemplar” do povo? Lança dúvidas sobre isso a lembrança viva da onda de manifestações que varreu o país em junho do ano passado, durante a Copa das Confederações, tendo como um dos motes justamente o descontentamento com a maneira como o evento foi organizado – paira, ainda, a dúvida se tais manifestações se repetirão, com a mesma dimensão do ano passado.

Quanto ao legado da Copa, é difícil mensurar com precisão seus ganhos econômicos e sociais. Os custos e benefícios de uma Copa do Mundo de futebol comportam variáveis complexas e perspectivas e modos de avaliação diversos. Mas é indubitável que, nos últimos anos, tem crescido o investimento em custos e organização de um megaevento como este, e é de se notar que, de 2010 para cá, as Copas não se realizam mais em países ricos, desenvolvidos, mas naqueles em desenvolvimento – 2010 na África do Sul, 2014 no Brasil, 2018 na Rússia, e 2022 no Catar. E já foi decidido que a Eurocopa de 2020 não será sediada em um só país, mas será disputada em 13 deles – é certo que conta para isso a geografia da Europa, um continente de dimensões mais reduzidas comparativamente a outros.

Mesmo com essa demanda crescente de investimentos maciços, a tendência é que estudos e projeções prévios ao evento e de governos e grupos econômicos interessados no mesmo tendam a superestimar as benesses sociais e econômicas (antecipação e aceleração de investimentos em infraestrutura de transporte, turismo, telecomunicações, segurança, geração de empregos) e a menosprezar eventuais dificuldades como a gestão deficiente, as relações promíscuas entre as esferas pública e privada, o desvio de investimentos públicos de áreas mais carentes, a desnecessidade e obsolescência de certas obras em estádios e transportes, entre outros. Ou seja, tentam apresentar a Copa do Mundo como um divisor de águas no encaminhamento positivo do desenvolvimento de um país.

Como regra geral, o impacto social e econômico de uma Copa – ou de uma Olimpíada – será mais positivo quanto mais os investimentos concentrarem-se em obras de infraestrutura e renovação urbana, e menos em estádios, e tais obras devem se pautar pelas reais necessidades – a longo prazo e não somente na época do evento – da economia e da sociedade locais e regionais. A Olimpíada de Barcelona, em 1992, foi o grande paradigma nesse sentido: apenas 9% do investimento destinou-se a instalações esportivas. O restante foi encaminhado a melhorias urbanas que renovaram a metrópole catalã. Além disso, é crucial que haja uma alta capacidade de gestão e articulação dos investimentos, públicos e privados, para se evitar o desperdício e a corrupção.

No Brasil, segundo dados oficiais, mais de 30% do dinheiro (R$ 8 bilhões dos cerca de R$ 25,6 bilhões totais) foi gasto em estádios, inclusive dinheiro público – R$ 3,9 bilhões. E a articulação entre si dos poderes públicos federal, estadual e municipal (os dois últimos os principais responsáveis pela questão da infraestrutura e mobilidade urbana) e entre estes e a iniciativa privada foi marcada por problemas típicos e recorrentes da economia e da política brasileiras: excesso de burocracia, incompetência, privilégio de interesses privados em detrimento do interesse público. Além disso, houve violações dos direitos de famílias removidas para construção de obras de mobilidade e em estádios, e condescendência excessiva nas concessões e monopólios comerciais exigidos pela Fifa, entidade privada organizadora e, sem dúvida, maior beneficiária do evento. Tais concessões contrariaram, em vários pontos, direitos legalmente sedimentados dos trabalhadores e dos consumidores brasileiros.

Se não houvesse tais problemas, a Copa seria, como prometido, um divisor de águas no desenvolvimento social e econômico brasileiro? Para responder, tomemos a questão crucial dos transportes e da mobilidade urbana. Os problemas e distorções da infraestrutura neste âmbito são algo imenso, resultado de décadas de políticas de Estado que privilegiaram a matriz do transporte privado, rodoviário, automobilístico, em detrimento do transporte público e hidroferroviário. Some-se a isso um modelo urbano também privatista, formador de metrópoles que concentram, em suas periferias, populações carentes, e o resultado é que “mobilidade urbana” virou termo da moda porque as cidades brasileiras estão, literalmente, parando, entulhadas de automóveis e motocicletas. Isso sem contar os danos que a economia sofre ao ter a maior parte de sua produção (cerca de 70%) sendo transportada basicamente por caminhões, não raro por estradas ruins ou péssimas.

Já o turismo brasileiro, ao qual a Copa trouxe tantas promessas, certamente receberá um bom aporte durante estas quatro semanas do evento, mas, a longo prazo e de forma sistêmica, dificilmente irá deslanchar com esses gargalos na estrutura de transporte. Um relatório recente sobre competitividade no setor, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, coloca o Brasil em 51º lugar num rol de 140 países. É que, apesar das belezas naturais, da biodiversidade, da pujança e do patrimônio culturais, a qualidade de nossas estradas, portos, aeroportos e ferrovias, assim como a competitividade de preços e a qualificação da mão de obra, deixam muito a desejar.

Uma Copa do Mundo bem gerida poderia, sim, ter um papel importante na resolução de tais problemas, mas não seria ela, por mais importante e bem organizada que fosse, o carro-chefe, a causa principal. Uma Copa do Mundo de futebol não é, em si, panaceia. O fundamental é um projeto de Estado e de país que vise, realmente, ao interesse público e não aos benefícios privados e, dessa forma, responda realmente às carências da sociedade. No bojo desse projeto de Estado é que um evento como a Copa do Mundo deixaria um legado realmente positivo.

Social e cultural Mas se a Copa não é solução de todos os problemas, também não é a fonte de todos eles, como tentam fazer crer alguns. O discurso de que faltarão dinheiro e atenção para a saúde, a educação, segurança e outras obrigações do poder público federal, estadual e municipal, por conta dos investimentos na Copa, é ridículo. Tais obrigações demandam, além de um esforço sistemático e contínuo de organização do Estado, dezenas, centenas de bilhões de reais, muito mais do que foi gasto na preparação do torneio. Ou seja, o legado social e econômico da Copa é algo importante, sem dúvida, mas não é uma questão de vida ou morte para o país.

Alguns veem, entretanto, uma espécie de “legado cultural” traduzido no arrefecimento da “paixão nacional” pelo futebol, comprometida, segundo esse entendimento, pelo descontentamento com a Copa. Mesmo que, nos últimos dias, tenha aumentado o número de bandeiras nos automóveis e nas casas, de ruas enfeitadas etc., há, realmente, certa frieza em comparação aos campeonatos mundiais anteriores, em que a paixão pelo futebol se misturava com o orgulho nacional e o país mergulhava num frisson na esperança de ver a Seleção ganhar mais um título. Agora, essa frieza ocorre justamente quando o campeonato é disputado aqui – ou, quem sabe, exatamente por isso.

Não se deve confundir, contudo, esse distanciamento em relação à Copa – que pode, inclusive, se esfumar com o correr dos acontecimentos – com uma diminuição do gosto brasileiro pelo futebol.

O futebol brasileiro enfrenta ameaças sérias, algumas gerais, estruturais, atinentes ao esporte em nível mundial. A primeira é o perigo de o futebol se aproximar demasiadamente dos chamados “esportes de alto rendimento”, em que o cientificismo, a especialização, a importância da preparação técnica na busca constante da superação a qualquer custo retiram os elementos lúdicos e imprevisíveis do futebol que fazem dele o esporte mais atraente e mais bonito de todos, pois o mais parecido com a vida. A importância irreversível do condicionamento físico no futebol é sintoma desta aproximação – não retirou dele, ainda, a importância da técnica e do talento individual, mas foi fundamental para seu nivelamento.

