domingo, 23 de junho de 2013

Quadrinhos

folha de são paulo
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
BIFALAND, A CIDADE MALDITA      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS

GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE
HORA DO CAFÉ

Acordes dissonantes na avenida principal

folha de são paulo ESPECIAL PAÍS EM PROTESTO
Dos 20 centavos na passagem ao saco sem fundo das insatisfações
RODRIGO RUSSO
RESUMO Ao sair às ruas para reivindicar redução nos preços do transporte coletivo, o Movimento Passe Livre catalisou demandas sociais variadas. A adesão multitudinária que parecia benéfica resultou em agenda confusa, como já se vira na Espanha e nos EUA, e em violência; manifestantes e analistas repassam os fatos da semana.
Eram quase 20h de quinta-feira, 20 de junho, quando, na esquina da avenida Paulista com a alameda Joaquim Eugênio de Lima, integrantes do Movimento Passe Livre (MPL) se questionavam sobre o que havia acontecido com os protestos da semana.
"Tive um mau pressentimento antes da manifestação de hoje, só tinha contado para você", afirmou uma jovem de cabelos curtos e olhos claros à amiga, preocupada em localizar outros companheiros pelo celular. "Meu, olha o que aconteceu", disse outra garota.
Um rapaz que escondia a camiseta do Passe Livre sob uma jaqueta preta lamentava que os protestos tivessem saído do controle e fugido completamente das pautas originais: a revogação do aumento na tarifa e a própria discussão sobre sua gratuidade.
Naquele momento, porém, a preocupação maior era com a agressão aos manifestantes que portavam bandeiras de partidos políticos. Acuados por quem protestava contra sua presença na avenida Paulista, viram-se obrigados a sair da marcha e virar à direita na altura da alameda Campinas --alguns integrantes do Passe Livre também deram a caminhada por encerrada nesse momento.
Outra jovem, formada em história pela USP --como a maioria do grupo--, relembrava ter percebido diferenças ao longo das três manifestações convocadas pelo MPL durante a semana. "A gente viu que estava dando uma guinada para a direita, que muitos coxinhas' estavam vindo para cá, mas não imaginou que isso aconteceria. Como é que se pode pensar em expulsar pessoas só por empunharam bandeiras de partidos? Preferiam viver em ditaduras?"
Enquanto conversavam, as pessoas do grupo vestiam casacos para ocultar as camisetas do movimento, que, até ali, usavam com orgulho --afinal de contas, a pressão do grupo fora bem-sucedida no objetivo principal de revogar o aumento da tarifa de ônibus, trens e metrôs de R$ 3 para R$ 3,20 em São Paulo.
O rapaz de jaqueta preta avaliava se a manutenção do protesto mesmo depois do sucesso tinha sido uma boa ideia. "A gente criou uma coisa imprevisível, que não tem como controlar", lamentava uma das meninas.
O grupo debatia a melhor forma de se deslocar até a estação de metrô mais próxima sem criar novas confusões e passava os acontecimentos em revista. Consideravam a conveniência de evitar, por um tempo, postagens no Facebook, além de outras hipóteses para ação no curto prazo.
CONTROLE No dia seguinte aos protestos, Erica de Oliveira, 22, estudante de história da USP e integrante do MPL, conversou com a Folha: "Estamos em avaliação. Consideramos uma vitória do movimento a redução da tarifa, mas a coisa degringolou um pouco. Em movimentos de massa, sempre há o risco de perder o controle. Nossa pauta é o transporte, e continuaremos na causa". O Passe Livre, um movimento horizontal e que não tem lideranças declaradas, afirmou em nota na noite de sexta que seguirá na luta pela tarifa zero.
Em análise sobre o movimento Ocupe Wall Street --que tomou as ruas de Nova York em 2011, com protestos inicialmente voltados contra o sistema financeiro que se alastraram pelos EUA, com repiques em outras cidades do mundo--, o pesquisador e arabista David Dietz, da Universidade Georgetown, avalia que a falta de líderes pesou contra o movimento.
"O fracasso da liderança do Ocupe foi não assumir a liderança. Nos últimos tempos, os acampamentos tinham mais sem-teto, hippies e anarcopunks que manifestantes originais. Faltavam lideranças com quem a gente comum' pudesse se identificar. E lideranças dispostas a trabalhar dentro do sistema. Poderia ter sido criado o terceiro grande partido americano, mas isso não aconteceu", conclui o pesquisador, que passou os últimos dois anos e meio estudando o Ocupe e as revoluções árabes.
15M Outro movimento popular que guarda semelhanças com os protestos no Brasil aconteceu na Espanha, em maio de 2011. O grupo de jovens intitulados de "indignados" passou a acampar em praças públicas a partir de 15 de maio --o grupo ficou conhecido como 15M em razão da data.
O filósofo Gonçal Mayos, professor da Universidade de Barcelona, acompanhou de perto o movimento na praça Catalunha, região central da cidade catalã, onde chegou a dar aulas para os jovens do 15M.
O professor avalia que, como o 15M ou a Primavera Árabe, os protestos no Brasil mostram uma enorme capacidade de formas novas e eficazes de comunicação. "Elas surpreendem o poder, os políticos e as administrações, despertando-os de suas rotinas partidárias'.
Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e simpático ao MPL, avalia a mudança nos protestos.
"Até a quinta-feira, 13, o movimento era concentrado. Não ouvi uma profusão de pautas. Creio que a coisa mudou por duas razões: uma reorientação da imprensa sobre a cobertura dos protestos e, principalmente, a capa da revista Veja' incitando a profusão de pautas. Por alguma razão, isso encontrou eco nas ruas e tivemos a mudança das manifestações."
Nos três atos da semana seguinte, ocorridos na segunda, na terça e na quinta, o número de pessoas que compareceu às ruas cresceu de forma significativa. O professor manifestou, em redes sociais, a preocupação de que o movimento fixasse claramente sua demanda pelos R$ 0,20 a menos na tarifa de transporte coletivo.
Em Nova York, a proliferação de causas abraçadas pelo Ocupe fez com que o movimento perdesse foco, na opinião de Dietz. "Eram 5.000 pessoas com 500 bandeiras diferentes, da legalização da maconha ao casamento gay, da mudança climática ao feminismo. Todas boas causas, com certeza. Mas o ataque aos resgates bilionários aos bancos se perdeu no meio de tanta bandeira."
