domingo, 19 de maio de 2013

Abaixo a pesquisa de opinião, dizem neuromarqueteiros

folha de são paulo

RICARDO MIOTO
DE SÃO PAULO

Perdoai, eles não sabem o que dizem.

Quem afirma desta vez são os representantes do neuromarketing, área nova que junta neurociência e comportamento do consumidor.


Eles cansaram do velho método para avaliar um produto ou uma marca, antes ou depois do lançamento: juntar alguns consumidores e perguntar o que eles acham.
Editoria de Arte/Folhapress
O problema, dizem, é que as pessoas não sabem nem dizer direito o que querem, menos ainda por que querem.
Quem explica é Gemma Calvert, professora universitária e diretora da empresa britânica de neuromarketing Neurosense, crítica à tradicional pesquisa de opinião.
Ela lembra que o cérebro toma decisões de diferentes maneiras. Há áreas responsáveis por escolhas intuitivas e rápidas, não voluntárias, como dirigir ou jogar futebol.
E há o córtex pré-frontal, voluntário e racional, mas lento. É o "deixa eu pensar", ruim para chutar ao gol após alguém cruzar a bola, mas ótimo para planejar uma viagem.
As compras, acreditam Calvert e colegas, com frequência passam longe do córtex pré-frontal, ainda mais aquelas para as quais não damos muita atenção, como decidir entre uma marca e outra na prateleira do mercado.
Ou seja, essa história de livre arbítrio total não está com nada, e a maioria das nossas escolhas como consumidores são feitas na base do instinto.
"Sentimos primeiro, compramos e só por último racionalizamos, para justificar", diz Calvert, que veio em março a um fórum mundial de neuromarketing em São Paulo.
Exemplificando: por mais que racionalmente as donas de casa digam que preferem o seu molho de tomate o mais natural o possível, na hora de comprar vão querer o que sabem ser mais vermelhinho, mesmo que cheio de corante.
"As pessoas falam uma coisa, mas seu cérebro fala outra", diz Calvert.
MAPEANDO MENTES
A solução, então, é ir direto ao cérebro das pessoas.
A maneira mais sofisticada de fazer isso é cara. Trata-se de mapear a atividade do cérebro com técnicas como ressonância magnética.
Assim, o pesquisador sabe, por exemplo, o quanto alguém está criando memórias enquanto assiste a um comercial de TV --ou seja, o quando presta atenção e vai lembrar da peça e da marca.
Um serviço que empresas da área prestam é juntar voluntários para assistir a comerciais de TV ainda não lançados, com aparelhos de ressonância magnética na cabeça.
As empresas fazem então um gráfico da atividade cerebral relacionada à atenção prestada ao anúncio segundo a segundo. Com isso, aconselham: aquele ator ativa a formação de memória das pessoas, por que não aumentar a sua fala? Ninguém deu bola para a imagem do céu, vamos tirar? Não dá para a marca aparecer três segundos antes, no pico da atenção?
No exterior, uma das principais empresas é a Neuro Insight, de Nova York. Seu CEO, o indiano Pranav Yadav, tem apenas 28 anos. Entre os seus clientes, estão grandes empresas como Nestlé e Allianz.
Já a Neurosense atende Coca-Cola, Intel e Unilever. Calvert, a diretora, diz ter uma aposta clara: é hora de ir aos mercados emergentes.
Editoria de Arte/Folhapress
+ LIVRARIA

Quadrinhos

folha de são paulo

CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

Diário de Buenos Aires - Sylvia Colombo

folha de são paulo

DIÁRIO DE BUENOS AIRES
o mapa da cultura
Incógnita portenha
Não se sabe onde será a feira do livro em 2014
SYLVIA COLOMBOA 39ª edição da Feira do Livro de Buenos Aires terminou na última semana, reunindo mais de 1 milhão de visitantes e marcando aumento de 45% do faturamento, um recorde. As palestras internacionais, principalmente as de J.M. Coetzee, Cees Nooteboom e Laura Esquivel, ocorreram com salas superlotadas. O espanhol Arturo Pérez-Reverte conquistou o público evocando a Buenos Aires do começo do século 20, tema de seu livro mais recente, "Tango de la Guardia Vieja".
A edição homenageou a cidade de Amsterdã, trazendo um exército de escritores holandeses e criando um agradável espaço de palestras e convívio no centro da feira, onde falou, entre outros, o brasileiro Milton Hatoum.
No ano que vem, após esforços notáveis da embaixada do Brasil e considerando um crescente aumento de interesse pela literatura brasileira, a homenageada será São Paulo. Entre os nomes veiculados como possíveis convidados estão Ferréz, Arnaldo Antunes, Nuno Ramos e Lourenço Mutarelli.
A "buena onda" da feira, porém, acabou durante o seu encerramento, quando surgiram as dúvidas sobre onde será realizada no ano que vem. O governo federal quer levá-la ao parque Tecnópolis, fora de Buenos Aires, enquanto o da cidade (anti-kirchnerista) e seus frequentadores tradicionais defendem que siga sendo realizada na Rural, agradável pavilhão no meio dos bosques de Palermo.
"Será o mesmo impacto negativo que houve em São Paulo, quando tiraram a bienal do Ibirapuera. Uma pena", disse à Folha Gabriela Adamo, diretora do evento.
INDEPENDENTES EM ALTA
Enquanto os estandes de grandes editoras não fugiram do convencional -grande mercado de livros, espaços para autógrafos e filas imensas- as pequenas e independentes resolveram se juntar e enfrentar unidas o desafio de atrair os leitores.
Deu mais do que certo: o estande 7logos, reunindo sete editoras independentes, ganhou o prêmio de melhor da feira. Todos os selos envolvidos apostam em títulos alternativos de autores celebrados, produção nacional jovem, literatura brasileira e poesia. É o caso da bela edição de crônicas de Clarice Lispector lançada pela Adriana Hidalgo Editora, ou a estreia literária da celebrada Selva Amada, elogiada por nada menos que Beatriz Sarlo e que lançou "Ladrilleros" pela Mardulce.
Outras editoras presentes foram a Eterna Cadencia (bit.ly/cadencia), que também possui a mais charmosa livraria de Palermo e um blog cultural, e a Beatriz Viterbo, que traduziu Hatoum. O 7logos lançou também uma conta de Twitter, em que anunciava os eventos no stand e a presença de autores.
O local virou ponto de encontro, ao final das palestras, tanto de escritores de outros selos, curiosos com os títulos novos e raridades das editoras, como de jornalistas.
O JOGO DA AMARELINHA
O legado da obra de Julio Cortázar (1914-84) passa por um momento de reavaliação na Argentina. Enquanto começam a surgir alguns críticos que o consideram superestimado, ao mesmo tempo o autor de "Histórias de Cronópios e de Famas" arrebatou a nova geração de escritores, muitos deles tendo chegado ao autor por meio de um de seus fãs, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003).
O debate certamente será reavivado agora, quando algumas efemérides motivarão reedições e reinterpretações de sua obra. Em junho de 2013, completam-se os 50 anos do lançamento de "O Jogo da Amarelinha", que receberá uma luxuosa edição comemorativa pela Alfaguara. O volume contará com um apêndice do próprio Cortázar, contando como foi feito o livro. Já em 2014, será a vez das efemérides pessoais, o centenário de seu nascimento, em 26 de agosto, e os 30 anos de sua morte, em 12 de fevereiro.
HISTÓRIA NO TEATRO
Em meio à vasta oferta de peças teatrais que estrearam em Buenos Aires agora no outono, quando o ano cultural realmente começa, está "Camila", uma adaptação para os palcos de um clássico local, baseado em uma história verídica.
Em 1983, o filme homônimo de María Luisa Bemberg foi um sucesso de público e crítica, ao investigar a cultura e os hábitos do século 19 argentino através do romance de uma filha de um aristocrata portenho com um padre de Tucumán. O casal resolve escapar, mas acaba encontrado e fuzilado, por ordens do então ditador Juan Manuel de Rosas (1793-1877). A peça está em cartaz no Teatro Lola Membrives.

