folha de são paulo
Guerra declarada
A tradicional troca de farpas entre representantes das humanidades e entusiastas das chamadas ciências duras deu lugar à guerra declarada.
No último par de anos, as escaramuças vinham se acumulando perigosamente. O físico Stephen Hawking em "The Grand Design", livro de 2010 escrito em conjunto com o também físico Leonard Mlodinov, decretou que a filosofia estava morta. Outro físico (eles não se cansam), Lawrence Krauss, foi apenas um pouco mais polido quando afirmou, em seu "A Universe From Nothing: Why There Is Something Rather Than Nothing", de 2012, que a filosofia não fez nenhum progresso ao longo dos últimos dois mil anos.
Um bom troco veio pela mão do filósofo Thomas Nagel ("Mind and Cosmos", 2012). O subtítulo da obra resume sua tese com perfeição: por que a concepção materialista neodarwinista da natureza é quase certamente falsa.
Mais virulento, o escritor e crítico literário Curtis White acaba de publicar "The Science Delusion", em que ataca amparado em muitos adjetivos os físicos mencionados bem como os novos ateus liderados por Richard Dawkins, neurocientistas e divulgadores de ciência, como Jonah Lehrer (que caiu em desgraça após ter sido apanhado em flagrante delito de fabricar uma citação).
Se esse é o tom no circunspecto e normalmente lento mercado editorial, as coisas são muito piores nas trincheiras de publicações mais ágeis, como revistas e blogs. Ali, as batalhas podem ser verdadeiramente sangrentas. Do mar de artigos que saíram, limito-me a
mencionar o texto de Steven Pinker estampado na semana passada em "New Republic", do qual falarei mais adiante.
O que tudo isso significa? De onde vem tanta rivalidade? Vale observar que as duas áreas começaram juntas. Aristóteles, por exemplo, filósofo "par excellence" é autor de vasta obra biológica e física (ainda que estas estivessem numa fase pré-científica). E a indistinção profissional prossegue relativamente sólida até o século 18. Francis Bacon (1561-1626), Blaise Pascal (1623-1662) e Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), para citar apenas alguns, merecem um lugar na história tanto por suas contribuições para a filosofia como para a ciência. Dali para cá, a crescente especialização do saber, magnificada a partir do século 19, vai fazendo com que os pensadores sejam cada vez mais identificados com uma disciplina específica, ainda que sigamos tropeçando em notáveis polímatas.
À especialização, é claro, correspondem métodos de trabalho diversos, que acentuaram as diferenças. Enquanto cientistas em geral contam com o amparo da empiria (que alguns chamam de realidade) para corroborar ou refutar suas hipóteses, distinguindo-as de meros palpites ou francos delírios, o pessoal das humanidades se pauta principalmente pelo método analítico, que não proporciona muitas oportunidades de "reality check". Vale observar aqui que existe uma hierarquia. A revolução científica começou na física, que é a mais matematizável das ciências empíricas, e depois seguiu para outros ramos, como a química, a geologia, a biologia e, em menor escala, a medicina.
Nos últimos anos, o esforço de cientificizar avançou mais um pouco, incorporando áreas que antes eram bastiões das humanidades, como a psicologia, a sociologia, a linguística, a arqueologia e parte da antropologia. Já há quem tente empregar a matriz evolucionista para explicar e analisar obras literárias, artes plásticas, o que deve assustar muitos críticos.
Coloque tudo isso no contexto de departamentos universitários que competem entre si por verbas, cargos e prestígio e temos a receita para a verdadeira guerra cultural em que essa rivalidade se desdobrou.
Um marco na fratura entre esses dois mundos foi a palestra que o químico e escritor britânico C.P. Snow (1905-1980) deu em Cambridge em 1959 e que logo se transformou no livro "The Two Cultures and the Scientific Revolution". Ali, Snow, num tom bem humorado, brinca com a ignorância científica das elites britânicas da época, que, embora dominassem o grego e o latim, eram incapazes de enunciar a segunda lei da termodinâmica (o equivalente científico de não ter lido Shakespeare) ou de definir "massa" e "aceleração" (o equivalente de não saber ler). O autor pedia que as autoridades educacionais dessem mais ênfase à cultura científica dos jovens.