A segunda ameaça é a dos rumos apontados por sua mercantilização. A mercantilização de algo tão atraente como o futebol é inevitável sob um sistema capitalista e não seria, em si, problema se ocorresse dentro de regras e princípios de lisura e honestidade. Mas o universo futebolístico tem convivido, cada vez mais, com esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, compra de resultados, extorsões. O desafio ético do negócio do futebol é o mesmo dos negócios do moderno capitalismo em geral.

Mas há, além disso, problemas específicos do futebol brasileiro. É lugar-comum dizer que o futebol reflete a sociedade – por ser lugar-comum não deixa de ser verdade. E nosso futebol reflete nossa sociedade na tensa combinação entre a excelência do elemento humano, individual, e a péssima institucionalidade. O nível dos jogadores, e do jogo em si, continua bom, mas a organização que circunda nosso futebol é sofrível. O resultado é que temos, com raras e honrosas exceções, clubes falidos, campeonatos desorganizados, aumento da violência, mídia conivente, ídolos autorreferentes e, sobretudo, dirigentes de péssimo nível, amadores e incompetentes, na melhor das hipóteses, quando não francamente corruptos e reacionários.

Mas talvez o futebol brasileiro seja, como já disse o escritor sobre nosso povo, antes de tudo um forte. Tem resistido a essas ameaças gerais e específicas e, certamente, resistirá ao eventual desencanto – justo ou não – com esta Copa do Mundo. Resta-nos, portanto, prestigiá-lo e torcer por nossa Seleção, sabendo que isso não significa aceitar injustiças, desmandos e manipulações.


Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT – 3ª Região.

Sombras da vida - Livro reportagem sobre o caso do goleiro Bruno

Sombras da vida
Livro-reportagem sobre o caso do goleiro Bruno mergulha no drama humano e na investigação policial que mobilizou o país


Jefferson da Fonseca Coutin
Estado de Minas 14/06/2014

Pés do ex-goleiro Bruno, durante depoimento no Fórum de Contagem: mentiras e revelações     (Marcelo Albert/TJMG)
Pés do ex-goleiro Bruno, durante depoimento no Fórum de Contagem: mentiras e revelações


Nada de perfumaria. Indefensável – O goleiro Bruno e a história da morte de Eliza Samudio, de Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho, é jornalismo de profundidade, daquele que não se vê nos releases e nas coletivas de imprensa. É a apuração em detalhes, sem a preguiça tão comum das pautas de redes sociais. No livro-reportagem, já em segunda tiragem e rumo ao topo dos mais vendidos, o passo a passo de uma tragédia anunciada. Do estrelato de menino pobre à glória roubada por assassinato, a pauta triste traz à luz algumas das muitas sombras do mundo da bola.

Não é de hoje que a não ficção faz sucesso entre os aficionados por bons livros. A sangue-frio, de Truman Capote (1924-1984), contou a história de uma chacina nos Estados Unidos. O autor chegou a passar um ano entre personagens e vizinhos do endereço do crime, morando no vilarejo, palco da tragédia.  Tornou-se um clássico. Uma forma de romance de não ficção, com igual peso na apuração dos fatos, reconstituição da atmosfera e acabamento literário.

No trabalho de imersão do trio de repórteres de Indefensável, no melhor estilo romance policial, personagens em carne e osso e cenários da vida real arrebatam as plateias mais bem informadas. Em cada um dos 10 capítulos, entre um ponto e uma vírgula há algo mais que passou despercebido dos periódicos de plantão. Até mesmo o que já era sabido ganha tratamento diferenciado, com escrita de requinte e estilos que se confundem. Chama a atenção ao longo das mais de 260 páginas a unidade do texto objetivo, cuidadoso e amarrado, com apartes sempre contundentes.

Boas reportagens, de acordo com o talento dos repórteres, podem render bons livros. Temos exemplos no Brasil. Em 1993, Caco Barcelos ganhou projeção internacional com Rota 66, a história da polícia que mata – vencedor do Prêmio Jabuti e de outros tantos na categoria direitos humanos. Em 2004, o jornalista-escritor voltou a vencer o Jabuti com Abusado, o dono do Morro Dona Marta. Nos dois títulos, fruto de excelente trabalho de reportagem, Caco mergulha no submundo de dois temas movediços e continuados no país: ética policial e o tráfico de drogas. Indefensável, com seus autores experimentados profissionais da imprensa, bebe do bom jornalismo investigativo: é para quem não tem medo da notícia.

No elenco de tipos da narrativa de Leslie, Paula e Paulo, mocinhas bisonhas embevecidas de amor e advogados canastrões dispostos a dançar com o vento. Ali, são muitos coadjuvantes a roubar a cena. A amizade cravada na carne e um corpo invisível devorado por cães famintos fazem de Nelson Rodrigues um grandissíssimo amador da vida como ela é no caos da desgraça e do fracasso. Diálogos e frases garimpados de depoimentos aos borbotões para costurar a trama de sequestro e morte que tirou de campo o capitão-astro do Flamengo – hexacampeão brasileiro, na mira de cartolas internacionais.

De ré a mulher apaixonada. Entre tantas particularidades das peças da trama de ascensão, sequestro e morte, o livro-reportagem de Leslie, Paula e Paulo mostra o céu e o inferno de uma figura companheira, mãe dedicada, capaz de quase tudo para ajudar e fazer vencer o grande amor. O amor é piegas. Dayanne Rodrigues do Carmo Souza, absolvida da acusação de sequestro e cárcere privado, é destaque em páginas de paixão, entrega e fé na família – núcleo que batalhou desde menina para construir. Só o romance, os acertos e desacertos, de Bruno e Dayanne daria um filme de final menos infeliz.

“Estava longe de casa, sozinha, sofria calada. Às vezes, Bruno se concentrava no sábado, jogava no domingo e só aparecia na segunda. Perdoei tantas vezes, mas, depois de certo tempo, não aguentei mais”, diz Dayanne em trecho do capítulo dedicado ao surgimento do craque, o “paredão rubro-negro”. Os autores revisitaram Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, para falar do “campinho de grama rala”, tablado para os pés descalços de Bruno, aos 10 anos, “muito magrinho, com cabeça pequena e orelhas de abano”. Quatro anos mais tarde, em 1999, o namoro adolescente: ele, aos 14. Dayanne, com 12.

Foi no município vizinho, pobre de marré deci, que Bruno firmaria amizade para uma vida: Luiz Henrique, o Macarrão. Indefensável seduz. Mesmo com o fim trágico conhecido, o leitor não deve se surpreender se for pego torcendo para outro desfecho. São envolventes as passagens de o goleiro e a mulher, ambos de passado sofrido, juntos, comendo o pão que o diabo amassou pelo sonho de futuro melhor – cúmplices nos trocados para a gasolina em dias de treino no Atlético Mineiro. Por que não um desdobramento de glória para o casal batalhador e os filhos inocentes? A resposta é evidente ao final de descompasso: a vida não é um conto de fadas.

Vítima

Do outro lado da linha, em passagem definitiva pela carreira do “melhor goleiro do Brasil”, a vítima. Em Indefensável, ainda que chamada de “típica ‘maria-chuteira’”, Eliza Samudio é tratada com o respeito que não parece ter encontrado em vida. O livro-reportagem remonta de ponta-cabeça a trajetória da paranaense de Foz do Iguaçu, a partir do seu envolvimento com o ex-capitão do Flamengo. “Aquela noite só passaria a ter contornos dramáticos quase três meses depois, no começo de agosto, quando Eliza confirmou a gravidez”. A mulher estava sentenciada.

Depois de “A vítima”, terceiro capítulo da obra do trio de jornalistas, o ritmo da narrativa é ainda mais cinematográfico, com vários pontos de virada – como ensinou Syd Field, o “guru” dos roteiros em Hollywood, só que na vida real. O sequestro de Eliza e o bebê, assim com o cativeiro e a execução pelas mãos de matador de aluguel, são alinhavados com trabalho admirável de apuração e análise de investigação. Detalhes cruzados, repassados e confirmados por fontes de todos os lados da trama dão conta da “materialidade do fato e a autoria”, expressão tão batida até a leitura da pena dos condenados.