    Neoliberalismo, uma utopia - Geoffroy de Lagasnerie

    folha de são paulo

    Neoliberalismo, uma utopia
    Os motivos do fascínio de Michel Foucault pela doutrina
    GEOFFROY DE LAGASNERIETRADUÇÃO *ANDRÉ TELLES*RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano traz capítulo de "A Última Lição de Michel Foucault", em que o sociólogo Geoffroy de Lagasnerie explica o interesse do filósofo francês (1926-84) pela corrente, considerada conservadora. O livro sai em junho pela Três Estrelas.
    Só é possível compreender o interesse, que às vezes beira o fascínio, de Foucault pelo neoliberalismo com uma condição: romper com o hábito que consiste em vê-lo como uma ideologia conservadora ou reacionária. Com efeito, existe uma tendência mais do que notória na literatura midiática, política ou intelectual a descrever o neoliberalismo sob os traços de uma doutrina que tem como uma de suas características essenciais estar associada à perpetuação da ordem. Tratar-se-ia de uma concepção que se oporia permanentemente à mudança. Que trabalharia, fundamentalmente, para preservar a situação vigente.
    Essa posição conservadora do neoliberalismo estaria presente em sua crítica às utopias que clamam pela criação de organizações alternativas à economia de mercado. Ao denunciar o socialismo, o comunismo etc., os adeptos do neoliberalismo anulariam a possibilidade de imaginar outros modelos de sociedade. Eles não incitariam à rebelião, e sim à resignação, à aceitação da situação vigente.
    Mais grave, os dogmas neoliberais constituiriam um obstáculo a tudo que pudesse subverter o funcionamento estabelecido da economia de mercado; colocariam em xeque a validade de qualquer medida suscetível de ir, por exemplo, no sentido de uma maior redistribuição.
    Em outros termos, o neoliberalismo se colocaria resolutamente do lado do status quo. Encarnaria uma das principais forças de resistência à mudança. Representaria a ideologia da classe dominante, isto é, da classe dos indivíduos que têm interesse na perpetuação da situação tal como vigora.
    Essa percepção do neoliberalismo como conservadorismo encontra-se fortemente enraizada nos cérebros. Ela estrutura boa parte da retórica utilizada para desqualificá-lo. E, no entanto, funda-se num desconhecimento profundo dessa tradição. Além disso, mascara amplamente uma compreensão real desta última, neutralizando-a, reduzindo-a ao já conhecido, ao nível da evidência, ao que é fácil combater e denunciar, em vez de enfrentar sua especificidade.
    Com efeito, a partir da Segunda Guerra Mundial, e manifestamente ao longo dos anos 1960, uma das preocupações básicas dos neoliberais foi distinguir-se do conservadorismo. Decerto liberais e conservadores armaram alianças no passado, podendo eventualmente defender posições idênticas. Mas seria unicamente porque compartilham inimigos comuns (os socialistas, os adeptos do Estado social). Como escreve Friedrich Hayek, em célebre artigo intitulado "Por que não sou conservador":
    "Em uma época em que quase todos os movimentos reputados 'progressistas' recomendam coerções suplementares à liberdade individual, os que prezam a liberdade consagram logicamente suas energias à oposição. Dessa forma, veem-se a maior parte do tempo no mesmo lado daqueles que costumam resistir às mudanças. Hoje, no que se refere à política cotidiana, eles não têm outra escolha senão apoiar os partidos conservadores."
    Porém, segundo Hayek (e muitos outros autores defenderão a mesma ideia), a proximidade entre liberais e conservadores para aí. Ela é puramente política -ou melhor, estratégica, conjuntural. Ela se enraíza numa intenção compartilhada de obstruir os movimentos que se definem como progressistas. Trata-se de uma aliança negativa, a qual não deve mascarar as oposições profundas que separam neoliberalismo e conservadorismo.
    Essa tomada de posição é de grande importância na história das ideias, pois talvez constitua o elemento essencial da ruptura entre o neoliberalismo e o liberalismo clássico. Ela é a certidão de nascimento do neoliberalismo como doutrina autônoma, singular, irredutível ao que a precedeu.
    RADICAL De fato, os neoliberais não se cansarão de afirmar e denunciar: seus predecessores deixaram-se corromper pelo conservadorismo, aproximando-se demais da direita conservadora, até mesmo da direita reacionária, a ponto de só marginalmente diferenciar-se dela. Satisfeitos porque alguns de seus ideais triunfaram a partir de meados do século 19, eles retraíram-se pouco a pouco. E, por conseguinte, limitaram-se a defender a ordem vigente.
    Dessa forma, o liberalismo deixou progressivamente de ser um movimento radical. Transformou-se numa máquina de preservar o status quo. Colocou-se do lado da ordem, do poder estabelecido. Em oposição às doutrinas revolucionárias, às aspirações à mudança, posicionou-se como avalista do realismo, do "racional em política".
    Contudo, ao adotar tal postura, os liberais traíram a si próprios. E, sobretudo, enfraqueceram consideravelmente sua posição, deixando escancaradas as portas para o sucesso de seus inimigos socialistas: ao abandonar o terreno da especulação intelectual e da imaginação política, o liberalismo clássico deixou de suscitar entusiasmo, de atuar como proponente dos ideais pelos quais valia a pena lutar.
    Justamente por isso, os socialistas tiveram a oportunidade de figurar como os únicos rebeldes, os únicos contestadores autênticos: "Durante aproximadamente meio século, apenas os socialistas propuseram um programa explícito de evolução social, uma certa imagem da sociedade futura pela qual eles trabalhavam e um conjunto de princípios gerais para guiar a reflexão sobre pontos precisos".
    Os pensadores neoliberais, portanto, pretendem desfazer essa divisão, esse abismo aberto entre o liberalismo conservador de um lado e o socialismo renovador do outro, o partido do imobilismo e o partido do movimento.
    Ao contrário dos liberais clássicos, eles contestam ao socialismo o seu monopólio sobre a produção das utopias políticas e filosóficas. Querem fazer de sua doutrina uma doutrina radical -revolucionária. Nesse sentido, não é fortuito um dos livros mais importantes da tradição neoliberal em sua versão mais extrema, publicado por Robert Nozick em 1974 e que pretendia restituir ao liberalismo seu poder de desestabilização original, intitular-se "Anarquia, Estado e Utopia".
    Analogamente, já em 1949 Hayek evocava a necessidade de construir o que ele denominava uma "utopia liberal", ou seja, "um programa que não fosse nem uma simples defesa da ordem estabelecida, nem uma espécie de socialismo diluído, mas um verdadeiro radicalismo liberal que não poupasse as suscetibilidades dos poderosos (inclusive sindicatos), não fosse demasiadamente prático e não se confinasse no que parecesse politicamente possível hoje".
    Compreender o neoliberalismo, portanto, não é compreender uma realidade econômica e social que seria dotada de uma materialidade e uma objetividade. É apreender um projeto, uma ambição jamais consumada e que exige ser perpetuamente reativada. É apreender algo da ordem da "aspiração".
    Foucault vai inclusive mais longe, definindo o liberalismo como uma espécie de ética, de "reivindicação global, multiforme, ambígua, com enraizamentos à direita e à esquerda". Não é alguma coisa de constituído, que funcionaria como uma alternativa política à qual poderíamos pespegar um programa bem definido ou determinado plano. É algo mais difuso: é um humor, um "lar utópico", um "estilo geral de pensamento, análise e imaginação".

