Quando provocadas naturalmente, chamas são benéficas e ajudam a renovar fauna e flora. Estudo mostra que interferência no processo pode causar danos irreversíveis às florestas
Paloma Oliveto
Estado de Minas: 08/02/2013
Brasília – Há cerca de 12 mil anos, o Homo sapiens passou a cultivar a terra. Depois disso, a relação com o ecossistema nunca mais seria a mesma. De mero caçador-coletor que perseguia bestas selvagens e aproveitava frutos caídos no chão para se alimentar, ele se tornou senhor da natureza. Aprendeu a queimar a vegetação nativa para plantar, fertilizou o campo, delimitou áreas para abrigar os animais já domesticados. A interferência foi fundamental para o desenvolvimento da espécie – sem a agricultura, não existiria uma civilização. Contudo, ao longo dos milênios, o homem passou dos limites e, agora, enfrenta o risco de um colapso na biodiversidade.
O alerta está no artigo de capa da edição de ontem da revista Nature. Pesquisadores canadenses mostram, na prática, o que ecólogos têm avisado há muito tempo: o manejo equivocado da terra pode levar à perda irreversível dos ecossistemas. Durante uma década, os especialistas monitoraram uma área de savana de 10 hectares ao sul de Vancouver, parte da Província Florística da Califórnia, uma das florestas mais ameaçadas do mundo e que ocupa parte do Canadá, dos Estados Unidos e do México. O trabalho não foi apenas de observação: os cientistas provocaram incêndios na região diversas vezes, para testar a capacidade de recuperação do ecossistema. Ocorreu o que eles imaginaram: a vida não conseguiu renascer, resultado de uma pressão exercida pelo homem durante 150 anos de exploração predatória.
A estratégia dos cientistas de incendiar a região para tentar fortalecê-la pode parecer estranha, mas, ao contrário do que muita gente imagina, o fogo não é, necessariamente, um inimigo das florestas – há, inclusive, um ramo que estuda a importância das labaredas nos ecossistemas, chamado ecologia do fogo.
Quando ocorrem naturalmente, as chamas são essenciais para o ciclo de renovação da fauna e da flora. “Pode parecer paradoxal, mas algumas plantas nem conseguem sobreviver sem as chamas. O fogo inicia um processo natural ao fertilizar o solo com matéria orgânica. A chuva, então, move os nutrientes para o solo, o que ajuda as árvores a produzirem sementes renovadas e mais férteis”, explica o biólogo e especialista em análise de anéis de árvores Thomas Swetnam, pesquisador da Universidade do Arizona, que não participou do estudo.
“Além disso, com menos competição no solo, as plantas semeadas crescerão mais rápido”, diz Swetnam. Ele ressalta, contudo, que o processo só é benéfico quando a natureza providencia as chamas, o que pode ocorrer devido à queda de um raio, a terremotos ou a ondas de calor – exceto aquelas provocadas pelo aquecimento global de origem humana. Há, também, claro, as queimadas de manejo, executadas por especialistas para tentar recuperar ambientes deteriorados. “Mas esses casos exigem um conhecimento bastante aprofundado da área. O cientista tem de saber exatamente o que está fazendo para não comprometer ainda mais aquele ecossistema”, observa.
Na região canadense da Província Florística da Califórnia, essa estratégia não surte mais efeito, como mostra o estudo publicado na Nature. O local, convertido em área de proteção no fim do século passado, foi explorado de forma predatória durante quase 150 anos. Os primeiros colonos chegaram em 1840 e começaram a devastar as milenares sequoias, endêmicas do local. No lugar desses verdadeiros fósseis vivos foram semeados grãos para a agricultura comercial. As consequências não demoraram a aparecer: “Três décadas depois, o alce estava extinto. Os colonos suprimiam o fogo para não destruir as culturas agrícolas; isso impossibilitou a recuperação da floresta. Quando a exploração agrícola foi proibida, a diversidade original da flora estava extremamente comprometida”, conta Andrew MacDougall, pesquisador do Departamento de Biologia da Universidade de Guelph e principal autor do estudo.