Indefensável trata da sorte de famílias em pedaços, escangalhadas pelo sonho de fama, a qualquer preço, no mundo da bola. Um astro que apagou a própria estrela. Arrebatadora, a obra de Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho traz ainda às páginas em papel off-white sexo, boatos, mentiras e contradições; ameaças e fofocas de presídio; tentativas de assassinato e de suicídio; testemunhas mortas; familiares oportunistas em busca de holofotes e plantel inacreditável de canastrões. Ingredientes para um thriller absurdo de sucesso. Na real, um crime macabro. Lamentável.

INDEFENSÁVEL – o Goleiro Bruno e a História da Morte de Eliza Samudio

. De Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho
. Editora Record, 266 páginas, R$ 32

Acerto de contas [Livro de Paulo Cesar Araújo] - Ângela Faria

Livro de Paulo Cesar Araújo é a defesa bem fundamentada que o jornalista não teve oportunidade de apresentar durante o processo movido contra ele por Roberto Carlos


Ângela Faria
Estado de Minas 14/06/2014
Paulo Cesar de Araújo revelou a importância de artistas como Odair José e Paulo Sérgio para a cultura brasileira     (Bel Pedrosa/Divulgação)
Paulo Cesar de Araújo revelou a importância de artistas como Odair José e Paulo Sérgio para a cultura brasileira


Em 1898, o escritor Émile Zola mobilizou a França com o artigo J'accuse, advertindo os compatriotas sobre erros dos tribunais que levaram à condenação do capitão Alfred Dreyfus por espionagem e alta traição. Deu certo, a justiça foi feita. Com suas 522 páginas, O réu e o rei, lançado recentemente por Paulo Cesar de Araújo, é uma espécie de “Eu acuso!” verde-amarelo. O livro narra os bastidores da batalha judicial que levou à apreensão e proibição da biografia Roberto Carlos em detalhes (Planeta), banida há sete anos das vitrines.

Alegando que a obra não autorizada de Paulo Cesar invadiu sua privacidade e atingiu sua honra, o cantor e compositor moveu dois processos contra ele nas áreas cível e criminal. O biógrafo dedica 50 páginas de seu “J'accuse” à audiência de cinco horas no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista — palco não apenas de uma sessão judicial, mas do epicentro da polêmica que abalaria o Olimpo da MPB em 2013. Frente a frente, “Rei” e “Réu” ouviram o juiz Tércio Pires afirmar que a Editora Planeta poderia até ser fechada. A inviolabilidade da intimidade e da imagem do biografado são garantidas pelos artigos 12, 20 e 21 do Código Civil Brasileiro. Livros dessa natureza só podem ser publicados com autorização do personagem em questão ou de seus herdeiros.

Paulo Cesar chegou a mencionar as garantias constitucionais à liberdade de expressão, mas o juiz avisou: “Não adianta, a situação de vocês é muito difícil”. Tércio Pires propôs um acordo, os advogados da Planeta recuaram diante da ameaça de pesadas multas e o escritor alega ter ficado sozinho, derrotado. Aos prantos, viu reduzidos a pó seus 15 anos de pesquisa. O livro proibido seria recolhido das lojas, banido das bibliotecas. Pascoal Soto, executivo da Planeta, chegou a brincar, sugerindo constar no acordo uma cláusula determinando que a autobiografia de Roberto fosse editada pela empresa.

Encerrada a audiência, começou a tietagem: o astro ganhou de presente o CD Pra te ver voar, gravado pelo juiz com o nome artístico de Thé Lopes. Magistrado, promotores e funcionários do fórum tiraram fotos com o Rei. Porém, o show não terminou ali. Do alto de seus 100 milhões de exemplares vendidos, Paulo Coelho, tão execrado pelos colegas, veio a público advertir, em artigo contundente na Folha de S. Paulo: não estava em jogo apenas a biografia do ídolo da Jovem Guarda, mas o destino de todos os escritores brasileiros. E não poupou a Planeta, responsável pela edição de seus livros no Brasil e em países de língua espanhola.

A Associação Nacional de Editores de Livros (Anel) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) ação direta de inconstitucionalidade questionando as limitações impostas aos biógrafos pelo Código Civil. O julgamento é esperado para este ano. Em 2013, astros reunidos no grupo Procure Saber — entre eles, Chico Buarque e Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento — vieram a público se solidarizar com Roberto e rejeitar mudanças no Código. Logo depois das manifestações de junho, a polêmica “liberdade de expressão” versus “direito à intimidade” caiu na boca do povo. Os (até então) “intocáveis da MPB” se viram expulsos da zona de conforto, acusados de defender a censura que os perseguiu durante a ditadura. O Procure Saber implodiu: RC deixou o grupo, Caetano passou-lhe um pito público. A polêmica ecoou no Congresso: em maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei derrubando a exigência de autorização prévia para publicação de biografias. A matéria tramita agora no Senado.

Popular

O réu e o rei é o advogado de defesa que Paulo Cesar de Araújo não teve naquela dramática audiência na Barra Funda. Autor de Eu não sou cachorro não (2002), obra fundamental sobre a nossa música popular, ele se tornou pesquisador respeitado ao defender a importância dos esnobados Odair José, Reginaldo Rossi, Nelson Ned e Waldick Soriano para a cultura brasileira. Lançada em 2006, a biografia de Roberto Carlos oferece rica análise sobre a trajetória do cantor e compositor, embora não seja um livro tão inovador quanto o ensaio de estreia.

Formado em história e jornalismo, o autor explora competentemente esses dois universos. Seu terceiro livro, porém, não é empolgante como os outros dois, embora seja bacana acompanhar os momentos “Paulo Cesar em detalhes”, em que ele conta sua vida e a saga para entrevistar ídolos da MPB e do povão. É justo que Paulo se defenda, explicando exaustivamente que não invadiu a privacidade do Rei. Neste “Brasil cidadão” meio de fachada, é também oportuno um livro em defesa da liberdade de expressão. Mas acompanhar o longo “passo a passo” de processos judiciais e do quiproquó em torno do Procure Saber é jornada cansativa, sem sabor da novidade. Afinal de contas, a cruzada do biógrafo foi fartamente registrada pela imprensa, foi parar até no Le Monde e no New York Times.

Em alguns momentos, incomoda um certo “complexo de fã” do autor em seu embate com o ídolo de infância. Pode parecer paradoxo para um livro autobiográfico, mas já ficou para trás aquele rapaz humilde vindo da Bahia, encantado em ser recebido por astros para suas entrevistas de faculdade. Não temos aqui uma “vítima” da ira dos deuses de nosso Olimpo musical, mas o respeitado pesquisador. Um sujeito determinado a lutar pelo direito de expressão, obrigado a enfrentar astros ciosos de sua privacidade e céticos em relação à agilidade do Poder Judiciário em garantir seus direitos. Nessa briga boa, saudável para a democracia, não há espaço para “coitadismos”. Se a Planeta abriu mão do autor de seu best-seller em 2007, a poderosa Companhia das Letras mandou para as vitrines o “J'accuse” de Paulo Cesar – munição para lá de útil enquanto os dados ainda estão rolando no STF e no Congresso.

Por falar em Olimpo da MPB, quem rouba mesmo a cena em O réu e o rei é João Gilberto. Paulo Cesar revela ter retomado a relação com o próprio pai depois dos conselhos telefônicos do bruxo de Juazeiro. Spoiler não vale, mas dá para contar: o pesquisador já teve a honra de carregar no colo aquele famoso violão... Graças a seu “biógrafo não autorizado”, Roberto Carlos pôde confirmar que João foi mesmo vê-lo na Boate Plaza, em 1959. O baiano bossa nova entrou discretamente, prestou atenção no desconhecido rapazinho capixaba que queria cantar como ele e gostou do que ouviu. Por incrível que pareça, Brigas nunca mais era o nome daquela canção.