      A ineficiência do Estado perante a barbárie - Maria Rita Kehl e Paulo Fernando P de Souza

      folha de são paulo

      Infelicidades ordinárias
      MARIA RITA KEHLPAULO FERNANDO PEREIRADE SOUZARESUMO Apesar de a dor oriunda da violência independer de classe, a percepção de crimes e empatia para com vítimas reproduz padrões de desigualdade social. Ao privilegiar o aspecto punitivo para responder ao clamor público, como na proposta de reduzir a maioridade penal, o Estado erra e desconsidera sua função reguladora.
      "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." A conhecida abertura de "Anna
      Kariênina" já se integrou ao senso comum entre os leitores de romances. A felicidade é um clichê; só a infelicidade é singular.
      Nem sempre. Nas guerras, nas ditaduras, nas crises de desemprego, a experiência da dor também segue um padrão previsível. É o caso dos pais do adolescente assassinado depois de entregar seu celular ao assaltante; dos familiares da dentista queimada viva porque tinha pouco dinheiro no banco; dos pais do jovem atropelado e morto pelo motorista alcoolizado na Vila Madalena; dos que perderam seus filhos no incêndio da boate Kiss; dos órfãos de mulheres assassinadas por maridos ciumentos.
      Pensamos nas mães das periferias e favelas brasileiras: mães solitárias que insistem em ter notícias de seus filhos desaparecidos, mães de meninos anônimos mortos por traficantes ou por policiais, impunes. A infelicidade dessas pessoas tem muitos elementos em comum: desamparo, lutos irreparáveis, medo de sofrer retaliações, revolta e sentimento de injustiça -este, inconsolável.
      Suas lembranças, seus corpos precocemente envelhecidos compartilham para sempre o conhecimento silenciado de que somos mortais, desprotegidos, frágeis e impotentes. Mesmo em tempos de paz permanecerá neles, latente, a possibilidade de eclosão do medo do imprevisível.
      Mas o impacto da violência social vai muito além da dor individual dos familiares. Seus efeitos podem ser devastadores por gerações. Reconhecimento público e solidariedade coletiva são indispensáveis para cicatrizar as feridas Já o desinteresse da sociedade pelos crimes que vitimaram seus entes amados agrava os sentimentos de injustiça e desamparo.
      A repercussão midiática dos assassinatos reproduz a escandalosa desigualdade social brasileira.
      Na mesma semana em que o leitor acompanha, solidário, as notícias das famílias enlutadas das vítimas de violência no Morumbi ou no Belém, ele também terá passado os olhos por uma série de notas lacônicas sobre "cinco (três/ sete) jovens (sem nome, idade ou parentes capazes de reivindicar justiça) mortos a tiros por homens encapuzados... no Jardim Ângela/ no Capão Redondo/ na periferia de Guarulhos...
      Crimes idênticos em bairros semelhantes: bairros em que os familiares dos jovens assassinados temem dar queixa na delegacia e não conseguem fazer sua dor sair no jornal. Sua indignação, quando chega ao noticiário, é exposta de forma cruel nos espaços restritos aos programas "policiais" sanguinolentos -talvez por isso mesmo, produza distanciamento e suspeição. Sua tristeza pouco compartilhada e suas reivindicações seguem caminhos discretos, silenciosos. Mas não menos dolorosos.
      As vítimas da violência brutal na periferia, mães, pais e irmãos pobres, na maioria negros, não contam com a identificação amorosa dos leitores e telespectadores.
      O honesto leitor desta Folha, pacato espectador do "Jornal Nacional" está informado de que, em maio de 2006, em retaliação aos crimes do PCC, 493 pessoas (algumas sem antecedentes criminais) foram assassinadas pela polícia de São Paulo, e os corpos de muitos delas continuam desaparecidos?
      Sabe que seus familiares são ameaçados quando tentam localizar os corpos? Estão informados de que, só no ano de 2008, o número de homicídios cometidos por policiais em confrontos no Estado de São Paulo -397, segundo a ONG Human Rights Watch- é superior ao total de assassinatos cometidos por policiais na África do Sul?
      Do lado mais protegido da barreira social, familiares de vítimas pagam um alto preço pela exploração mórbida de suas tragédias.
      Imagens como as do tênis no chão queimado da boate, manchas de sangue no capô amassado de um carrão, o sofá incendiado, o vídeo que flagra o tiro gratuito contra a vítima já rendida, as expressões dos familiares em momentos de extremo sofrimento são exibidos sem pudor. Tal exposição desconsidera os sentimentos das vítimas e revela uma morbidez coletiva pela qual ninguém se responsabiliza.
      O sentimento de injustiça, a certeza de que tais aberrações não deveriam acontecer e a indignação com nossa falta crônica de políticas de segurança pública geram, nos bairros em que os moradores não correm (muitos) riscos de retaliação por parte dos assassinos, mobilizações reivindicatórias e debates que ajudam a superar a sensação de impotência e desamparo.
      A luta contra a impunidade é um traço comum aos movimentos nascidos da dor, capazes de abalar nosso cotidiano individualista e indiferente, como se estivéssemos imunes às tragédias e nada tivéssemos a ver com elas.
      Questionar a desvalorização da vida, a atitude no trânsito, o porte de armas, o machismo, o descaso com segurança nos eventos, a insegurança pública e a justeza das punições são atos que alimentam o debate da nossa pobre cidadania. Por serem públicas é que essas questões polêmicas deveriam tocar a todos, sobretudo ao Estado.
      Esperar que o Estado cumpra sua função reguladora é um fator indispensável à vida social. As responsabilidades são diferentes para os agentes públicos e particulares; para pais coniventes, omissos ou derrotados; para quem deveria cuidar, para quem sofre e para quem causa sofrimento.