A estudante Erica, do MPL, aponta outra razão para que, aqui, tenha se dado a ampliação da participação popular: a desmesurada violência policial, inclusive contra jornalistas. "As pessoas ficaram comovidas a partir dos episódios de agressão, ninguém esperava o que aconteceu. Até ali, o que movia as pessoas era a repressão nas ruas, o caos em que se vive, mas a isso se acrescentou a própria repressão nos atos."
Dietz lembra que "a reação violenta da polícia sempre aumenta os movimentos. Nos anos 60, até quem era a favor da Guerra do Vietnã, protestou por causa da violência contra os garotos. Hoje nossa polícia é mais sofisticada e sabe controlar protestos e multidões sem provocar a repetição das cenas dos anos 60. A polícia só reprimiu o Ocupe quando o movimento já murchava, em dezembro". Nesse ponto, a atuação da polícia brasileira não guardou semelhanças com a dos Estados Unidos, sendo mais próximo do que aconteceu em Barcelona.
Os protestos na cidade cresceram quando a polícia catalã tentou expulsar à força os manifestantes da praça no fim da manhã de 27 de maio, com 121 feridos e imagens de manifestantes ensanguentados segurando flores. Naquele fim de tarde, o que estava confinado a poucas centenas de manifestantes tomou corpo e reuniu 12 mil pessoas em um panelaço de mais de 40 minutos.
No caso brasileiro, Ortellado crê que mesmo as pessoas que aderiram aos protestos após a violência policial e a convocação da imprensa também reivindicavam prioritariamente a redução da tarifa, e que havia um grupo político organizado --o MPL-- negociando com o poder público. "Isso foi uma sorte." Essa adesão, de acordo com o professor, beneficiou a bandeira da tarifa proposta pelo MPL, que obteve o objetivo desejado: na quarta-feira, 19, o governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo revogaram o aumento.
Ainda assim, decidiu-se manter a passeata programada para o dia seguinte, no que Erica pensava ser um ato para celebrar a conquista. Não foi bem assim.
MANIFESTAÇÕES Dizer que a Paulista foi palco de uma manifestação na quinta-feira (20) é impreciso. Foram muitas as manifestações que aconteceram na avenida a partir das 17h. Três grupos se distinguiram: pessoas que criticavam partidos e pediam mais verba para educação e saúde, os integrantes do MPL ou dos partidos de esquerda e, mais para o fim da noite, uma reunião de anarcossindicalistas.
Às 17h05, um grupo que bradava "o povo unido não precisa de partido" rumou no sentido Paraíso da avenida --a concentração era próxima à esquina com a rua da Consolação. Cartazes criticando a corrupção e pedindo hospitais e escolas no "padrão Fifa" eram recorrentes. Também fez muito sucesso entre essa multidão o lema "Copa é o caralho; educação, saúde e trabalho". Bandeiras nacionais e camisetas da seleção brasileira eram vistas por todos os lados.
Para Renato Janine Ribeiro, professor titular de filosofia da USP, o veio nacionalista não é um problema. Aliás, é uma qualidade. "O seu jornal não gosta do nacionalismo, nunca foi uma coisa de que ele goste, pelo menos nas últimas décadas", diz Janine Ribeiro.
"Mas o nacionalismo é o amor pela pátria, está presente nos movimentos de Diretas-Já, no movimento contra o Collor. As cores nacionais têm sido uma constante de admiração do país. Não vejo no nacionalismo a potencialidade de outra coisa. É claro que o nacionalismo é suprapartidário e apolítico. E é claro que o nacionalismo entregue a si próprio pode gerar o pior, o ódio ao estrangeiro. Mas o Brasil tem uma tradição muito grande de acolhimento da diferença", avalia.
Após a saída do primeiro bloco, o MPL preferiu aguardar um pouco e só deixou o local 20 minutos mais tarde, às 17h25. Logo em seguida ao seu grupo estavam os militantes e simpatizantes de partidos e agremiações de esquerda, como o movimento jovem do PSOL, o PCO, PCB, PCR e o PT, que se mostraria de longe o maior alvo de manifestantes contrários a partidos. Atrás desse bloco, a massa voltava a se parecer com o grupo que partiu inicialmente, com demandas mais difusas.
Desde o início, ficou claro que esses grupos seriam foco de problemas. Por volta das 17h40, diversos manifestantes gritavam que as agremiações eram "oportunistas" e compostas por "mensaleiros". Alguns tinham cartazes como "o po(l)vo não é Lula".
Havia pessoas mais exaltadas dos dois lados. "Fora petistas" eram contrapostos a "Fora tucanada" --embora não houvesse cartazes do PSDB à vista.
A bandeira principal do MPL nessa marcha, em vez de ameaçar com dizeres como "Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar", trazia o pedido "Por uma vida sem catracas". O que se via a poucos metros disso já mostrava que, mesmo sem catracas, a convivência urbana pode não ser fácil.
Uma guerra de palavras de ordem tomou conta da marcha. Aos gritos de "sem partido", os manifestantes respondiam com "Sem censura, acabou a ditadura" ou com "sem fascismo". A maior parte do público então retrucava: "Puta que o pariu, abaixa essa bandeira e levanta a do Brasil".
Beatriz, 23, estudante de ciências sociais da USP, chorava ao lado da amiga, Marina. A razão? "Esse fascismo é assustador. Não tenho partido, mas participei de todas as manifestações do MPL, e os partidos estavam ali para apoiar. Sofri com as bombas em um deles. Agora querem vir aqui e dizer como se deve protestar?"
Kalime Najn, 24, economista e com o rosto pintado de verde e amarelo, discordava. "Sou contra partidos. Eles estão se aproveitando, usam o protesto como marionete e depois vão usá-lo a favor deles. Sou a favor de uma reforma contra todos os partidos".
Em sua primeira passeata na série iniciada na semana passada, Najn se disse motivada por uma única razão: "Meus direitos. Li um cartaz e não poderia concordar mais com ele: direitos humanos para humanos direitos". Depois de morar no exterior, a economista decidiu que era hora de exigir o mesmo padrão de qualidade em sua pátria.
Um pouco à frente, dois homens negros discutiam na frente do prédio da Fundação Cásper Líbero. "Irmão negro, você não pode me censurar. Sou contra usar essas bandeiras aqui, é um erro", pediu um deles. "Isso é fascismo, é repressão", retrucou o outro.
SEQUESTRO Para Ortellado, "houve um movimento de sequestrar a mobilização popular", em processo similar ao ocorrido na Argentina em 2002, quando a população conseguiu destituir o presidente Fernando De La Rúa.
Os gritos iniciados pelo Passe Livre, no ponto em que liderava a passeata, eram rapidamente transformados: o "vem pra rua, vem, contra a tarifa" tornava-se "vem pra rua, vem, contra o governo" em questão de minutos.