O RÉU E O REI – Minha história com Roberto Carlos, em detalhes

. De Paulo Cesar de Araújo
. Companhia das Letras, 522 páginas, R$ 45

Vida dentro da vida - André di Bernardi Batista Mendes

Vida dentro da vida
Novo romance de Luiz Ruffato, Flores artificiais parte do conhecido artifício do livro dentro do livro, para surpreender o leitor com narrativa recheada de boas histórias, que se oferecem entre a ficção e a realidade



André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas  14/06/2014

Autor do já clássico Eles eram muitos cavalos, Ruffato constrói suas tramas com olhar atento ao homem marcado pelos desafios de seu tempo     (Adriana Vichi/Divulgação)
Autor do já clássico Eles eram muitos cavalos, Ruffato constrói suas tramas com olhar atento ao homem marcado pelos desafios de seu tempo


Autor do aclamado Eles eram muitos cavalos, o mineiro Luiz Ruffato acaba de lançar, pela Editora Companhia das Letras, Flores artificiais. É um livro dentro de outro livro. As cenas começam a se desenrolar de forma inusitada: Ruffato recebe em sua casa a correspondência de um desconhecido. Trata-se de um manuscrito, uma compilação de memórias que Dório Finetto, funcionário graduado do Banco Mundial, redigiu a partir de suas muitas viagens de trabalho. Como consultor de projetos na área de infraestrutura, Finetto percorreu boa parte do mundo numa sucessão de simpósios, reuniões e congressos. Esperto, dono de uma alma ativa, ele reuniu histórias, muitas histórias.

De Beirute a Havana, passando por Hamburgo, Timor-Leste, Buenos Aires e incontáveis lugares mundo afora, Finetto soube, com sensibilidade única, reconhecer a grandeza de pequenos acontecimentos. Cada pessoa é um sol, com luas e estrelas encarnadas. Em suas andanças, este homem singular, mesmo que por alguns momentos, fez parte da vida dessas pessoas. Em outros, foi protagonista involuntário do drama alheio. Às vezes, assistiu a essas realidades quase como de um periscópio.

Foi a partir dessas observações que Finetto compôs seu Viagens à terra alheia, o manuscrito que mandou ao conterrâneo Luiz Ruffato. E é este livro que Ruffato transformou no romance Flores artificiais. Partindo de um esqueleto ficcional, Ruffato – o autor, e não o personagem do próprio livro – irá embaralhar as fronteiras entre ficção e realidade, sem jamais perder de vista a força literária, que é a grande marca de sua obra.

Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, disse: “A minha vida é como se me batessem com ela”, anotou Luiz Ruffato, num bom momento de seu livro, nos finalmentes. O bom poeta Iacyr Anderson Freitas abre a história: “caminho nenhum/ é caminho de volta”. Daí surgem histórias tristes, repletas de idas e vindas, inverossímeis, como a de Robert (Bobby) William Clarke. Daí surge a história de uma mulher fascinante, “magra, mas não muito, cabelos pretos, olhos castanho-esverdeados”, uma professora que transitava cinza num dia a dia banal, sendo feliz dentro de sua mediocridade, que encontra na dança sinais, indícios de um fogo infinito, entre outras aventuras. Luiz Ruffato escreve com domínio, com um prazer que transparece no seu estilo despojado, perto do refinado, mas não menos profundo.

Porque a vida é feita de pedidos e impedimentos. Quando um homem, quando um escritor deixa de ser ele para ser eles, para com todo amor, com todo jeito possível, poder contar plenamente. Só assim. Todo artista, todo bom escritor sofre de luminosidades, sofre de uma lucidez absurda. É o caso de Luiz Ruffato. Estas suas flores artificiais nos levam a enxergar, como se caminhássemos. Ler Ruffato é como chegar perto de si mesmo, é uma espécie de encontro. Todo bom livro tem esse poder de persuasão. Todo bom escritor é também um perfumista. Livro, leitor, escritor, as piores companhias, o melhor bando, a mais perigosa quadrilha, trindade que inicia, pois sem isso não existem outros. Luiz Ruffato sabe como poucos utilizar as armas que inventou.

E este belo escritor ensina que não existem palavras artificiais. Palavra, verbo é dom, de dar e possuir. Luiz Ruffato distribui, como poucos, suas flores líricas. Um escritor, um livro é meio mundo, o leitor completa este carrossel, esta solidão invisível, esse tanto de azuis, que tanto atormentam, que inauguram, poderia dizer céus e mares. É estranho, estranhíssimo, mas escritores gostam de palavras do porte de árvores, tais como arguto, febre, frio, trilhos, sujidades. Cada artista tem as suas fagulhas, os seus periscópios. Somos todos felizes, e nem sequer sabemos dessa farsa maravilhosa. Ruffato ensina suas sutilezas.

Solidão


Ruffato amplia, generoso, sua voz, que reverbera outras vozes. A leitura flui fácil e o leitor acaba se comovendo com os destinos que a vida arma. “Quão irônico é o deus que outros chamam destino…” O leitor torna-se um observador privilegiado. A vida mostra-se é e muito mais que asfalto, terra, caminho e jardim, ela vai para muito além de meros encontros e desencontros. Nesse meio-termo, nesse abismo existe a intransigência e a demanda de almas e corações selvagens por vocação e medo. Essa coisa da “escuridão engolindo as manhãs”. A solidão dos personagens de Flores artificiais se parece com um bicho perigoso que fere e atua, e cumpre exemplarmente sua parte, e cumpre a sua função seguindo a ordem de um acordo firmado sem contratos e assinaturas. Não há negociação possível diante da fúrias das águas dentro dos acontecimentos que forjam perdas e algumas redenções.

Contudo, também existem, não poderia deixar de ser, arrebatamentos, magia, puro movimento. Como no tango. Trata-se da história daquela professora que encontrou um amplo desejo e uma forma luminosa de enxergar a vida por meio da arte. Tango, um par de pássaros dentro de uma solidão a dois, que pode ser fascinante. “Eu contemplava aquele homem e aquela mulher movimentando-se harmoniosos à minha frente e percebia que de alguma maneira eles encontravam-se em outra… outra dimensão… Os corpos estavam ali, compreende?, mas a alma… a alma havia migrado para um espaço sem tempo…”

Por isso, talvez, essa beleza que surge de flores inigualáveis, artificiais, quando não existem previsões de primavera e sementes, quando existe uma música que faz nascer em nós anjos e delícias. Até os bichos gostam de carinho, ainda que venha forrado de distância e plástico. Viver tem lá os seus mistérios. Creio que foi a literatura que inventou a beleza. Por isso, talvez, a importância dos livros físicos, que são carne para fomes saciadas. Literatura é sonho, um outro incêndio: este “presente absoluto”, naqueles “acentos tônicos finais”. Eu nada mais sou do que um misturado de coisas, Luiz Ruffato nada mais é do que uma porção de livros, como Walt Whitman. “Sou contraditório, sou muitos, existem multidões dentro de mim”.

Não parece óbvio. Todo bom livro carrega dentro de suas páginas palavras. Todo bom livro carrega dentro de suas páginas cargas (leves) de um drama único, de todos nós, juntos ou separados. É o ponto de se perguntar: deu certo, em que sentido?. Sim, deu certo, ao ponto de existirem livros, fábulas… e flores artificiais. Uma ideia que existe. A delicadeza às vezes extrapola: aquele que compra, que aceita como simples a existência de flores artificiais, atinge um certo ápice de refinamento e sensibilidade que pode ser ternura. Suspiros que podem, quando muito, significar muita coisa, ou reorganizar, ou implodir, ou salvar muitas coisas, alheias ou próprias, alheias e próprias, sem resignação. Como se fosse, mesmo, um outro tipo de incêndio.