      Ainda assim, cabe ao Estado, por meio das chamadas políticas de segurança pública -que não se reduzem a medidas punitivas- proporcionar as condições mínimas para a paz social. É possível supor uma relação entre a violência arbitrária e impune praticada por agentes do Estado e sua propagação no resto da sociedade.
      DESPROPORÇÃO Parte da questão do rebaixamento da maioridade penal se insere na percebida desproporção entre a gravidade dos delitos cometidos e as consequências: particularmente quanto ao tempo de privação de liberdade. Mas tal desproporção também se observa na branda punição aos assassinos de trânsito; aos delinquentes de colarinho branco, aos omissos na segurança de eventos, às torcidas organizadas e aos maridos ciumentos que matam cruel e friamente suas mulheres.
      Observemos que alterar uma definição legal de maioridade desloca o problema. Definições de maioridade penal são legais e arbitrárias, já que pessoas de 11 anos e 11 meses pouco diferem das de 12 anos; o mesmo vale para as de 17 anos e 11 meses em relação às de 18: sempre teremos imprecisões na transição da Justiça da Infância e Juventude para a Justiça Penal.
      Aliás: na prática, os dois sistemas se revelam falhos e corruptores. Não há real preocupação educativa nas privações à liberdade de adolescentes: existe somente uma comparação na qual o sistema prisional é a referência da pior solução possível até o momento. No caso dos menores infratores, como é possível chamar de impunidade o reconhecido inferno proporcionado por três anos na Fundação Casa?
      O apelo à punição como uma proteção à sociedade é uma esperança que não se cumpre. A indústria do medo e da insegurança, batizada ironicamente de indústria de segurança e proteção, garante seus lucros; ecoa e alimenta o sentimento persecutório que torna cada cidadão uma vítima em potencial; constrói nossos inimigos, ao mesmo tempo em que diz nos proteger deles. Endurecer nessa direção é fazer mais do mesmo, é agir com o conformismo indignado que corresponde à nossa impotência diante da desigualdade e da violência que castigam o Brasil.
      O encarceramento em proporções cada vez maiores é uma política de Estado raramente contestada, mas que, aqui e em todo o mundo, alimenta efeitos danosos de preconceito social, de gênero e racial. Além de fomentar a violência que pretende combater, uma vez que não reconhecemos como pertencendo ao mesmo mundo que nós os negros (ou os análogos migrantes), os pobres, os moradores de periferia. Estes que o aparato prisional integra fora das fronteiras da sociedade de consumo como dejetos.
      Vamos calcular com seriedade: o que acontecerá com o criminoso de 16 anos solto depois de cumprir a pena máxima numa cadeia comum? Aos 46, será um perigo ainda maior para a sociedade que julgou ter se livrado dele.
      Não ocorreu ao governador Geraldo Alckmin, atônito diante do recente surto de barbárie paulista, bradar por uma reformulação radical do sistema socioeducativo que ele governa.
      Ocorreu a proposta demagógica de reformular a lei que determina a maioridade penal aos 18, descartando assim a responsabilidade do governo de educar aqueles jovens. Ao fazê-lo, ignorou a norma, ditada pelo bom senso, que faz com que os adultos se considerem responsáveis pelo destino de todas as crianças, sem exceção.
      A reivindicação pela pena adequada é importante, mas não a principal. No campo da juventude devemos evitar o risco de que, identificados com algumas vítimas, sejamos indiferentes a outras.
      Um adolescente assassinado é uma tragédia, seja ele branco ou negro, de classe média ou de periferia, rico ou pobre, quer tenha sido assassinado por um ladrão drogado que quer seu celular ou por um policial numa rua escura.
      Um jovem que cometeu assassinato também é uma tragédia, quer tenha ele 17 anos, 11 meses e 29 dias, quer tenha ele 22 anos, quer assalte, atropele ou ataque o torcedor do time adversário. Para que um jovem ceife a vida de outro banalmente, para que jovens queimem índios, massacrem colegas de escola, espanquem empregadas, assassinem com jet skis ou com carrões, todos falhamos como educadores e protetores.
      Como criaremos nossos adolescentes numa sociedade com lei é uma pergunta que devemos fazer a cada um de nós. Cobrar maior eficiência e rigor do Estado no enfrentamento das transgressões e delitos menores, maior equidade na distribuição da justiça parece ser mais eficiente na prevenção de novas tragédias violentas e no combate a impunidade que alterar a maioridade penal. Precisamos evitar promover a barbárie com a boa intenção de combatê-la.

        CLAUDIA TAJES - Muito azedume e alguma graça

        Zero Hora - 19/05/2013

        Esses e-mails que a gente recebe prometendo solução para tudo. Se dependesse deles, ninguém teria problemas na vida. Antídotos para formol e antibiótico no leite não constam da lista porque, evidentemente, ninguém jamais imaginou que isso aconteceria. Certas falcatruas desafiam até os mais criativos pensadores. Só sei que agora cedo, abrindo a minha caixa postal, encontrei os seguintes e-mails, dos quais li o título antes de despachar todos, com fúria psicopata, para os confins da lixeira: Amor e Sedução/Chega de insegurança na hora do sexo, Abdômen Sarado/Tudo que você precisa saber para conquistar gominhos,

        Tua Oportunidade/Como ganhar muito dinheiro com nossos projetos, Flying Feet/Solucione suas dores sem sair de casa, Everton Lopes-Sempre com Dinheiro/Casais inteligentes enriquecem juntos, Multas nunca mais/Aprenda a cancelar multas para sempre. Não são ainda nove da manhã e meus problemas já acabaram com um punhado de e-mails que o anti spam não pegou. E eu ainda reclamo.