Na opinião do professor, há três pontos de contato entre o movimento argentino e o que se viu na semana passada: a ojeriza aos partidos, a ideia de unidade em torno da bandeira nacional como símbolo de civismo, de respeito à coisa pública, e as manifestações populares de rua.
De fato, redes sociais estão repletas de convocações. Já há previsão, para o dia 10 de julho, de uma "Marcha da Família com Deus, em Defesa da Vida, da Liberdade e da Democracia, contra o Comunismo". Antes disso, há a organização de uma greve geral --que recentemente foi instrumento comum de pressão popular na Grécia durante a crise econômica-- para o dia 1º de julho. "Vamos mostrar ao governo que quem faz um país é o povo, e não os políticos", diz o texto da convocação no Facebook.
Durante a semana passada, o grupo de hacktivistas Anonymous divulgou um vídeo em que apresentava cinco causas para serem encampadas pela população: o arquivamento da PEC 37, sobre o poder de investigação do Ministério Público; a saída de Renan Calheiros da presidência do Congresso; a investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa; a criação de uma lei que trate casos de corrupção de políticos como crimes hediondos; e o fim do foro privilegiado.
Muitos dos que foram à Paulista na quinta-feira já anunciavam a adesão às causas. Os integrantes do MPL não gostaram da mudança no perfil da manifestação. Erica de Oliveira lamentou as pautas conservadoras: "Isso ficou mais claro depois que conseguimos a vitória na revogação do aumento, extravasaram algumas causas".
Em conversa durante o protesto, uma das garotas ligadas ao movimento criticava o vídeo do Anonymous: "É muito fácil escolher causas como punir corrupção na Copa. Quem vai ser contra isso?".
O crítico literário Alfredo Bosi, referência para a militância de esquerda no país, tem dúvidas sobre o futuro das manifestações: "Como vai ser de alguma maneira dirigida essa massa? É imprevisto, você pode tanto ficar em reivindicações pontuais, contestar o caráter tecnocrático das decisões, como foi o caso da tarifa em São Paulo, ou então isso poderá ir longe".
Bosi, porém, evita alarme quanto ao direcionamento ideológico num futuro próximo: "Eu não veria uma coloração fascista, uma manipulação, não me parece, pelo menos nesse grupo que iniciou as manifestações, o Movimento Passe Livre. Não me parece que ele tenha qualquer conotação fascista, paramilitar. Se isso ocorrer, será por obra de outros grupos e outras conjunturas. O núcleo está muito distante dessa coloração".
SEM VIOLÊNCIA Quando a passeata se aproximou do prédio da Fiesp, que ficou boa parte da noite iluminado em verde e amarelo e exibindo a bandeira do Brasil, os ânimos se acirraram entre os grupos. Os partidos de esquerda, que ocupavam a faixa da direita, foram acuados pelos demais manifestantes, que estavam na pista esquerda. Uma bandeira foi queimada, e até gás foi lançado contra os integrantes desse grupo. Os gritos de "sem violência" recorrentes em protestos anteriores foram ignorados nesse momento. Os integrantes de agremiações políticas desistiram de prosseguir; houve um grande aplauso.
Ortellado acredita que a extrema-direita presente ao protesto estivesse provocando a população em geral a atacar, tentando ressignificar a passeata. "Quem de fato agrediu foram esses grupos".
Erica de Oliveira considerou um absurdo que manifestantes tentassem agredir outros manifestantes. "Nós repudiamos esse tipo de ação, queremos o Estado democrático de Direito". A estudante, porém, separa a violência entre os manifestantes dos atos de depredação e saques. Para ela, não lhes compete julgar esses episódios: "As pessoas vivem uma opressão".
Em nota divulgada na sexta, o MPL refutou a crítica da população de que os partidos eram oportunistas: "Oportunismo é tentar excluí-las [as organizações] da luta que construímos juntos". Para quem acompanhou a cena, portar bandeiras partidárias não parecia nada oportuno, sendo inclusive necessário que os manifestantes se organizassem em cordões de isolamento, diversas vezes rompido.
A reação contra aqueles que portam bandeiras partidárias, na opinião do filósofo Mayos, vem da profunda vontade da maioria dos manifestantes de não ser manipulados por partidos e interesses concretos. "Há uma rejeição profunda a partidos e sindicatos porque são estruturas hierárquicas e disciplinadas". Uma exigência muito notada é recusar todo aquele que não vá simplesmente como cidadão em total igualdade com os outros.
"Existe a consciência de que, se o clamor popular se identificar com um ou poucos partidos, perderá apoio popular, autenticidade, se moldará com interesses particulares e corruptelas. E não é isso que se quer."
Para o professor catalão, há grande dualidade, tanto nos indignados espanhóis quanto nos manifestantes brasileiros, quanto à participação partidária. "Muitos são aprendizes em política ou gente que até agora estava pouco politizada, mas que agora percebeu ter forças para exigir ser levada em conta em questões que afetam sua vida cotidiana: transportes, corrupção, ineficiências e contradições do rápido desenvolvimento brasileiro", elenca.
Por outro lado, muitos são "velhos lutadores políticos de várias causas que se sentem revitalizados e trazem o saber fazer'. Na Espanha, diz ele, "eram lutadores antifranquistas, ecologistas, soberanistas"; no Brasil, seus equivalentes seriam, "gente que viveu/sofreu na ditadura ou que participou de movimentos de ocupação de terras".
SINAL POSITIVO Antes e depois da manifestação, as estações de metrô da avenida Paulista eram palco da empolgação de quem comparecia à passeata. Por volta das 22h, as pessoas se deslocavam na estação Consolação aos gritos de "Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor".
Para Mayos, "as enormes, interclassistas, majoritariamente pacíficas e cívicas manifestações atuais no Brasil são um sinal positivo. Os protestos mostram que as gerações mais jovens e a classe média querem tutelar cada vez mais de perto a política e o governo".
O professor acredita que a maior parte das demandas brasileiras, apesar de dispersas, é muito factível: "Desenvolvimento mais equilibrado e justo, menor corrupção e mais eficiência administrativa, reconhecimento de necessidades cotidianas, que são reprimidas na pobreza mas que são muito importantes e que são permitidas pelo grande crescimento da economia do Brasil".