Não é o tempo, é a vida que não para, que nunca parou. Até a mentira pode ser profunda (estão aí os livros e as suas fábulas). Ruffato é dono de uma sabedoria exemplar para ensinamentos: em seu texto, na sua história, ele parte do princípio, viaja pelo meio, e termina no fim (mas fica a saudade de um próximo livro), deixando brechas para continuidades e recomeços.

Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, em 1961. Formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou vários livros, entre eles a pentalogia Inferno provisório, composta dos romances Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus. Eles eram muito cavalos recebeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.


FLORES ARTIFICIAIS

. De Luiz Ruffato
. Editora Companhia das Letras, 152 páginas, R$ 34

TeVê

TV paga

Estado de Minas  14/06/2014

 (Imagem Filmes/Divulgação)

Sessão pipoca


Uma produção brasileira é destaque hoje na programação de filmes da TV por assinatura. É a comédia romântica Mato sem cachorro (foto), com Leandra Leal e Bruno Gagliasso nos papéis principais, que estreia às 22h, no Telecine Premium. No mesmo horário, a HBO exibe o inédito 42: a história de uma lenda, com Chadwick Boseman e Harrison Ford. Outra fita que merece a atenção do assinante é O conto da desobediência, do indiano Buddhadev Dasgupta, também às 22h, no Futura.

Muitas alternativas
no pacote de cinema


No Megapix, quem manda é Vin Diesel, com três filmes em sequência: Velozes e furiosos 4 (20h), A batalha de Riddick (22h) e Missão Babilônia (0h15). Na concorrida faixa das 22h, são outras seis boas opções: Segurança nacional, no Canal Brasil; Tratamento de choque, no Comedy Central; Anjos da lei, no Telecine Fun; Oblivion, no Telecine Pipoca; Guerra ao terror, na MGM; e Os infiltrados, na Warner. Às 22h30, mais quatro dicas: O turista, no Sony; Thor, na Fox; O dia em que a Terra parou, no FX; e Kick-Ass – Quebrando tudo, no Space. E mais: O Código Da Vinci, às 20h, no A&E; Pixote – A lei do mais fraco, às 21h, no AXN; O operário, às 22h10, no Glitz; Bagdad Café, às 23h30, no Are 1; Starsky & Hutch – Justiça em dobro, às 23h45, no Universal Channel; e Seita mortal, às 23h55, no Telecine Action.

Canal Sony fecha a
série (Des)Encontros


Vai ao ar hoje, às 19h30, no canal Sony, o quinto e último episódio da primeira temporada da série (Des)Encontros. E encerra o ciclo com a história de um grande amor à primeira vista. É o que Godô (Warley Santana ) sente quando vê Elisa (Paola Rodrigues) correndo na praia. O problema é que para Elisa, à primeira vista, Godô estava com um baita carrão, elegante, quando na verdade ele é manobrista de um restaurante. E lógico que ele resolve fingir que é rico.

Boas dicas também
nos documentários


Em plena Copa do Mundo, o futebol continua na pauta do SescTV, que reservou para hoje, às 22h, o episódio “Estádio Serra Dourada”, da série Arquiteturas, com direção de Paulo Markun e Sérgio Roizenblit. No canal History, às 12h, vai ao ar o especial Como a terra fez o homem, que analisa influências geológicas nas características do corpo humano. No canal +Globosat, o destaque é Invasões americanas, sobre os aviadores norte-americanos durante a 2ª Guerra Mundial, às 21h. E às 22h30, o GNT exibe Família no papel, em que as diretoras Fernanda Friedrich e Bruna Wagner mostram as dificuldades diárias e o preconceito que casais homossexuais com filhos adotados enfrentam.

Gonzaguinha recebe
justa homenageiam


Uma boa para quem curte MPB: Daniel Gonzaga, Cris Aflalo, Grupo Anima e Bicho de Pé recriam as canções de Gonzaguinha em Mosaicos musicais, às 16h, na Cultura. Já ás 18h, no Cultura livre, a atração é a banda Mombojó. No +Globosat, às 17h, a Sessão Philos apresenta mais um episódio da série The blues, o de hoje com a direção de Clint Eastwood. No Multishow, duas pedidas: um show de Thiaguinho, às 21h; e Lionel Richie no Bonnaroo Festival, às 22h.



CARAS & BOCAS » Dia especial
Simone Castro

Sam Alves vai cantar durante pedido de casamento ao vivo em programa do SBT/Alterosa (Roberto Nemanis/SBT)
Sam Alves vai cantar durante pedido de casamento ao vivo em programa do SBT/Alterosa

O romantismo vai tomar conta do quadro “Quer casar comigo?”, do Programa Eliana deste domingo, às 15h, no SBT/Alterosa. A apresentadora recebe no palco dois casais que mostram pedidos de casamento criativos para surpreender as namoradas apaixonadas. E um deles, DJ Léo e Flávio, que se formou em outro quadro, o “Rola ou enrola”, volta ao palco para dar mais um passo na relação. Um pedido de casamento, realizado ao vivo, contará com a presença do cantor Sam Alves, vencedor da edição 2013 do reality musical The voice Brasil (Globo). E se o assunto é relacionamento, no quadro “Família pede socorro” a conciliadora Ana Canosa tem o desafio de entender a situação de um casal que engravidou no começo do namoro, quando ainda nem tinha certeza do que queria. Hoje, no meio de tantas brigas, a questão é: “Eles estão juntos por amor ou pela criança?’’.

BOLA NA ÁREA E O PRIMEIRO
JOGO DA COPA NO MINEIRÃO


Colômbia e Grécia fazem o primeiro jogo da Copa do Mundo no Mineirão. A partida é hoje e o Bola na área, às 12h25, na TV Alterosa, traz todos os detalhes, mostrando o clima na cidade. Christiano Junqueira, o CJ, vai estar, ao vivo no bar Camisa 12, na Savassi, ponto de encontro da cobertura do Mundial pela Alterosa, bagunçando e aprontando muito com os torcedores. Confira, ainda, os preparativos, em plena Copa, dos times mineiros prestes a embarcarem para excursões: o Atlético vai realizar amistosos na China e o Cruzeiro nos Estados Unidos. Péricles de Souza comanda a mesa-redonda do Bola na área, parceria da emissora com a Rádio Itatiaia.

ATOR SERÁ GAY AMANTE
DA FOFOCA EM IMPÉRIO


Paulo Betti vai interpretar o gay Téo, um colunista de celebridades em Império, novela que vai substituir Em família (Globo) a partir de julho. Em entrevista ao site do autor da trama, Aguinaldo Silva, ele revelou que o personagem é “desmunhecado” e que vive da fofoca sobre os famosos. Ele se estranhará com Cláudio, gay enrustido, papel de José Mayer. Para Betti, eles tiveram um envolvimento no passado e seu personagem fará de tudo para que ele assuma sua homossexualidade. “Ele (Téo) é malicioso o tempo todo, gozando e entregando sempre os outros. O que seria até um comportamento homofóbico. Mas esse tipo de gay existe, acha que todo mundo é gay, e tenta tirar do armário. (...) Acho que o Aguinaldo (Silva) vai defender na novela o direito do gay que não quer se assumir.” O personagem Téo seria vivido por José Wilker, que morreu recentemente. Paulo Betti faria outro papel, Reginaldo, marido de Tuane (Nanda Costa).

BANCADA DE TELEJORNAL E
REVEZAMENTO DE ÂNCORAS


Carlos Nascimento, que voltou à ativa depois do tratamento contra um câncer, e Joseval Peixoto revezam-se no posto de âncora, ao lado de Rachel Sheherazade, na bancada do SBT Brasil. Com um deles a jornalista apresentará o noticiário em três dias semana e com o outro nos dois dias seguintes. “É uma grande generosidade do SBT e principalmente do Joseval e da Rachel permitirem que eu divida o jornal com eles. Tanto do ponto de vista pessoal, como profissional, é uma atitude que jamais esquecerei”, afirma Nascimento. “Eu e o Nascimento somos amigos há muitos anos. Participar de um jornal com ele é uma realização profissional para qualquer jornalista”, comentou Joseval.