        O escândalo do leite. Apesar do Procon garantir que as trocas dos produtos batizados poderiam ser feitas sem a nota fiscal, não conheço ninguém que tenha conseguido isso. Nem a minha irmã, que compra em um mercadinho desses em que os donos tratam os fregueses pelo nome, conseguiu. Pobre consumidor, que sempre paga o pato. E paga caro: na manhã em que estourou a falcatrua, todos os leites sem formol já estavam com o preço mais alto no supermercado em que eu vou. É o que se chama de encontrar oportunidade na crise.

        Por que os bares da Cidade Baixa têm hora para fechar e outros, em diferentes bairros da cidade, podem funcionar, com música ruim e gritaria, madrugada adentro? Ando me irritando profundamente com um caso desses na frente do meu prédio, no bairro Auxiliadora, menos por não me deixar dormir do que pela falta de critério da fiscalização. Já liguei para o 156 da Prefeitura e não adiantou nada.

        A reclamação chega na SMIC e cai, segundo informam os próprios atendentes. E então é preciso reclamar de novo. Se pelo menos os playboys não ficassem fazendo vrum-vrum em suas caminhonetes às cinco da manhã, seria um pouco menos pior. Aliás, alguém saberia explicar por que os caras fazem vrum-vrum depois de adultos? Essa aí eu vou viver mais 50 anos sem entender.

        Talvez uma razão para a coluna azeda de hoje seja a de que agora sou a mãe preocupada de um filho que, a essa altura, deve andar pela Bratislava, seja lá o que isso signifique. A parte boa é que, zanzando pelo mundo, vai ver de perto algumas coisas que nem sempre entram com facilidade na cabeça. Um exemplo: lá pela 6ª série do ensino fundamental houve uma Feira de Países no colégio e tocou ao grupo dele, que era também o do Artur, Marcelinho, Gus, Tomás e outros da mesma força, falar sobre a Polônia. A gente sabe como um grupo só de guris age.

        Somente na noite anterior à entrega do trabalho eles foram a campo para cumprir a tarefa. Pediram ajuda para a escritora Leticia Wierzchowski, especialista no tema, que emprestou um colete antiguíssimo do avô polonês dela com a recomendação de deixar exposto, sem ninguém tocar. Naquele dia, por casualidade, passei pela frente do colégio e vi a cena inesquecível.

        Sem camisa, todo suado, meu filho vestia o colete do avô da Leticia e distribuía um folhetinho feito sem capricho algum para atrair visitantes: conheça o nosso estande e descubra a Polônia, um paraíso tropical com lindas praias. O colete do avô eu recuperei com uma lavagem a seco e a ajuda de uma boa costureira. Os guris pegaram recuperação de geografia. E, da vagabundagem, a vida tem se encarregado de recuperar a turma. Bem como deve ser.