Memórias que viram histórias - Randolfe Rodrigues

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Tempos de rua
São Paulo, 1992
RANDOLFE RODRIGUESNesta semana, meu filho Gabriel, 18, me telefonou informando que estava organizando os amigos da universidade para uma manifestação em Macapá. Empolgado, ele me contava da expectativa de a passeata "bombar" e do ânimo da sua geração na rua. Não resisti e, segurando as lágrimas, respondi: "Menino, aguardei 20 anos para que a sua geração chegasse, ainda bem que esperei".
Reportava-me aos episódios do ano de 1992. Ainda estava engatinhando a mobilização para retirar Fernando Collor de Mello da Presidência da República, e eu estudava na Universidade Federal do Amapá. Eu, com outros estudantes, lutava para retirar do cargo a reitora da universidade, devido a posturas profundamente autoritárias.
Após a primeira manifestação contra a reitora, o vice declarou: "Estes meninos estão malucos, querem tirar a reitora. Daqui a pouco vão achar que podem tirar o presidente". Paralelamente às mobilizações contra a reitoria, caminhava a luta pelo impeachment aprovada no 42º Congresso da UNE, ocorrido em Niterói no julho anterior. Em 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputados aprovou o impeachment de Collor.
Nós não perdemos a oportunidade de devolver a provocação e produzimos uma faixa com os seguintes dizeres para afixar no saguão da universidade: "O presidente já foi, agora só falta a reitora". Três meses depois, por causa das mobilizações, o Ministério da Educação demitiu a reitora e nomeou um novo reitor que, dois anos depois, convocou novas eleições para reitor da Unifap.
Na história recente do Brasil, esta foi a segunda onda de mobilizações cidadãs. A maior delas foi a campanha por eleições diretas para presidente, que colocou milhões de brasileiros nas ruas em 1984. Essa primeira onda tinha objetivos claros: reconquistar a democracia e pôr fim ao regime militar. Mas também estava presente um conjunto de desejos e esperanças de melhoria de vida.
Sou o resultado direto do encontro entre a primeira e a segunda onda de manifestações. As mobilizações para retirar do cargo o primeiro presidente eleito democraticamente pós-1964 foi também grandiosa. E a troca era uma demonstração de que o povo queria democracia, mas exigia respeito às suas reivindicações e bom uso dos recursos públicos.
Vinte e um anos depois das memoráveis mobilizações pelo impeachment, vejo a juventude voltar às ruas e mostrar a sua indignação. Há uma frustração com o modelo de democracia oferecida ao povo brasileiro. Esta geração nasceu na democracia e cresceu confiando que era suficiente eleger representantes e esperar que os mesmos melhorassem suas vidas.
As condições de existência, representadas pelo caos na saúde, precariedade dos transportes e má qualidade da educação e a insegurança nas cidades compõem o caldeirão que mobiliza as ruas.
Não é possível definir como será esta terceira onda de mobilizações da história nacional, ela se apresenta muito mais espontânea que as precedentes. É verdade que a pauta de reivindicações ainda é ampla e difusa e que seus atos não estão sendo organizados pelas entidades da sociedade civil e carecem de lideranças claras.
É uma nova experiência mobilizatória. É como se tivesse sido aberta uma panela de pressão e de dentro saíssem todas as demandas não resolvidas e as insatisfações com a forma de governar o país. Em uma semana forçaram a redução dos valores das tarifas de transporte em quase todas as capitais brasileiras.
Os jovens de hoje me fazem lembrar tempos vividos de igual intensidade. Tal como ontem, vi cartazes escritos: "Não atirem contra meus sonhos". É impossível negar a um jovem o direito de sonhar, sem os sonhos eles envelhecem.

    Uma flor nasceu na rua - Crônica de uma passeata - JULIÁN FUKS

    folha de são paulo
    IMAGINAÇÃO
    PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

    Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?
    Preso à minha classe vou pela rua sem pensar nesses versos de Drummond. Não estou só, vou bem acompanhado. Se não posso me despir das minhas roupas, trato de me despir do pronome singular. Vamos pela rua aos milhares, às dezenas ou centenas de milhares, não sabemos quantos somos. Vamos a passo lento, entoando cantos esparsos, escassas palavras de ordem, entregando-nos por vezes a um silêncio involuntário, carregado de indizíveis vontades.
    À minha frente, uma imensidade de dorsos se funde numa massa amorfa cujo início me foge aos olhos. Às minhas costas, cartazes e faixas atravessam a paisagem e não se adivinha onde a turba pode acabar. Noto que o silêncio me devolveu a mim, me distanciou da coletividade. Só quando um grupo grita que tomamos as principais avenidas de São Paulo, que ocupamos o centro do Rio, só quando ouço esses alardes eufóricos me dou conta de que formamos um único e enorme corpo, um corpo que parou o país.
    De onde viemos tantos não é fácil determinar. Para onde vamos não está claro. Somos uma multidão convocada pelo poder inestimado das redes sociais, e que se alastra pelas ruas em uma múltipla e longuíssima caminhada. Não há unidade entre nós, sabemos que jamais haverá unidade entre centenas de milhares, mas uma bandeira tremula em todas as passeatas, há um objetivo concreto: a redução do preço dos transportes, depois de uma sequência de aumentos que tem imobilizado as classes mais pobres. Não a imobiliza por completo, é óbvio: chega a roubar-lhe até um terço do salário para que todos os dias vá e volte do trabalho.
    O que pedimos é pouca coisa, é verdade, mas que tristes são as coisas consideradas sem ênfase. Pedimos pouco, mas nem por isso deixamos de vislumbrar uma concretíssima dimensão utópica. Reivindicamos um transporte público e gratuito de qualidade, criticamos a lógica privatista aplicada a tantos serviços supostamente públicos. Rechaçamos, como ouço uma garota explicar, o conluio que se criou entre prefeituras e governos e umas poucas empresas privadas, os governantes rendidos a interesses da minoria abastada e abandonando seu povo --a jovem se exalta. Mercadorias nos espreitam, mas não somos meros consumidores inconformados com produtos e serviços de baixa qualidade: não abandonamos a ideologia, não acreditamos no fim da história.
    A MASSA NO ESPELHO Durante um dos nossos longos silêncios, alguém ressalta que nos vemos refletidos na fachada de um grande prédio espelhado. Por um instante nos espantamos com nosso próprio tamanho, encantados por aquela imagem: a avenida sempre abarrotada com a frieza das caixas metálicas, dos carros inexpressivos que só devolvem ao prédio sua própria imagem, agora está ocupada por mulheres e homens. Reconquistamos a cidade que nos fora usurpada pelas máquinas, e percebemos: não paramos a cidade, esta cidade de trânsito estacionário. Ela nunca esteve tão móvel, tão viva quanto agora.
    Mulheres e homens se mobilizam diante de sua própria imagem: animam-se, põem-se a cantar, protestam aos risos com energia renovada. Exaltam-se ante sua própria exaltação, se entusiasmam com seu entusiasmo, se apaixonam por si mesmos como?i?ek desaconselhara. É só por um momento, alguns poderiam prometer. É só enquanto o povo das cidades desperta de um sono prolongado, unindo-se a movimentos sociais que nunca adormeceram, um povo que há pouco foi anestesiado pela ditadura militar --perseguido, exilado, preso e morto sem alcançar justiça posterior. Crimes do tempo, como perdoá-los? Se agora recuperamos o hábito massivo de protestar, perdoe se nos entregamos a essa nova estetização da política, estetização narcisista que tão bem nos caracteriza, e nos apaixonamos por nosso novo ímpeto de mudança, por mais difuso e incompreensível que ele pareça.
    BRECHT Não que tenhamos nos livrado de todas as mazelas desse período, de todos os seus ferozes agentes, e é também por isso que insistimos em carregar nossa voz e nossa mudez, em gritar e calar ante os muros que estão surdos. Lembro-me do cartaz que li nas primeiras manifestações, os versos de Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem". Diziam governantes, jornais, TVs, diziam em uníssono e sua voz ressoa entre nós, diziam que éramos vândalos, baderneiros, que precisávamos ser banidos das ruas de vez.
    Clamava-se por nossa supressão, para que as margens feitas de escudos e cassetetes comprimissem o rio feito de gente, e as margens o comprimiram com tanta ênfase que por um momento não se soube se haveria mais água, se haveria mais rio. Ouço um rapaz, talvez eu, abandonar a metáfora para que ninguém o entenda mal: o instrumento utilizado para nos suprimir, moldado com precisão para a repressão, expressão do autoritarismo arraigado na cultura do país, é a Polícia Militar. Um órgão que, entre outros males, promove dia a dia nas periferias uma chacina de jovens negros e pobres, ração diária de erro distribuída nas favelas.
    Não surpreende então que tantos jovens --negros e brancos, ricos e pobres-- tenham voltado a inundar as ruas com seu rio de inquietação, rio a um só tempo revolto e plácido, em apelo pela erosão de suas rígidas margens de ferro.
    OUTROS GRITOS Preso à minha classe, à minha ideologia, à minha cor, vou pela rua cinzenta e me extravio entre os milhares, leio suas faixas e ouço seus brados para saber quem me torno, quem sou. Não perco consciência da minha identidade, das minhas convicções, mas me misturo à massa e quero ser mais de um.
    Aprecio alguns que empunham cartazes inesperados, que preferem gastar sua tinta contra a Fifa, essa entidade que quer se engastar por aqui e impor um regime de exceção: feito de monopólios, despejos forçados, especulação. Consigo ser então um jovem que mais critica do que se empolga com futebol, embora saiba que assistirei ao próximo jogo da seleção.
    Afasto-me desse núcleo e mais mudanças se produzem em mim: sou agora um jornalista atacando a imprensa tradicional, sou um anarquista, sou um metroviário reclamando o reajuste salarial, gritando a plenos pulmões contra o governador.
    Distraído, me aproximo de facções que não obtêm minha apreciação: estranhos jovens em efusão patriótica envoltos em bandeiras do Brasil, cantando o hino como jamais se canta, com entusiasmo febril. Seus gritos são velhos libelos contra toda a política, ou contra o PT e a nova classe dominante, a pauta já desgastada da corrupção somada a pedidos vagos por saúde, educação. Quando cruzam com grupos empunhando bandeiras de uma mesma cor, entoam seus gritos de rejeição, sem partido, sem partido, tentando abafar qualquer dissenso. A eles não me uno, acometido pelo sutil temor de uma cooptação, de uma espoliação reacionária do movimento popular. Devo seguir até o enjoo?, me pergunto sentindo pela primeira vez um desalento, o cansaço nas pernas.
    UMA FLOR FEIA Devemos seguir até o enjoo, o tempo não chegou de completa justiça, é o que a massa responde em seu empenho perturbador. O que há por enquanto é uma ânsia, não uma náusea que nos exija parar. Uma ânsia que não tem nome, não tem rosto, mas se manifesta por esse corpo imenso que constituímos sem saber. Uma ânsia por ação, por participação efetiva, por conhecimento e voz sobre cada decisão, sobre os rumos que tomaremos a partir daqui. Ninguém diz, todos dizem: uma ânsia por uma democracia mais abrangente, mais real, talvez abrangente e real como nunca se viu. Desconfiamos das representações: o "não me representa" tornou-se o estranho novo lema do país. O caso é que vencemos uma vez. Haverá quem acuse de ser pouco, e talvez seja. Mas não será pouco o vigor que essa pequena vitória dará ao nosso corpo, imóvel há tanto tempo.
    Caminhando pela ampla avenida, baixo os olhos e contemplo meus pés, vendo o asfalto impecável que fica para trás. Paro sem saber ao certo, mas sentindo que uma flor rompeu esse asfalto. Agora sim penso em Drummond. Uma flor nasceu na rua! Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor.