 (Paprica Fotografia/Divulgação)


TEMPO DE CINEMA

Depois do ótimo lama Sonan, em Joia rara (Globo), Caio Blat, que estará de volta às novelas em Império, também se dedica ao cinema. No longa-metragem Ponte aérea, o ator interpreta o carioca Bruno, um promissor artista plástico que ainda não teve coragem de investir na carreira e se nega a amadurecer. Os quadros usados no filme são do artista plástico Antonio Bokel. Amigo da diretora do filme, Júlia Rezende, Bokel cedeu alguns trabalhos, como esse da imagem, em que Caio aparece em plena atividade (foto). No elenco, entre outros, Letícia Colin, que vive a publicitária paulista Amanda.

VIVA
Tuco (Lúcio Mauro Filho), numa espécie de “seu passado, presente e futuro te condenam”, em mais um episódio divertido de A grande família (Globo).

VAIA
Davi (Humberto Carrão) é o mocinho de Geração Brasil (Globo) etc. e tal, mas a composição do personagem faz lembrar outros trabalhos do ator. 

O menino no espelho, filme de Guilherme Fiúza inspirado na obra de Fernando Sabino

No tempo dos quintais
O menino no espelho, filme de Guilherme Fiúza inspirado na obra de Fernando Sabino, estreia quinta-feira. Desafio foi criar uma narrativa que emocionasse crianças e adultos 

 
Carolina Braga
Estado de Minas: 14/06/2014


O garoto Lino Acioli dá vida ao personagem criado por Fernando Sabino em seu romance sobre a infância passada em BH (Gustavo Baxter/Divulgação)
O garoto Lino Acioli dá vida ao personagem criado por Fernando Sabino em seu romance sobre a infância passada em BH

Era uma geração que brincava na rua. Rouba-bandeira e pique-esconde eram as diversões da criançada da época, a década de 1930, em Belo Horizonte. Também era comum se divertir subindo em árvores ou explorando o quintal da casa dos avós. São cenas que marcam a infância de Fernando, o protagonista de O menino no espelho e que, de certa forma, criam laços afetivos com muita gente na plateia. Rodado em Cataguases, na Zona da Mata mineira, com Mateus Solano, Regiane Souza e Lino Acioli, o filme estreia quinta-feira, em Belo Horizonte.

“Frequentei semanalmente a casa do meu avô paterno, que tinha um enorme quintal com galinheiro, horta e pomar, com árvores enormes, de mais de 15 metros de altura, nas quais a gente podia subir”, conta o roteirista Cristiano Abud. Em parceria com o diretor Guilherme Fiúza e o produtor André Carreira, da Camisa Listrada, Abud trabalhou na transformação da literatura de Fernando Sabino em roteiro. É daquele tipo de desafio irrecusável, cheio de escolhas delicadas.

O menino no espelho é um romance. Para a equipe do filme, as diferenças de olhar já começam aí. A compreensão é de que a obra é uma coletânea de pequenos contos que narram episódios da vida do pequeno Fernando. No livro, as histórias começam na infância e chegam à puberdade do protagonista. O cinema, nesse caso, não vai tão longe. O filme é mais focado.

“Nunca um livro chega ao cinema ipsis litteris. É sempre uma adaptação, na acepção literal da palavra: moldar a história literária à linguagem cinematográfica. A maior cobrança foi estar atento e aberto às alterações necessárias e não ter medo de realizá-las”, revela. A versão de O menino no espelho que chega às telas reúne algumas estripulias de Fernando aos 10 anos. “Porque a força do livro está aí, no conflito do menino que se torna rapaz, o primeiro amor, os conflitos do fim da infância”, continua.

Se o primeiro desafio foi definir o recorte, o segundo foi responder à pergunta básica: é um filme infantil ou sobre infância?. Aí, falou mais alto o desejo de fazer um longa para todas as idades. “A maior insegurança de todos os envolvidos no desenvolvimento do projeto era acertar a mão no equilíbrio dessa balança – nem pender para um filme para crianças nem para um muito adulto. O desafio era transitar bem por esses dois universos”, diz Cristiano Abud.

Como o roteirista observa, é curioso o quanto, mesmo tendo sido escrito em 1982, o pano de fundo da história não mudou tanto assim. O menino no espelho fala sobre dúvidas, conflitos, emoções e ainda não há tecnologia que tenha dado conta de transformar questões existenciais. Essa característica do livro transposta para a tela é a aposta da equipe para enfrentar as produções focadas no público infantojuvenil. “O roteiro precisava apostar muito nas dúvidas, nos conflitos e nas emoções, que são comuns a todos nós neste período da vida. Já que não temos tanta pirotecnia, o filme se comunica pela força da história e das personagens”, afirma Cristiano.

O autor e seu público



Cena de O menino no espelho: o Estado de Minas como testemunho da história da sociedade da época (Gustavo Baxter/Divulgação)
Cena de O menino no espelho: o Estado de Minas como testemunho da história da sociedade da época

Era um sonho antigo. Mas Bernardo Sabino, filho do escritor Fernando Sabino, imaginava a história de O menino no espelho inicialmente nos palcos. “A gente tem que produzir arte de qualidade para as crianças. Queria fazer uma peça de teatro, ainda penso, mas não estava fechado para o cinema”, conta. É por isso que quando o diretor Guilherme Fiúza fez o primeiro contato para a adaptação do livro o clima foi de alegria geral.

Aliás, todas as vezes em que a família do escritor é procurada por projetos sérios não costuma haver dificuldades na negociação dos direitos. “Os autores não escreveram para os herdeiros, mas para o público. Acho que a maioria confunde isso, querem tirar proveito financeiro de uma obra que não é deles”, avalia. Bernardo afirma não ser esse o caso da famíla. “Tem que facilitar ao máximo a difusão da obra, separar o que é educativo e institucional do que é publicitário”, frisa.

O cinema, no caso, é um projeto comercial. Em paralelo, há diversas iniciativas que têm como função estimular a circulação da obra de Fernando Sabino. É de responsabilidade de Bernardo, por exemplo, o projeto Encontro marcado com Fernando Sabino. Desde 2008, ele já levou exposição com a obra do pai a pelo menos 50 cidades. No ano passado, quando foram feitas as homenagens aos 90 anos de nascimento do escritor, a mostra esteve meses em cartaz na Praça da Liberdade.

Neste domingo, o circuito chegará à região da Pampulha com oficinas, teatro, mostra de filmes, shows, leituras poéticas e outras atividades. A meta é uma só: imortalizar o escritor. “A literatura dele é atemporal. Nessa viagem que faço nas escolas percebo que 70% da obra atinge todas as idades. Qual criança ou adulto não vai rir da história de O homem nu? Atinge todas as faixas etárias”, diz Bernardo.

Ele garante que o mesmo vale para O menino no espelho. Além de ter visto a primeira versão do filme, o herdeiro acompanhou as filmagens em Cataguases. “A interação dos meninos com os atores mais velhos foi o que mais me impressionou. O clima era de descontração total”, conta. Pelo visto, como Bernardo observou, todo mundo ali seguiu a máxima de Fernando: todos eram meninos.

Três perguntas para... Mateus Solano - ator

O menino no espelho é considerado um livro sobre infância e não uma obra infantil. De que forma você acredita que a sensibilidade do olhar de Fernando Sabino está traduzida no filme?
Acho que o filme é mais do Sabino e do menino que ele era. Na parte de trás da edição do livro que tenho tem uma frase dele que o Guilherme (Fiúza, diretor) botou no filme: "Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: o que você quer ser quando crescer? Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino". Fiúza colocou isso no filme. Acho que o filme pode se resumir nisso, ele traz para crianças que não viveram esse tipo de infância, a infância nesse estado natural, da energia, da criatividade. São lugares construtivos.