        Por que o inferno é aqui, e o paraíso, também - Helio Schwartsman

        folha de são paulo

        A ciência permite que nos vejamos hoje tão próximos da extinção quanto da bonança infinita
        HÉLIO SCHWARTSMANRESUMO O estudo de sistemas complexos, tão caro à ciência atual, está na origem de dois livros que tecem prognósticos opostos sobre o futuro da humanidade. Enquanto para John Casti os avanços tecnológicos podem nos levar ao descontrole e ao fim, para Peter Diamandis e Steven Kotler, eles nos aproximam de uma era de abundância.
        O fenômeno é o mesmo -a complexidade-, mas, para um autor, ela trará a redenção da humanidade, na forma de energia e recursos inesgotáveis, enquanto, para o outro, implicará o colapso geral da sociedade. Para tornar as coisas um pouco mais complexas, é perfeitamente razoável sustentar que ambos estão certos.
        Se queremos tornar a discussão pelo menos inteligível, convém começar pelo começo.
        Numa definição para lá de problemática, "complexidade" é o termo que usamos para caracterizar sistemas compostos por muitas partes, que interagem de diversas maneiras, produzindo resultados que vão além da soma de seus componentes e são frequentemente imprevisíveis. O estudo de sistemas complexos e seus parentes, como a teoria do caos, emergência, dinâmicas não lineares, auto-organização, comportamento coletivo, abordagens holísticas etc., é a nova coqueluche da ciência.
        O problema com a complexidade, como já insinuei no parágrafo acima, é que, além de ser complicada, ela anda perigosamente perto da imprevisibilidade ou, pelo menos, de diferentes graus de opacidade em relação ao futuro.
        Para tornar o conceito um pouco menos abstrato, vale recorrer a um exemplo concreto. Pense numa carroça. Ela não é muito complexa. Você olha para o boi, as rodas, o eixo etc. e entende mais ou menos o que faz cada parte. Se ela quebrar, você pelo menos sabe qual peça precisa ser reparada ou substituída. Considere agora um avião moderno. Ele é complexo. Nenhuma de suas partes voa, mas elas interagem de forma a que o aparelho possa fazê-lo. E nem pense em consertar em casa o seu Airbus.
        A complexidade não se limita a engenhocas. Ela também está presente em fenômenos naturais, como a meteorologia, e, principalmente, humanos. Há poucas coisas mais complexas do que a economia, por exemplo. Nela, milhões de agentes fazendo a mesma coisa quase sempre produzem efeitos qualitativamente diferentes dos que geraria uma única pessoa agindo deste modo.
        INFERNO Como a complexidade se relaciona à destruição ou à salvação da nossa espécie? Seguindo o modelo de Dante, comecemos pelo Inferno. Aqui, nosso guia não é o poeta Virgílio, mas o matemático John Casti, especializado em teoria dos sistemas, que já lecionou em Princeton e nas universidades do Arizona e de Nova York, autor de "O Colapso de Tudo" [trad. Ivo Korytowski e Bruno Alexander, Intrínseca, 352 págs., R$ 29]. O subtítulo da edição brasileira é ainda mais ameaçador: "Os Eventos Extremos que Podem Destruir a Civilização a Qualquer Momento".
        A primeira parte da obra traz uma explicação razoavelmente didática da complexidade e apresenta a noção de eventos X, que são acontecimentos relativamente raros, muito difíceis de prever (senão quanto ao "o quê", pelo menos quanto ao "quando") e que causam enorme impacto para grande número de pessoas. Estamos falando de coisas no patamar do 11 de Setembro ou da crise de 2008.
        Não pretendo chatear o leitor descrevendo as propriedades matemáticas da complexidade e como ela se relaciona com os teoremas da incompletude de Gödel, mas creio que vale a pena destacar alguns dos sete princípios elencados por Casti, já que eles nos ajudam a entender melhor com que bicho estamos lidando.
        O primeiro, que leva o nome de emersão, é justamente o fato de o todo diferir da soma das partes, como é o caso do seu Airbus.
        O segundo princípio a merecer algum detalhamento é o mundialmente famoso efeito borboleta, um emblema da teoria do caos. A história de sua descoberta já revela suas propriedades.
        O matemático Edward Lorenz testava modelos meteorológicos nos primeiros computadores -era 1960. Em certa ocasião, resolveu projetar cálculos no futuro, mas se serviu de dados que tinha numa planilha impressa para alimentar a máquina, em lugar de refazer tudo desde o princípio. No fim, os resultados do modelo original não batiam com os das projeções.
        A diferença, Lorenz perceberia, tinha origem prosaica: na primeira conta, os dados numéricos iam até a sexta casa decimal, enquanto nas projeções iam só até a terceira, devido ao limite da impressora.
        A diferença entre a terceira e a sexta casa -digamos, a diferença entre os números 0,506127 e 0,506- bastou para "produzir" climas totalmente distintos. Como ela era pequena demais para ser detectada pelos instrumentos meteorológicos existentes à época, Lorenz concluiu que teria sido possível que o bater de asas de uma gaivota provocasse, semanas mais tarde, um furacão do outro lado do mundo. A gaivota, para fins poéticos, virou borboleta, o que não mudou o conceito que diz que sistemas caóticos são patologicamente sensíveis a mudanças minúsculas no estado inicial.
        O terceiro princípio que me parece mais relevante é a chamada lei da variedade necessária. Ela basicamente postula que, numa interação entre dois ou mais sistemas, aquele encarregado de exercer a regulação sobre o(s) outro(s) precisa ter pelo menos o mesmo nível de complexidade do(s) controlado(s). Se eles estão em patamares diferentes, é muito possível que sobrevenha um evento X para reequilibrar o jogo.
        Um exemplo concreto é o do coletor de impostos. De um modo geral, ele conta com uma variedade de ações para cobrar que é muito menor do que as disponíveis para contadores, advogados e contribuintes evitarem o pagamento.
        Como não é muito sábio conferir superpoderes a agentes públicos, a melhor forma de reduzir a diferença é diminuir a variedade de instrumentos ao alcance dos sonegadores. Isso se faz reduzindo a quantidade de leis, decretos, portarias e regimes de exceção (a complexidade) do sistema tributário.
        TRAGÉDIAS Deixemos, porém, as questões teóricas e passemos ao ponto alto do livro de Casti, que é o guia das tragédias prestes a nos atingir. São 11 capítulos que fazem a alegria dos pessimistas, mostrando tudo o que pode dar errado. Os títulos e/ou subtítulos das seções são autoexplicativos: apagão digital, o esgotamento do sistema global de alimentos, um pulso eletromagnético destrói todos os aparelhos eletrônicos, o colapso da globalização, destruição da Terra pela criação de partículas exóticas, a desestabilização do panorama nuclear, o fim do suprimento global de petróleo, uma pandemia global, falta de energia elétrica e de água potável, robôs inteligentes sobrepujam a humanidade, deflação global e o colapso dos mercados financeiros mundiais.
        São precisos altos níveis de paranoia para levar muito a sério certos cenários descritos pelo autor, como aquele em que um colisor de partículas acaba criando um buraco negro que suga o nosso planeta para sabe-se lá onde, ainda que eles sejam teoricamente possíveis.
        Mas mesmo um realista tranquilo tem de admitir que vários dos casos levantados são não apenas verossímeis como prováveis. Ainda que não na escala imaginada por Casti, vários países já foram atingidos por blecautes mais ou menos generalizados. O problema fundamental é que os avanços tecnológicos cada vez mais complexos dos quais nos tornamos dependentes nos tornam extremamente vulneráveis a falhas nos sistemas.