      Entrevista Gilberto de Mello Kujawski

      folha de são paulo
      Cotidiano roubado
      As cidades estão em mãos estranhas
      (RICARDO MENDONÇA)RESUMO A vivência nas grandes cidades está perturbada porque elas estão nas mãos insensíveis de tecnocratas, engenheiros e administradores, defende filósofo. Movimento tenta recuperar as ruas, e ocorre agora devido a um acúmulo de insatisfação diante de diversas promessas não cumpridas por governantes.
      O filósofo Gilberto de Mello Kujawski diz que os protestos pelo país simbolizam uma tentativa de apropriação da cidade por seus habitantes. Mas ele alerta para a possível entrega das ruas "aos que têm raiva". De tendência conservadora, Kujawski entende que o acúmulo de promessas não cumpridas explica a eclosão dos atos.
      Ele destaca a desconexão entre anseios da população e as prioridades dos políticos, como o gasto com estádios. E reprova o comportamento de governantes no episódio, em especial o do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), a quem admira.
      Folha - Como o sr. está vendo esses acontecimentos?
      Kujawski - Com inquietação, claro. Ninguém sabe qual é o rumo das coisas.
      Que balanço o senhor faz?
      O lado bom foi definido por um cientista político cujo nome me escapou. Ele disse que é um movimento que está colocando a cidade em nossas mãos. Realmente São Paulo, Rio, as grandes cidades estão em mãos estranhas, de tecnocratas, engenheiros, políticos, administradores. Dos que não têm muita identidade com a cidade viva. Eles tratam de uma cidade que só existe na cabeça deles, muito regulamentada, burocrática, economicista. É uma cidade que foge aos padrões da vivência cotidiana.
      Vivência cotidiana seria andar nos parques, ruas, encontrar um amigo e conversar tranquilamente numa esquina. Tudo isso está ficando impossível. A pessoa está conversando à noite com um amigo na esquina e pode ser baleada. O cotidiano da cidade está perturbado. O habitante não tem mais direito ao seu cotidiano.
      O transporte traduz bem essa ideia de direito ao cotidiano?
      O cotidiano seria andar de ônibus numa condução regular, decente, limpa, pontual. Não existe. Diariamente a gente vê atraso dos trens. Um incidente qualquer, os trens atrasam, fica aquele povo todo esperando. Você embarca como gado, é conduzido como gado.
      E o aspecto ruim?
      O ruim é que a cidade pode cair em mãos violentas, desajeitadas, mãos de sociopatas. Como é o que está acontecendo. Depredadores, vândalos, os que destroem tudo o que encontram. São os que têm raiva da cidade. Raiva porque a cidade não permite mais uma vida normal. Todos temos um pouco de raiva. Mas não é com raiva destrutiva que se conserta as coisas.
      Por que esse movimento desencadeou agora?
      Acúmulo de insatisfação. O brasileiro é vítima de promessas não cumpridas. É um mundo azul que está logo ali, mas nunca é atingido. Fiquei muito impressionado com um cartaz que dizia o seguinte: "Um professor vale mais que o Neymar". Achei muito interessante.
      Os entusiasmos do país estão sendo conduzidos de maneira errada. E o governo, quando faz aqueles estádios monumentais, gasta fortunas, está nessa direção de favorecer mais o Neymar que o professor. Nossa professora que vai dar aula no meio rural, sem condução, com um sacrifício tremendo, essa é a maior heroína.
      Nos atos, quem levantava bandeira de partido era censurado.
      Censurado e hostilizado. Coerência: não querem interferência desse tipo de gente. Seria uma espécie de apropriação por um partido. Se fosse apropriado por partido, todas as pretensões ficariam desfiguradas, muito diminuídas. Nada de oficialização. Mas isso é bom e mau. É preciso que esse movimento deságue numa instituição para ter continuidade. Por enquanto não há mostra disso, outro perigo. Os líderes, se é que existem, são líderes embuçados.
      Deveriam criar um partido?
      Agora, não. Mas no final, deveriam. Sem institucionalização essa coisa não se sustenta. Veja o que ocorreu com o Ocupe Wall Street. Veio o inverno e o derrotou. O inverno tem uma força. Isso é interessante também, depende de fatores imponderáveis. Suponhamos que nesses dias estivesse chovendo torrencialmente. Esse movimento não existiria. Por falta de condições meteorológicas.
      O que achou do comportamento das autoridades?
      Errático. Primeiro entraram com violência. Foram criticados e então ficaram tímidos demais. Na hora de agir, não agiram. Deixaram perpetrar barbaridades por medo de censura. Cruzaram os braços, com medo da mídia, da sociedade.
      Está falando de Geraldo Alckmin?
      Infelizmente, sim. Porque eu o admiro.
      E o Haddad?
      Também vale. Mas aí eu não digo infelizmente (risos).
        A direção do PT está em pânico, diz historiador
        Na quarta-feira, enquanto o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) anunciavam, constrangidos, o cancelamento do reajuste no transporte, começava a ganhar corpo no comando do PT a ideia de tomar as ruas no dia seguinte, numa tentativa de reverter a imagem de partido vilão dos protestos.
        Uma das marcas dos atos que pipocaram em diversas cidades do país foi o repúdio a qualquer tipo de manifestação partidária durante as passeatas. Algo talvez inédito na história das manifestações políticas brasileiras. Desde o início, foram muitos os depoimentos de censura e agressões contra quem tentasse levantar cartaz ou bandeira de partido político.
        Com a presidente Dilma Rousseff e o próprio Haddad entre os principais alvos das manifestações, não é difícil entender porque o PT acabou sendo o mais hostilizado.
        Na quinta, conforme o plano petista, alguns grupos de simpatizantes da sigla saíram de vermelho com suas bandeiras para se juntar à manifestação convocada para a avenida Paulista. A ideia era "comemorar" a redução das tarifas. O resultado foi um quebra-quebra entre os manifestantes em que os petistas, justamente por estarem de vermelho, ostentando símbolos da legenda, levaram a pior.
        O ato simbólico mais revelador da derrota petista foi protagonizado pelo presidente nacional da sigla, o deputado estadual Rui Falcão, de São Paulo.
        Na própria quinta, enquanto militantes da sigla ainda apanhavam na rua, Falcão retirou de sua conta no Twitter a mensagem do dia anterior com a hashtag #OndaVermelha. O chamamento que convocava a militância petista para a reação simplesmente desapareceu.
        Antes do conflito das bandeiras na Paulista, o historiador Lincoln Secco, autor de livro sobre a história do PT, já tinha uma conclusão sobre a repercussão dos protestos no interior da legenda: "A direção do PT está em pânico".
        "É a primeira vez que o PT precisa enfrentar um movimento de massas", constata Secco. "Embora não seja só contra o partido, é contra ele também. Contra alguns de seus governos. Isso é inédito." O PT, diz Secco, não enfrentou esse tipo de problema em 2005, quando o do mensalão veio à tona, porque os protestos convocados contra o governo Lula "não pegaram".
        "Acho que só pelos erros que o Haddad cometeu, isso é um indício que a direção do PT está em pânico. Não sabe o que fazer".
        Para o pesquisador, os protestos serão lembrados como um marco para a sigla. "O que se viu nesses dias foi um partido que envelheceu distanciado da juventude, de novos movimentos sociais. Controla os antigos, mas não inova."
        Entre os erros de Haddad, Secco cita o fato de o prefeito ter autorizado o aumento da passagem de ônibus antes de cumprir a principal promessa de sua campanha, o bilhete único mensal. Lembra também que, ao ficar dando ênfase para um aumento abaixo da inflação, não percebeu que as pessoas não estavam preocupadas com o índice de preço, mas com o aumento em si, qualquer que fosse o reajuste.
        Se há um consolo para o partido, está no fato de não parecer existir no atual cenário político nenhuma sigla concorrente em condições de lucrar com os movimentos que tomaram as ruas.
        "A partir de um momento, todos políticos deram declarações elogiosas ao movimento: Dilma, Aécio, Eduardo Campos e Marina Silva. Mas eles não têm condições de ir para a rua e dizer isso. Estão disputando a leitura do movimento, não a direção."