Acho que em alguma medida o apelo deu certo. Não saberia dizer se o nível de preparo científico dos estudantes britânicos (ou de qualquer outro país) é adequado, mas o pêndulo definitivamente mudou de lado. As ciências são hoje as mais valorizadas em todas as universidades relevantes e já quase ninguém estuda o grego e o latim (o que é uma pena). "The Two Cultures" foi classificado em 2008 pelo "The Times Literary Supplement" como uma das 100 obras mais influentes do pós-guerra.
A disputa trouxe vários momentos interessantes. Um de meus preferidos (pelo bom humor e por evidenciar um problema grave das humanidades) é o célebre caso Sokal. Em 1996, o físico Alan Sokal, disposto a demonstrar a falta de rigor das ciências humanas, submeteu à revista "Social Text" um artigo-embuste que foi aceito e publicado. O texto era uma coleção de disparates em linguagem empolada, argumentando que a gravidade quântica é uma construção social e linguística. Depois que a fraude foi revelada, foi um deus nos acuda. Diga-se em favor da "Social Text" que, à época, ela não contava com sistema de revisão por pares.
Para ser justo, devo lembrar que algo semelhante fora feito com médicos --o caso Fox--, que
já descrevi numa coluna, o que mostra que esse tipo de problema não é exclusivo das humanidades. O problema, receio, é a arquitetura de nossas mentes, que se deixam facilmente seduzir por elementos não muito objetivos.
E quem tem razão nessa história toda? Eu, como representante das humanidades profundas (graduei-me em filosofia e cheguei a aprender grego e latim), mas que tenta acompanhar à distância o que acontece nas ciências, fico com Pinker, cujo texto mencionei mais acima.
Ali, o linguista e cientista cognitivo sustenta que a ciência não é inimiga das humanidades. Especula, muito apropriadamente, que alguns dos maiores filósofos da história, como Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Leibniz, Kant e Smith teriam ido muito mais longe se tivessem acesso ao conhecimento científico hoje disponível. Imaginem o arraso que Hume faria com o que sabemos hoje sobre o cérebro humano. E o que diria Kant, se pudesse deitar os olhos nos trabalhos qualitativos e quantitativos sobre dilemas morais e comparar as taxas de homicídios de diferentes povos?
O surpreendente, como diz Pinker, é que o pessoal das humanidades não esteja ávido por mais interações entre suas especialidades e as ciências e por "insights" novos e relevantes, venham eles de onde vierem.
As humanidades não estão em risco pelo avanço dos cientistas, ainda que empregos e prestígio universitário possam estar. Apesar das declarações meio destrambelhadas de Hawking e Krauss, a filosofia segue viva e firme, inclusive na cosmologia. Nem a física nem o método científico prescindem de uma ontologia, isto é, uma visão sobre o que existe e o que não existe, o que constitui a realidade, se é que ela existe. Essas questões, pelo menos por enquanto, não estão ao alcance da física se não por meio de especulações, ou seja, no que ela é idêntica à filosofia.
Também não é exatamente verdade, como acusam os das humanidades, que cientistas sejam um bando de arrogantes que se julgam donos da verdade. É claro que, individualmente, muitos cientistas são exatamente assim. Mas toda a ideia por trás do método científico é criar estruturas que, levando em conta a lista telefônica de propensões humanas para embarcar em canoas furadas, previnam o erro. A mais importante delas é o teste empírico. Se a teoria e a realidade (por mais precário que seja seu estatuto ontológico) estão em desacordo, pior para a teoria, por mais bela e elegante que seja. E, como esse modelo funciona muito melhor no papel do que na prática, decreta-se que todas as "verdades" científicas são provisórias, sujeitas a retificação e até revogação.
É justamente de um divisor desse tipo, algo que permita distinguir uma boa análise de um delírio, seja ele pessoal ou coletivo, que as humanidades se ressentem.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.