        Pior: como os próprios sistemas tendem a integrar-se e tornar-se dependentes uns dos outros, nossa vulnerabilidade aumenta: muitos dias sem energia significam não só falta de luz, mas também de água (que é bombeada), alimentos (que precisam ser resfriados), comunicações etc. Os distúrbios podem ser raros, isto é, os sistemas são individualmente seguros, mas, se dermos tempo suficiente, é certeza que eles ocorrerão.
        Para dar uma ideia mais precisa de "colapso", vejamos mais de perto o que ele tem a dizer sobre a falta de comida que cedo ou tarde nos matará a todos. Casti começa o capítulo lembrando que existem pragas botânicas e cita o terrível fungo Phytophthora ramorum, que pode destruir florestas inteiras de árvores e pula de uma espécie para outra. Imagine agora uma mutação no Phytophthora que o torne capaz de infectar grãos e não apenas árvores, e os dias da humanidade estão contados.
        Na sequência, ele se põe a analisar outras ameaças que pairam sobre as culturas vegetais, como a misteriosa morte das abelhas (que são agentes polinizadores), a escassez de água, a erosão dos solos, as mudanças climáticas, o aumento dos preços de petróleo e a maior produção de biocombustíveis, o crescimento da população. Nesse mundo, até uma boa notícia, como o enriquecimento de nações mais pobres (e o consequente crescimento da demanda), se torna um problema.
        Antes de comprar seu jazigo no cemitério mais próximo, convém dar uma olhadela no outro lado da complexidade. Para nos servir de guia na viagem ao paraíso, escolhi não Beatriz, mas Peter Diamandis e Steven Kotler, autores de "Abundância - O Futuro É Melhor do que Você Imagina" [trad. Ivo Korytowski, HSM, 424 págs., R$ 69].
        Diamandis é um milionário com formação em engenharia espacial, genética e medicina.
        Kotler é jornalista científico. Ambos são seguidores do futurólogo Ray Kurzweil e membros ativos da Singularity University (SU), o "think tank" que pretende promover tecnologias que revertam para o bem da humanidade.
        Quem leu "Cândido", de Voltaire, deve se lembrar do dr. Pangloss, o personagem doentiamente otimista inspirado em Leibniz. Pegue o otimismo de Pangloss, eleve-o a uma potência bem grande e você chegará perto do que diz o pessoal da SU. Para eles, estamos prestes a entrar numa era de superabundância, na qual tecnologias tornarão itens essenciais tão baratos que todos os habitantes da Terra terão acesso a bens e serviços até há pouco ao alcance apenas dos muito, muito ricos. E tudo isso no horizonte de uma geração.
        O motor de tamanho progresso é a complexidade, mais especificamente o caráter exponencial do desenvolvimento tecnológico. Vale a pena dedicar algumas linhas a explicar melhor esse conceito.
        Não faz muito tempo, o mundo era um lugar linear. Um músico até o século 19, por exemplo, recebia pelo número de execuções que fosse capaz de fazer. Sua plateia era limitada ao número de assentos no local de exibição e, se ele queria um par de trocados a mais, tinha de fazer uma apresentação extra.
        Vieram, porém, o fonógrafo, a indústria do entretenimento, os computadores e entramos num universo exponencial. Hoje, um músico pode ficar milionário compondo uma única peça que faça sucesso. A casa cheia do mundo exponencial já não se restringe ao número de cadeiras no teatro, mas aos milhões, talvez até bilhões de terrestres que se disponham a baixar a canção em seus iPods.
        A contrapartida disso é que a vida ficou mais difícil para os profissionais que não tiram a sorte grande (a maioria deles). Antes, eles tinham uma espécie de reserva de mercado, que era dada pela proximidade física necessária para escutar os sons emitidos pelos instrumentos. Essa barreira foi rompida. O trompetista do bar de jazz perto da sua casa concorre com todos os trompetistas do mundo, cujas performances estão disponíveis na internet.
        LEI DE MOORE A tecnologia, muito mais do que os músicos, se beneficia desse caráter exponencial. A rapidez e a precisão do computador para fazer contas permitem a criação de programas mais sofisticados, que ajudam a produzir componentes mais eficientes, que melhoram a performance dos computadores, que... No final do processo, temos coisas como a Lei de Moore, segundo a qual os aparelhos dobram sua rapidez a cada 18 meses. E pelo mesmo preço.
        Isso, é claro, tem impacto na vida das pessoas. Num exemplo citado pelos autores, hoje, um guerreiro massai com seu smartphone tem acesso a mais informações do que dispunha o presidente dos EUA apenas 15 anos atrás.
        Para Diamandis e Kotler, revoluções semelhantes estão para acontecer no acesso a água, alimentos, energia, educação e saúde. No que é provavelmente o aspecto mais interessante do livro, a dupla descreve dezenas de pesquisas, algumas bem adiantadas, que poderão em breve mudar a face do mundo. São coisas como membranas que dessalinizam a água, carne (sem colesterol) sintetizada em tubos de ensaio, reatores nucleares portáteis (e seguros) e telefones celulares que realizam exames de sangue e fornecem diagnósticos de doenças a seus donos.
        No ensino, eles preveem nada menos do que "educação praticamente gratuita e personalizada para qualquer um em qualquer lugar". Isso seria possível graças à convergência da "computação infinita com a inteligência artificial, a banda larga ubíqua e os tablets de baixo custo". Evidentemente, uma população muito mais instruída seria capaz de fazer a tecnologia avançar muito mais.
        Num exemplo bem escatológico, Diamandis e Kotler falam da verba que a Fundação Bill e Melinda Gates disponibilizou para reinventar a privada. A ideia aqui é desenvolver tecnologias que permitam às pessoas ir ao banheiro sem gastar água nem precisar construir esgotos e, é claro, sem contaminar todos à sua volta.
        Em teoria, é possível queimar a matéria fecal e produzir energia suficiente para transformar a urina em água potável e alguns poucos resíduos sólidos. Na verdade, como a queima das fezes expelidas por um ser humano típico dá um megajoule por dia, até sobraria um pouco de energia para carregar o seu celular. As tecnologias para isso já existem. O desafio é juntar tudo a um preço acessível.
        Vale destacar aqui que o mentor Kurzweil vai além do que dizem os autores de "Abundância" e prevê para breve uma singularidade tecnológica, na qual o passo dos avanços seria "tão rápido que pareceria infinito". Isso culminaria na criação de uma superinteligência artificial, que nos permitiria manipular características humanas como o desempenho intelectual e sensorial, levando a uma era transumana. Evidentemente, aqui já nos afastamos do terreno das especulações inspiradas na ciência para nos aproximar perigosamente da religião em estado puro.
        Quem tem razão? Casti ou a dupla Diamandis/Kotler? O colapso ou a singularidade?
        Como destacamos no início do texto, ambos são consequências lógicas possíveis da maior complexidade tecnológica que trouxemos para nossas vidas. Excluídos os cenários mais catastróficos, que impliquem a extinção da humanidade, dificilmente poderemos cravar que um dos lados tenha triunfado.
        A razão é que não há linha de chegada definida. Eventos X deverão se alternar com conquistas tecnológicas com potencial para transformar nossas vidas, condenando-nos a uma espécie de maldição de Cassandra, na qual as previsões mais otimistas serão desmentidas por acontecimentos trágicos, e visões muito pessimistas serão rechaçadas por avanços claros.
        Por ora, Diamandis/Kotler estão com a vantagem. Para começar, nós ainda estamos aqui. De resto avanços científicos e tecnológicos respondem pelo fato de vivermos hoje mais e, em termos materiais, muito melhor do que nossos antepassados. A expectativa de vida ao nascer saltou de 26 anos na Idade do Bronze para quase 70 anos hoje, chegando a 80 nos países desenvolvidos. A captura de calorias passou de cerca de 2.000 por pessoa por dia, a alimentação mínima necessária para sobreviver, para perdulários 228 mil no Ocidente.

