O GLOBO - 28/09/2013
Espremido hoje entre várias atividades e
viagens em trânsito e por vir, não tenho outra
saída senão apresentar em estado de devaneio
um rascunho das ideias que tenho que
preparar para expor na Feira de Frankfurt.
Parece tortuosa a situação, e é. A feira do livro
alemã, que começa no dia 8 de outubro,
tematiza este ano o Brasil. A mesa proposta
pelos organizadores, da qual faço parte,
tratará da “Formação e crise do discurso da
nacionalidade”. Descontada a imponência do
título, além de todas as mediações que o
desenvolvimento do tema exigirá, ele vem ao
encontro de perguntas que me faço, e que
batem numa questão atual que vejo poucas
vezes tratada, e que desde algum tempo
espera a oportunidade de ser trazida aqui.
Como este espaço tem acolhido interrogações
e devaneios, vamos lá.
Uma das ideias-força na constituição dos discursos
da nacionalidade tem origem no romantismo
alemão, e diz que o espírito de
uma nação se encontra nas manifestações culturais
do seu povo. Nos países colonizados com base no
escravismo a aplicação dessa noção, ao longo do
século XIX, se mostra evidentemente problemática:
seria preciso ao mesmo tempo mostrar e esconder
que a nação, para se reconhecer no povo, teria que
se reconhecer nos escravos. Numa cultura formada,
no entanto, na base de deculturações e aculturações
complexas, em que os escravos afro-brasileiros
absorvem e revertem a seu modo a cultura do
colonizador, sem falarmos na misteriosa presençaausência
do indígena, instaura-se um sintomático
negaceio, por parte das elites, entre negar, rasurar,
reprimir, e ao mesmo tempo deixar-se atrair pelas
manifestações populares que emanam da população
escrava e mestiça, evitando sistematicamente
nomear o seu caráter escravo e mestiço, que permanece,
nesse sentido, na ordem do tabu.
O modernismo avança, em grande parte, para dentro
desse tabu, sondando as possibilidades de conciliação
da elite ilustrada com o povo enigmático que
resulta dos traumas e das singularidades da colonização
anômala. “Os sertões” já tinha acusado fragorosamente
o problema, como resultado grandioso, que
é, do fracasso da utilização das categorias científicas
do tempo na visão do povo que emerge da Guerra de
Canudos. “Macunaíma” e “Grande sertão: veredas”
podem ser entendidos como formulações poderosas
desse nó, movidas pelo desejo de superá-lo.
Mário de Andrade dedicou a vida ao projeto de
conciliar o intelectual letrado com o povo analfabeto
e artista, e de elevar o Brasil a uma espécie de estado
ideal de resolução dessa dicotomia, dessa distância
e desse abismo. “Macunaíma” é uma formulação
rapsódica e trágica dos impasses contidos na
aposta, cheia de esperança, inquietação e dúvida.
Guimarães Rosa desata o nó a seu modo, criando todo
um sistema de recados secretos entre o universo
do não letrado e o do hiperletrado que ele é. “O recado
do morro” é uma viagem narrativa em que uma
canção popular oral revela-se aos olhos da alta literatura
que a lê, e o “Grande sertão”, um imenso recado
em que o livro que lemos vem da fala de um semiletrado
do mundo iletrado do sertão passando
pelas lentes da escrita do hiperletrado que o escuta.
Do samba à bossa nova e à MPB, de Villa-Lobos
e os compositores nacionalistas a Tom Jobim, da
antropofagia à Tropicália, de Graciliano ao Cinema
Novo, com todas as diferenças implicadas, a
cultura brasileira dos anos 20 aos 60 do século XX
foi movida em grande parte pelo desejo de equacionar
a nação na perspectiva de uma original combinação
do erudito com o popular. Combinação
que resta, aliás, como seu traço diferencial inequívoco.
E Brasília, com todas as suas contradições, e
sua grandeza, é o próprio símbolo de um projeto
nacional guiado pela elite intelectual modernista.
A ditadura veio marcar o fim desse ciclo de grandes
obras totalizantes. Junto com ela, a televisão em
rede nacional, ocupando todos os espaços e movendo-
se pelo território nacional com uma facilidade
que Macunaíma só tinha com a licença poética e
imaginária do folclore. Vou isolar abruptamente
um dado dessa nova realidade: a publicidade bombardeando
todas as classes sociais pela televisão
aberta com as promessas miríficas das mercadorias
às quais os despossuídos só têm acesso imaginário.
Antonio Risério fala disso no seu livro sobre as cidades
brasileiras, sugerindo a conexão mais funda,
não entre filmes violentos e violência, como se costuma
fazer, mas entre publicidade e violência. A relação
compensatória e descompensada entre essas
duas é um índice gritante de um estágio onde não
vigora mais aquela promessa de conciliação que
mantinha o povo no seu lugar de povo.
Ela é também um tabu dos novos tempos. Como
tratá-la de maneira não conservadora? E que veículo
se disporia a colocá-la em cena?