Em um mundo com tanta tecnologia voltada principalmente para o público infantojuvenil, acredita que o filme é um convite a uma infância diferente?
Sim. Acho que o filme convida tanto pais quanto filhos a pensarem: “Qual infância eu estou vivendo” ou “que infância estou dando para meu filho?”.

Qual a sua memória mais forte de infância?
Eu mesmo. Lembro-me muito de como eu conversava comigo mesmo, de como voltava para casa depois de ir a algum lugar e pensava muito. Sempre pensei muito, sempre conversei comigo mesmo e tinha altos papos comigo. Eu não era solitário, mas de alguma forma dividia comigo mesmo as minhas experiências.

Encontro marcado com Fernando Sabino

Amanhã
10h – Abertura com bate-papo
com Bernardo Sabino e exposição
sobre vida e obra de Fernando Sabino
10h30 – Leitura dramática
com Milo Sabino
11h – Cancioneiro do imigrante,
com Cia Sala B
14h – Apresentação Cia. Gêmeas
15h – Espetaclim, com Paulinho Polika
16h – João Estrela e Gláucio Barbosa (MPB) convidam Bernardo Sabino

Parque Ecológico da Pampulha,
Av. Otacílio Negrão de Lima, 6. 061 (marco zero), e portaria (Toca da Raposa), Pampulha, (31) 3277-7439.

ALMEIDA REIS-Ninguém entende‏

Ninguém entende 
 
É muito de desejar que todos os grandes escritores em língua portuguesa tenham seus textos simplificados para entendimento dos que não leem
Estado de Minas: 14/06/2014


Obrou muitíssimo bem a senhora Patrícia Secco ao conseguir que o Ministério da Cultura, superiormente ministrado pela senhora Marta Suplicy, encomendasse 600.000 exemplares (seiscentos mil) de uma simplificação do conto O alienista, de Machado de Assis. Faturando um real por exemplar, a senhora Secco molha o seu bolsinho com R$ 600.000, importância mais que justa para brasileira que se propõe a melhorar o texto de Machado.

Onde o Bruxo do Cosme Velho escreveu “sagacidade”, Patrícia modificou para “esperteza”, sagacíssima que é, por entender que hoje ninguém conhece o substantivo feminino que entrou em nosso idioma no ano de 1540, do latim sagacitas,atis, de mesmo significado. O contrato com o Ministério da Cultura foi esperto e sagaz, ou sagaz e esperto.

É muito de desejar que todos os grandes escritores em língua portuguesa tenham seus textos simplificados para entendimento dos que não leem. “O raquitismo exaustivo do mestiço neurastênico do litoral”, de Euclides da Cunha, pede “a malemolência do escurinho abilolado tipo Fernandinho”. Fernandinho todo mundo sabe que é o Beira Mar, enquanto beira-mar é litoral; escurinho é mestiço, abilolado serve para neurastênico e a malemolência pode ser a exaustão do raquitismo.

Outra simplificação necessária e mais urgente deve ser na letra do Hino Nacional. “De um povo heroico o brado retumbante” pede simplificação para ser entendido nas arquibancadas, nos gramados, nas ruas: o som da galera. Povo heroico virou galera e brado retumbante ninguém entende, mas o país inteiro sabe que o som retumba, sobretudo à noite nos bares belo-horizontinos.

Machado de Assis e a senhora Secco me lembram episódio que presenciei no Banco do Brasil, onde havia funcionário de pouquíssimas letras, cuja única função era acompanhar na prefeitura o processo do Edifício Visconde de Itaboaí, recebido em pagamento de dívida, imenso prédio na esquina das principais avenidas do Rio. Acontece que o processo estava sumido, como deve estar até hoje.

Nomeado para moralizar o departamento de engenharia do BB, o novo chefe chamou o funcionário, quis saber do andamento do processo e foi informado sobre o sumiço. Perguntou: “É uma datio in solutum?”. E o analfa: “Insolúvel, sim, senhor: ninguém entende”. Donde se conclui que Machado de Assis, sem revisão de Marta Suplicy e Patrícia Secco, é uma datio in solutum, dação em pagamento no português das padarias: ninguém entende.

Equipas

A Copa das Copas redefiniu as equipes de futebol, que em Portugal são equipas. Agora, cada equipa se compõe de 11 jogadores mais seis no banco, médico, massagista, roupeiro, treinador, helicóptero com atiradores de elite, 2.500 soldados do Exército fortemente armados com sprays de pimenta, 62 policiais federais, um batalhão da PM, quatro cães farejadores, uma fragata da Marinha a postos no Atlântico, mesmo que a equipa jogue em Cuiabá, quatro caças da FAB sobrevoando o estádio, 18 motociclistas batedores e a garantia do ministro Lobão, com novas luzes em seus belos cabelos, de que não faltará luz nos estádios.

O artista

Se você gosta da pintura, da escultura, do texto, da arte de alguém, e me permite um palpite, aqui vai: evite conhecer o artista. Limite-se à arte do fulano ou da fulana e não procure saber quem é ou quem foi o artista. Freud (1856-1939) e Dostoiévski (1821-1881) estão entre os melhores e mais elogiados textos da história. Tudo bem: limite-se ao que foi escrito pelos dois e não procure esmiuçar as vidas de um e outro, porque vai encontrar em Freud referência ao relacionamento sexual de Dostoiévski com uma criança e vai encontrar em diversos autores referências ao relacionamento sexual de Freud e Minna Bernays (1865-1941), sua cunhada.

Com os artistas brasileiros contemporâneos, gente que encontramos nas reuniões ou conhecemos das tevês, é recomendável e prudente triplicar a desconfiança. Continue curtindo a arte deles e delas, sem procurar saber como são e o que fazem fora dos livros, dos quadros, dos palcos, dos estúdios.

O mundo é uma bola
14 de junho: faltam 200 dias para terminar o ano e menos de um mês para terminar a Copa. O pacientíssimo leitor já deve ter notado que evito escrever sobre futebol: não é a minha praia. Notícia que não interessa a ninguém é a seguinte: em 14 de junho de 1276, enquanto a corte da Dinastia Sung estava exilada em Fuzhou, por conta da invasão mongol, o jovem príncipe Zhao Shi foi coroado imperador Duanzong de Sung. A Wikipédia faz questão de informar que Fuzhou fica na China, para evitar que alguém possa pensar que fica perto de Montes Claros, MG.

Em 1287, Kublai Khan derrota as forças de Nayan e outros príncipes tradicionais Borjigin no leste da Mongólia e Manchúria. Agora, uma notícia fresca: em 1821, Badi VII, rei de Sennar, entrega seu trono a Ismail Paxá, general do Império Otomano, encerrando a existência do Reino do Sudão.

Em 1965, Paulo VI cria a Diocese de Itabira, no que obrou muitíssimo bem. Consta que Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini está para ser canonizado pelo papa Francisco. Hoje é o Dia Mundial do Doador de Sangue.

Ruminanças
“Onde anda a OAB que não defende a advogada especializada em matar porteiros e ex-companheiros?” (R. Manso Neto).

Roupa suja... Arnaldo Viana‏

Roupa suja...
Arnaldo Viana - arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br
Estado de Minas: 14/06/2014


A Copa do Mundo de futebol está aí. Inevitavelmente. O Brasil, que estreou com vitória, não ganhou mais hospitais, o SUS continua jogando na retranca, não houve investimentos em educação, o transporte público ainda cobra passagem, o governo não distribuiu casas nem terrenos, o metrô não andou um metro sequer e não há um guarda em cada esquina. Mas Eto’o, Iniesta, Messi, Balotelli, Drogba, Klöse, Cristiano Ronaldo, Luis Suárez, Neymar, Rooney e as outras estrelas presentes não têm nada com isso. Então, enquanto o país estiver com a janela aberta para o mundo, por que não dar exemplo de cidadania e dignidade? E deixar para lavar a roupa suja e cobrar tudo depois da Copa, inclusive nas urnas, em outubro? Até lá, por que não curtir dribles, voleios, bicicletas, elásticos, gols espíritas, trivelas, letras, canetas, chapeús, churrasco e cerveja?