          Publicidade faz pausa para pedir desculpa

          folha de são paulo

          Tentativas das agências de criar anúncios que fujam do lugar-comum muitas vezes resultam em comerciais ofensivos
          Corrida para divulgar alguma coisa rápido venceu o impulso de parar para pensar, diz publicitária americana
          DO NEW YORK TIMESAlguns dos maiores nomes do mercado publicitário se viram forçados recentemente a pedir desculpas aos consumidores, que montaram protestos públicos contra comerciais considerados ofensivos.
          "É como o Oeste selvagem", disse Paul Malmstrom, um dos sócios fundadores do escritório da agência de publicidade Mother, em Nova York. Pelo menos cinco grupos, envolvendo setores tão diferentes quanto carros, artigos esportivos e bebidas, viram recentemente suas marcas envolvidas em polêmica (veja quadro ao lado).
          Especialistas em publicidade oferecem uma longa lista de motivos para a crescente frequência dos incidentes.
          SER DIFERENTE
          Mas a razão primária para que continuem a acontecer, dizem, é a crescente ansiedade das agência para criar publicidade que atraia a atenção e escape ao lugar-comum.
          "É a pressão pela criação de publicidade viral', a necessidade de obter mais público on-line, que leva as pessoas a correr riscos", disse Tor Myhren, presidente e diretor de criação da Grey NY.
          Ele acrescentou que outro fator para isso é o foco em consumidores mais jovens.
          "Nas reuniões, todo mundo quer tentar descobrir como falar com a geração milênio", afirma.
          David Schwab, vice-presidente sênior da Octagon First Call, parte do grupo Octagon de marketing esportivo e de entretenimento, disse que a marca usava astros para "criar conscientização e criar diferenciação".
          CELEBRIDADES-BOMBA
          "Mas uma celebridade que pode fazer diferença sempre envolve um risco elevado", disse Schwab, o que significa que "há mais pressão sobre as marcas para que sejam cuidadosas."
          Schwab disse que anunciantes precisam parar para considerar cuidadosamente antes de fechar contratos com celebridades, "descobrindo qual é a história dessas pessoas, o que suas letras dizem, como interagem com os fãs --pode ser que uma simples busca no Google baste".
          Bob Garfield, crítico veterano de publicidade e autor de "Can't Buy Me Like", disse que a situação é agravada pela cultura de internet que tanto agrada à geração milênio, descrita por ele como "área sem fronteira".
          Em sua avaliação, "reina um senso de permissividade" na cultura web.
          Portanto, acrescentou, não deveria causar surpresa que "incríveis erros de julgamento" aconteçam regularmente, da parte de grandes marcas e agências de publicidade.
          PARAR PARA PENSAR
          Nancy Hill, presidente da Associação Americana de Agências de Publicidade, disse que "a corrida para divulgar alguma coisa no Twitter e conquistar aprovação nas redes sociais" sobrepujou o impulso de "parar para pensar e garantir que o anúncio esteja executado da exata maneira pela qual você gostaria de vê-lo recebido".
          Myhren diz que sua agência submete todos os anúncios que cria a uma revisão legal por parte de seus advogados. Ele acredita que os clientes que veiculam seus anúncios façam o mesmo. Ou que, pelo menos, deveriam fazê-lo.
          Ainda assim, "veremos mais" controvérsias publicitárias, ele previu, até que "surja um incidente realmente horrível, algo que acontecerá a um dos maiores anunciantes e fará com que todo o mercado reconsidere seus mecanismos de controle".

            PERDE O AMIGO, MAS NÃO A PIADA
            5 exemplos de comerciais polêmicos
            1 FALSAS MULHERES AMORDAÇADAS
            Executivos da JWT India foram demitidos por criar anúncios falsos para o Ford Figo, com mulheres amarradas e amordaçadas no porta-malas de um carro dirigido pelo ex-primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi
            2 ANTIMEMÓRIA
            A Pepsi rompeu o contrato de sua marca Mountain Dew com o rapper Lil Wayne, por causa de uma letra considerava ofensiva a um adolescente negro assassinado no Mississipi em 1959
            3 DROGAS E SEXO
            A Reebok rompeu seu contrato com o rapper Rick Ross por música que falava em drogar uma mulher e fazer sexo com ela sem que ela soubesse
            4 SUICÍDIO ECOLÓGICO
            A Hyundai do Reino Unido retirou no mês passado um comercial que mostrava um homem que falhava na tentativa de suicídio por gás porque seu carro tinha emissões zero
            5 CHING CHING
            A General Motors retirou um comercial do Chevrolet Trax que se passava nos anos 30 e trazia um remix de uma canção da época com referências a chineses como "ching chi

              Dois sonetos - Garcilaso de La Vega,tradução Nelson Ascher

              folha de são paulo

              IMAGINAÇÃO
              prosa, poesia e tradução
              Dois sonetos
              E outros versos de amor e humor
              GARCILASO DE LA VEGATRADUÇÃO *NELSON ASCHER*

              Estou sem pausa em lágrimas banhado,
              Rompendo sempre com suspiros o ar,
              E o pior é que não ouso vos contar
              Que é por vós que me encontro nesse estado;

              (Estrofe inicial do soneto n. 38)

              Canção, eu disse mais do que mandaram
              E menos que pensei;
              Não me perguntem mais, porque eu direi.

              (Trecho da canção n. 2)

              "Que acusações são estas
              Que vós lhe quereis lançar?
              Tudo o que fez foi dançar."
              Tem-se isto por grande culpa?
              Mas não o foi, a meu ver,
              Porque tem como desculpa
              Ter sido obra da mulher.
              Esta o levou a cair
              Muito mais do que o saltar
              Que realizou ao dançar.

              (Trecho de "villancico" escrito para dom Luis de la Cueva)

              Ninguém pode ser, senhora,
              Nem feliz nem desgraçado
              A não ser que te haja olhado.
              Pois o júbilo de ver-te
              Some se se chega ao ponto
              De se julgar merecer-te,
              Portanto, sem conhecer-te,
              Ninguém pode ser, senhora,
              Nem feliz nem desgraçado
              A não ser que te haja olhado.

              (Copla n. 8)

              As pessoas estão todas
              Pasmas, que a falar puseste
              De um milagre que fizeste
              Justamente numas bodas;
              Hás ainda, a meu juízo,
              Caso sigas tal caminho,
              De transformar água em vinho
              Como antes a dança em riso.

              (Copla n. 7)

              Destino causador de minhas dores,
              Como eu senti o rigor de tuas leis
              Pela terra espalhando fruta e flores,
              Cortaste a árvore com mão cruéis.
              Em pouco espaço jazem meus amores
              Bem como as esperanças minhas. - Eis
              Que em cinzas que desdenham meus clamores
              E aos meus ais surdas, tudo se desfez.
              O pranto, pois, que nesta sepultura
              Já se chorou e ainda hoje se chora,
              Recebe, embora ali te chegue em vão,
              Até que feche, a eterna noite escura,
              Meus olhos que te viram viva outrora
              E outros olhos me dê, que te verão.

              (Soneto n. 25)

              Vosso semblante levo na alma inscrito
              E tudo o que escrever de vós anseio,
              Vós sozinha o escrevestes -- eu o leio
              Tão só, vos respeitando mesmo nisto.
              Mas algo em que hoje e no porvir persisto,
              Embora em mim não caiba quanto exposto
              Já vi de vós, com fé por pressuposto,
              No bem que não entendo eu acredito.
              Nasci só para amar-vos com empenho;
              Minh'alma vos talhou à sua medida;
              Minh'alma que, habituada, vos adora;
              Confesso vos dever tudo o que tenho;
              Por vós nasci, por vós eu tenho vida,
              Por vós eu morreria e morro agora.

              (Soneto n. 5)