          O poeta da revolução:Tamim al Barghouti e o hino da praça Tahrir

          folha de são paulo

          RAQUEL COZERRESUMO Convidado da Flip, o poeta palestino Tamim al Barghouti, 35, fez a versão local do grito de guerra "vem pra rua" nos protestos que tomaram a praça Tahrir, no Cairo, em 2011, alertando: "Todo mundo que ficar em casa estará em perigo". Seu poema "Oh, Egito, Está Perto" virou hino da Primavera Árabe no Egito.
          Se no brasil a voz das ruas adaptou o jingle de uma montadora de automóveis --o hoje inconfundível "Vem pra Rua", gravado para a Fiat por Falcão, vocalista do grupo O Rappa--, as manifestações que tomaram o Egito no início da Primavera Árabe, em janeiro de 2011, encontraram inspiração mais nobre dentro da escala de elaboração artística.
          O hino que jovens entoaram por dias a fio na praça Tahrir, no Cairo, surgiu como poesia pelas mãos do escritor e cientista político palestino Tamim al Barghouti, 35.
          "Oh, Egito, Está Perto", poemeto de sete versos, foi escrito sob o impacto imediato do início dos protestos, no dia 25 daquele mês de janeiro. Defendia que "um tirano só existe na imaginação de seus súditos" e que "todo mundo que ficar em casa estará em perigo".
          Exibido dois dias depois numa tela feita com lençóis por manifestantes, apareceu na rede Al Jazeera, que logo seria banida pelas autoridades egípcias, devido à cobertura dos eventos. Um jovem músico local, Mustafa Said, decorou os versos e os transformou em canção (ouça em bit.ly/itsclose).
          No quarto dia, o Exército já não podia impor o toque de recolher, com os manifestantes chegando à casa dos 20 milhões."O dia 28 foi a data em que o regime praticamente caiu, e o poema, transmitido um dia antes, dizia que isso ia acontecer", lembra, por e-mail, o poeta à Folha. "Foi algo surpreendente."
          Barghouti foi anunciado em abril como convidado da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa no próximo dia 3. Desembarcará num país diferente daquele que o convidou --dados os últimos acontecimentos, sua experiência não soa mais tão estrangeira em território nacional.
          "O aspecto mais magnífico e o mais exaustivo dessa revolução é que não possui líderes", diz, sobre os protestos no Egito, embora pudesse estar falando dos nossos. "Portanto, não pode ser derrotada, mas também não pode governar. Não podemos dizer esse é o nosso líder', fazer-lhe presidente, mas podemos dizer: Aqui estamos, aos milhões. Quem for presidente terá de responder a nós. Poderemos decidir, se necessário, nas ruas."
          Não tem sido tão fácil por lá, é verdade. Eleito democraticamente há um ano, o islamita Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, enfrenta o mesmo tipo de fúria que derrubou seu antecessor, o ditador Hosni Mubarak, após duas décadas no poder. A frágil economia do país e a nova sensação de força popular fizeram com que as pessoas nunca deixassem de protestar.
          Barghouti, pelo menos, pôde voltar ao país. Ele tinha sido banido pelo governo de Mubarak e vivia nos EUA em 2011, no início dos protestos. Hoje, mora no Cairo, onde atua como consultor da ONU.
          Acha difícil comparar a situação no Oriente Médio com a de outros países nos quais a população também foi às ruas nos últimos anos.
          "Nossa história tem a ver com a sobrevivência a uma hegemonia americana e israelense, que nos custou centenas de milhares de vidas nas mãos de fantoches como Mubarak. Em outras partes do mundo, de onde a mão pesada do americano neocolonialista saiu ou onde nunca esteve, os protestos parecem ser contra o capitalismo neoliberal e a brutalidade policial que o acompanha. Um sinal de que era prematuro o triunfalismo sentido por empresas e governos ocidentais ao fim da Guerra Fria."
          LINHAGEM Quase nada conhecido no Brasil, Tamim al Barghouti é filho do celebrado poeta Mourid Barghouti, que esteve na Flip em 2006, por ocasião do lançamento do livro de memórias "Eu Vi Ramallah" (Casa da Palavra). A mãe, Radwa Ashour, é romancista premiada e professora universitária.
          A ligação familiar com a literatura o levou a se envolver cedo com a escrita. O primeiro livro de poemas saiu em 1999, mesmo ano em que se formou em ciências políticas na Universidade do Cairo.
          São duas atividades, para ele, relacionadas. "Poesia é a forma mais eficiente de expressão. Por ser uma forma intensa do idioma, em geral reflete a relação mais política entre o indivíduo e o coletivo, além da ainda mais política relação entre o coletivo e o mundo."
          Antes de "Oh, Egito, Está Perto" conquistar adeptos, Barghouti já tinha alcançado fama local com outro poema, "Em Jerusalém". Sua declamação num programa de TV agradou ao ponto de os versos virarem toques de celular no Egito.
          Ele prefere creditar esse inusitado efeito sobre o público como resultado da histórica ligação da cultura árabe com a criação poética.
          "Em tempos ancestrais, um bom verso seria usado pelos árabes como provérbio. Um provérbio é uma afirmação tida como verdadeira. A tendência de transformar versos mais eloquentes em provérbios refletia a crença de que a beleza está na origem da verdade." Assim, se um verso fosse bonito o suficiente, seu significado deveria ser real --e ajudar a mover multidões, como aconteceu no Egito em 2011.