Enquanto a bola passeia pelos gramados, nos pés dos craques e pernas de pau, uma notícia local, em primeira mão. Fonte não muito fidedigna dá conta de que a cúpula do América, o Ameriquinha de BH, está pensando em enviar o professor Afonso Celso Raso a Londres. É que chegou aos ouvidos do Coelho a informação de que o atacante Eto’o reconheceu, durante passeio pela orla da capixaba Vitória, que a torcida do Flamengo tem razão: Obina é melhor que Eto’o. A missão do Afonsinho, como os amigos o chamam, seria entregar o melhor ao Chelsea e trazer o pior. Ou seja, deixar lá o Obina e trazer o Eto’o. Quem não toparia um negócio desse? E, se possível, trazer troco, que pode ser um Ramires, um Oscar, um David Luiz ou um Willian. A única dúvida do comando americano é se a torcida concorda.

Os estrangeiros estão descobrindo Minas Gerais. A comida, especialmente o pão de queijo, as cidades históricas, as montanhas, as grutas. Antes de o Brasil abrir a Copa, um gringo passeando pelas ruas de BH perguntou: “Why the stores are siding with? (Por que as lojas estão cobertas por tapumes?)”. A resposta saiu de pronto: “Porque somos tímidos. Mineiro é culturalmente tímido (Because we are shy. Miner is culturally shy)”. Quarteirão à frente, outra pergunta do gringo: “And banks (E os bancos)?”. Resposta óbvia: “É para esconder os lucros (Its to hide the profits)”. Compreensível. Ganhos de 100% ao ano numa inflação projetada de 5,98% não é coisa de se mostrar a estrangeiro, uai!

Pergunta que se faz por aí é: quem vai ganhar a Copa? O Negão aí de baixo consultou especialista em tarô, jogador de búzios, adivinhos, cartomantes, mães de santo, polvos, bruxas, feiticeiras, pitonisas, ciganas, palpiteiros, pitaqueiros, fuxiqueiros e conseguiu escalar quase todo o time campeão: Jérôme Valcke (secretário-geral da Fifa), Ricardo Trade (CEO – chief executive officer do comitê Local), Sthephen Sulivvan (jornalista editor do site da Fifa), Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF, que trouxe a Copa ao Brasil) e Lula (que será lembrado como o presidente da República que endossou a ideia de Ricardo Teixeira); Joseph Blatter (presidente da Fifa); José Maria Marin (atual presidente da CBF e presidente do Comitê Organizador Local) e Marco Polo del Nero (eleito para herdar a “boquinha” de Marin); Bebeto (ex-jogador e ex-membro do Comitê Local), Ronaldo Fenômeno (Comitê Local) e, e, e… o último nome o Negão deixa a cargo dos leitores (e ele tem alguns). A propósito, chief executive officer é a…

Pergunta do Negão 1
: Vandalizaram a cultura. Quebraram teatro, cinema, apedrejaram biblioteca e ainda falam que querem educação? Eu, hein?

Pergunta do Negão 2: Correu anos até o Supremo Tribunal Federal negar recurso impetrado por um juiz do estado Rio de Janeiro exigindo ser chamado de senhor e doutor pelos funcionários do prédio no qual mora. Fala sério, magistrado! Folgado o excelência, não?

Felipe VI, rei de Espanha‏

Felipe VI, rei de Espanha

Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional
Estado de Minas: 14/06/2014



Sucessor indicado pelo Generalíssimo Francisco Franco e empossado em novembro de 1945, dois dias após a morte por causas naturais do ditador que ao longo de três décadas comandara a Espanha, Juan Carlos I reinou até abdicar do trono 39 anos e meio depois, em 2 de junho. Felipe VI de Borbón assume, aos 45 anos de idade, um legado quase tão desafiador quanto o do pai, que – nascido na Itália e criado em Portugal – à sua época teve a missão de transformar o país em uma democracia, ao lado de Sofia, a confiável e reservada aristocrata vinda da Grécia. Agora, a nova rainha é Letícia, uma tranquila e plebeia divorciada, ex-âncora de TV e com um aborto feito numa época em que a prática era proibida. O país tem uma longa tradição monárquica, mas viveu dois períodos republicanos exemplares, um em 1873 e 1874, outro mais recente, de 1931 a 1939, derrubado por Franco na sangrenta guerra civil espanhola que deixou mais de meio milhão de vítimas.

O legado da crise econômica, que se estendeu de 2008 a 2012, são os atuais 6 milhões de desempregados (26% da população ativa), mas este não é o único problema da nova Coroa. Talvez o maior deles seja manter a unidade nacional. A federação espanhola divide-se em 17 comunidades (estados) autônomas e duas delas – Catalunha (a mais rica, onde está Barcelona) e o País Basco – forçam a separação. O plebiscito catalão está marcado para 9 de novembro próximo. Em Bilbao, o ETA, sigla do movimento Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade), em outubro de 2011, decidiu pelo fim definitivo da luta armada, mas reafirmou o direito basco à independência.

A grande discordância não é sobre o conteúdo democrático do regime e sim sobre a sua forma. Os espanhóis discutem se desejam uma monarquia como a sueca, uma república como a Síria ou continuam com sua atual estrutura de um “país europeu normal”, uma democracia parlamentar cujo atual presidente (equivale ao posto de primeiro-ministro) é Mariano Rajoy, do PP – Partido Popular, conservador. O cenário político não é favorável a qualquer dos partidos tradicionais. Nas últimas eleições nacionais, três anos atrás, o PP e o PSOE (centro-esquerda), 1º e 2º colocados, obtiveram os votos de apenas 53% dos eleitores. Quase todo mundo quer formar um novo partido, local ou nacional. Desde que os Indignados levaram 8 milhões de pessoas às ruas entre maio e dezembro de 2011, a cada dois dias um novo agrupamento pede sua inscrição à corte eleitoral. O recém-criado Podemos, que propõe nacionalizar os bancos, devolver ao sistema público os hospitais privatizados e reduzir os gastos militares, acaba de obter cinco cadeiras no Parlamento Europeu agora renovado.

A questão migratória é outra preocupação sempre latente. Os 197 mil estrangeiros que viviam na Espanha em 2008 transformaram-se nos 5,7 milhões de hoje. A maioria é do Leste Europeu, mas 19% vêm da África do Norte e subsaariana, forçando continuamente as barreiras em Celta e Melilla, onde, além das profundas valas divisórias, malhas “antitrepa” (redes metálicas para impedir os invasores de segurar e escalar) e a soldadesca lutam dia e noite contra hordas de invasores que fluem via Marrocos.

Juan Carlos só ganhou o respeito dos súditos quando em 1981 impediu o golpe de Estado orquestrado pelo tenente-coronel Antonio Tejero. Depois viu a Espanha consolidar-se economicamente, ao ponto de se tornar o segundo maior investidor na América Latina, região que visitou inúmeras vezes. Numa delas, durante cúpula iberoamericana em Santiago do Chile, irritado com Hugo Chávez que não cessava de interromper o discurso do então primeiro-ministro José Zapatero, gritou-lhe o famoso “por qué no te callas?”. Felipe VI, cuja posse ocorre dia 19 de junho, não tem carisma. É visto como um homem discreto, sério e bem preparado, sem participação nos escândalos em que se envolveram o genro do rei e outros membros da família real. A aposta é de que será um rei bem mais profissional, ou seja, exatamente aquilo que a Espanha atualmente mais necessita.