Instável A interferência humana deu origem a um solo altamente produtivo para grãos e cereais, além de resistente às flutuações de temperatura. Contudo, ao reintroduzir o fogo no ecossistema, os pesquisadores notaram como sua supressão forçada havia comprometido a estabilidade ambiental. As primeiras queimadas começaram em julho de 2000 em 20 áreas específicas dentro da região de 10 hectares e foram repetidas até 2009. Nos locais onde a monocultura predominava, a vegetação entrou em colapso: a cobertura de gramíneas foi substituída por ervas daninhas, cardos e árvores que cresceram de forma desordenada, resultando em um cenário desarmonioso e insustentável. Essa combinação de plantas deixou a região mais vulnerável a incêndios de grandes proporções, fornecendo combustível em excesso para as labaredas.
Por outro lado, nas áreas onde uma considerável variedade de plantas nativas conseguiu resistir aos avanços agrícolas, a reintrodução do fogo não desestabilizou o ecossistema. Na estação seguinte, diversas espécies de flores, gramíneas e árvores reapareceram, sem sinais de colapso ambiental. “A biodiversidade pode estabilizar sistemas ecológicos por causa da complementação funcional, com diferentes espécies florescendo sob condições diversas e, com isso, amortecendo os efeitos de mudanças ambientais”, assinalam os autores do artigo, para quem a pesquisa traz importantes implicações na área de manejo ambiental. “A maior parte das análises sobre a interação do fogo com o ecossistema se sustentam sobre dados esparsos obtidos por satélites e quase nunca retratam a complexidade no nível do solo, onde o manejo é realizado”, concorda Roger Otmar, pesquisador da Faculdade de Recursos Florestais da Universidade de Washington.
Para Andrew MacDougall, além do alerta sobre a instabilidade que uma queimada pode provocar em regiões onde o fogo foi suprimido artificialmente por muito tempo, o estudo reforça a importância da biodiversidade no enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas e ambientais.
“Basicamente, essa pesquisa mostrou que é a variedade de espécimes que evita o esgotamento do ecossistema em condições adversas e extremas, e a cobertura natural tem sido substituída por monoculturas agrícolas. O planeta está mudando devido à crescente interferência humana, então as pessoas precisam saber o que pode ocorrer em decorrência dessa ação.Mesmo regiões aparentemente estáveis como as áreas de cultivo de cereais podem entrar em colapso quando perturbadas. Acredito que isso pode servir de alerta”, diz.
Absorção de carbono ameaçada
Florestas tropicais desempenham importante papel no planeta porque absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio. Contudo, a quantidade de CO2 que elas armazenam ou produzem varia muito de acordo com as condições climáticas anuais. Em um artigo publicado na edição on-line da revista Nature, pesquisadores da Universidade de Exeter e dos institutos Met Office-Hadley Centre e Nerc Centre for Ecology & Hydrology, da Inglaterra, mostram como essas flutuações provocadas pelas mudanças no clima deixam as florestas vulneráveis.
“Temos quebrado a cabeça há mais de uma década para responder à pergunta: a Floresta Amazônica pode morrer por causa das alterações climáticas? Nosso estudo indica que esse risco é baixo se as flutuações forem associadas com um aumento no plantio de árvores que absorvem grandes quantidades de carbono. Mas se ocorrer o contrário, podemos ver uma significativa liberação de carbono a partir dos ecossistemas tropicais”, afirmou, em um comunicado, o principal autor do artigo, Peter Cox, da Universidade de Exeter.
A pesquisa revela uma nova forma de descobrir o grau de sensibilidade de um ecossistema às mudanças climáticas. A chave é saber como ler as variações anuais das concentrações de CO2 na atmosfera. O dióxido de carbono aumenta a cada ano como resultado da queima de combustíveis fósseis e do desmatamento. Mas essa quantidade varia de acordo com o comportamento das florestas – se elas estão absorvendo ou lançando carbono –, e isso depende do clima. Quanto mais quente e seco, mais CO2 será liberado.Quando está úmido e ameno, o gás de efeito estufa é armazenado.
Os cientistas estudaram como essas variações anuais na concentração atmosférica de CO2 estão relacionadas às mudanças climáticas nas regiões de florestas tropicais. De acordo com eles, cerca de 50 bilhões de toneladas de carbono serão lançadas para cada grau centígrado a mais nos termômetros dos trópicos. Peter Cox disse que a descoberta traz um certo alívio: “Felizmente, essa liberação de CO2 é contrabalanceada pelos efeitos positivos do plantio de árvores, considerando o cenário que temos, até agora, do século 21. Então, no geral, as florestas vão continuar a acumular o carbono”. Contudo, o coautor do estudo, Chris Jones, adverte: “A saúde das florestas tropicais a longo prazo vai depender da habilidade que elas têm de resistir às pressões das mudanças climáticas”.