            O Bloco do Eu Sozinho

            folha de são paulo
            DIÁRIO DO RIO
            O MAPA DA CULTURA
            Cada um parecia ter sua própria bandeira
            ALVARO COSTA E SILVAAo deparar a enorme massa de gente, mais tarde calculada em 300 mil pessoas, um paradoxo: em sua maioria, os manifestantes, ali na concentração da Candelária, lembravam um personagem folclórico do Carnaval carioca, o animador do Bloco do Eu Sozinho.
            Era o cidadão Júlio Silva, que se transformava no Lorde João Curuti do Pelo Hempé. Em 1919 ele começou a desfilar com sua tabuleta solitária, e o fez até o fim da década de 50. Envergava uma fantasia de fraque, com chapéu de tirolês e calça listrada. Com seu pavilhão levantado, brincava alheio à multidão, cantando para si mesmo, em desacordo com o samba dos outros.
            No protesto da última quinta-feira, cada qual parecia erguer uma bandeira própria. Quando não desprezaram e agrediram com palavras de ordem, desconheceram as cores e as reivindicações daquele que estava ao lado. Em tese, a manifestação seria para festejar a vitória com a revogação do aumento das tarifas de transporte. Mas o clima foi outro, de confronto e hostilidade com os integrantes de partidos políticos.
            Muitos "flag-cons" versão tupiniquim, o verde e o amarelo pintado em tiras no rosto. Curioso que a cartolina e as canetas hidrográficas de ponta grossa tenham voltado com tanta força no seio de um movimento que teve seu estopim nas chamadas redes sociais. Talvez nem tão curioso assim, pois os dizeres nos cartazes seguiram o figurino dos 140 caracteres.
            Como no Twitter, valeu tudo. Os alvos personalizados foram o governador Sérgio Cabral, o prefeito Eduardo Paes, o deputado e pastor evangélico Marco Feliciano, o ex-craque Ronaldo Fenômeno.
            O "fim da corrupção" não podia faltar, na mesma proporção dos que questionavam os gastos para realizar a Copa e a aprovação da PEC 37. Aos poucos, desenrolaram-se as faixas que pediam pena de morte, redução da maioridade penal e impeachment da presidente Dilma Rousseff.
            A BADERNA DOS MASCARADOS
            Na ausência da classe artística mais representativa --basta lembrar a importância dos que marcharam, braços dados, na Passeata dos Cem Mil, em 1968-- cada manifestante se achava o próprio artista. Fazia questão de registrar a si mesmo no celular e de se exibir mostrando os cartazes: "Eu sou a mosca"; "Eu quero você mal-informado"; "Menos imposto, mais sexo"; "Futebol não se aprende na escola".
            Como numa peça mal ensaiada, quando a turma dos cartazes saiu de cena, chegaram os mascarados fortões e com pinta de bandidos, na altura da Central do Brasil, vandalizando escolas, postos de saúde, lojas de eletrodomésticos, incendiando carros, fazendo questão de provocar e enfrentar a PM, que reagiu com força exagerada.
            O GRANDE VAZIO
            Certamente com menos prejuízo de quem viu seu estabelecimento invadido e saqueado, o livreiro Daniel Chomski contabilizou uma queda de movimento em torno de 60% nesta semana de manifestações. A Berinjela, tradicional sebo do Centro, palco de tertúlias literárias, futebolísticas e muitas vezes políticas, esteve vazia. Nem um livro de Errico Malatesta vendido, muito menos de Trótsky, Lênin ou Marx, ou mesmo Slavoj?i?ek.
            Na tarde de quinta-feira, Chomski pôde assistir tranquilamente e algo enfastiado aos dez gols que a seleção da Espanha meteu na do Taiti, em jogo realizado no novo Maracanã. O título mais procurado, naquele dia, foi "O Grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald.
            LÁBIA NO PAÇO IMPERIAL
            Alvo de pichações e vandalismo nos protestos de segunda-feira (17), o Paço Imperial, construído no século 18 com blocos de pedras e argamassa de óleo de baleia, e que abrigou o príncipe-regente dom João com a chegada da família real ao Rio em 1808, recebe até o dia 11 de agosto a exposição "Um Outro Olhar: Coleção Roberto Marinho", com 202 peças do acervo do empresário e jornalista.
            São obras de nomes como Guignard, Djanira, Iberê Camargo, Di Cavalcanti, Volpi e Tarsila do Amaral, além da "Via Sacra", de Emeric Marcier, e imagens religiosas dos séculos 18 e 19.
            Há relatos de que um único segurança noturno, desarmado, conseguiu convencer na lábia um grupo a não invadir o Paço e destruir as obras expostas. De fato, é preciso um outro olhar.