domingo, 5 de outubro de 2014

MARTHA MEDEIROS - Comida no prato

Zero Hora 05/10/2014

Daniel Filho é um diretor incansável, sempre disposto a novos desafios, mesmo já tendo conquistado seu lugar de honra entre os maiores nomes do cinema e da tevê brasileira. Quando ele tinha 72 anos e filmava o longa-metragem sobre Chico Xavier, alguém perguntou por que ele não parava de trabalhar. Ele respondeu: Minha mãe me ensinou a nunca deixar comida no prato. E tem comida no prato.

Filosofia do dia a dia. Está explicada a dificuldade que muitos sentem ao se aposentar. Ainda tem comida no prato. É uma sensação comum também a todos os que são sutilmente convidados a saírem de cena, tendo suas solicitações de emprego negadas ou deixando de serem chamados para participar de reuniões familiares e sociais. Como assim, se ainda tem comida no prato?

Mais do que comida no prato, ainda existe fome.

O ser humano aceita a ideia da morte (real ou figurada) apenas quando não se reconhece mais como um faminto, quando o corpo cansa, a mente falha e a alma pede pra sair. Quando não há mais vontades, desejos, planos. Quando não vê mais necessidade de alimentar-se do que a vida oferece – música, cinema, amigos, natureza, sexo. Quando não há mais um sonho para renovar a energia, um projeto passível de realização, nenhuma esperança de que amanhã tudo possa mudar. Quando a sensação for de completo enfado. Quando não houver mais comida no prato.

Será que esse dia chega, mesmo?

Às vezes me consola pensar que sim, que chegará o dia em que estarei esgotada de tantas emoções vividas, de tanta agitação em volta, e a ideia de descansar em paz não será tão aterrorizante. Trabalho feito, missão cumprida, uma vida aproveitada até a rapa – o que mais se pode querer? A comida some do prato e levantamos da mesa sem a sensação de estarmos nos antecipando. É um plano de retirada maduro e consciente.

Porém, converso com pessoas que estão na chamada terceira idade e elas me dizem: não mesmo. Não é assim. “Quero mais”, dizem todas elas, mesmo com artrite, catarata, andando de bengala. “Quero mais.” Alcançam o seu prato para o chefe da cozinha e exigem uma porção adicional, e mais uma, e outra, e de novo. Quem ousará acusá-las de fominhas?

Para quem encara o fato de ter nascido como um privilégio, para quem não permite que suas potencialidades, mesmo reduzidas, sejam vencidas pelo desânimo, para quem domina a arte de temperar o convívio com as pessoas que ama nunca chegará o dia de declarar-se satisfeito. Aos 79, aos 84, aos 91, aos 98: enquanto a vida parecer suculenta, ninguém há de cruzar os talheres.

Radiofônicas II - Eduardo Almeida Reis

Radiofônicas II


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 05/10/2014



Conforme prometi, passo a falar dos programas radiofônicos de que participei em BH. No primeiro sofri para acompanhar o jornalista Lauro Diniz, admirável causeur que encantava os ouvintes da Rádio Inconfidência. Remuneração ridícula. No fim do mês sobrava alguma coisa em torno de 10 reais, às vezes 15: trabalho escravo divertidíssimo. Você entra no Mercado Central e ouve de um desconhecido: “Sou médico e procuro ouvir o seu programa todos os dias”. Faz bem à alma. Quando nos demitimos solidários com o presidente da emissora, que deixava o cargo, tivemos a honra de ser apupados pelos imbecis de um sindicato, que se manifestavam diante da rádio soltando rojões de dois metros de comprimento.

Com raras exceções, sindicalistas são isto que a gente vê. Ainda outro dia, na televisão, sindicalistas paulistas faziam reivindicações salariais dançando, pulando e berrando diante das câmeras, sem que fosse possível entender aquilo que reivindicavam. Trata-se da manifestação barulhenta da imbecilidade humana, agravada, diante da Rádio Inconfidência, pelos rojões imensos.

Diverti-me à beça e à bessa com as tiradas do Lauro, tomei gosto pelos programas do gênero e tentei um outro, através de um sistema suposto de alcançar mais que 500 emissoras mineiras. Então, como sempre, nosso negócio esbarrou no patrocínio. Já falei dele uma porção de vezes e creio ter dito que, não por acaso, o famoso farmacêutico, escritor, orador, abolicionista e jornalista brasileiro se chamava José do Patrocínio (1854-1905).

Programa semanal de 50 minutos para ser veiculado de graça através da maioria das nossas emissoras tem um custo mensal. Aluguel de estúdio, dois ou três colaboradores que ganham uma tuta e meia, técnicos encarregados da transmissão via internet para centenas de emissoras que veiculam o programa nos horários de sua conveniência (incluindo seus patrocinadores regionais) – a brincadeira custava uns 80 mil mensais para permitir que os “donos, idealizadores e responsáveis” faturassem 10 ou 15 mil, a meu ver, justíssimos.

Aí, você procura um patrocinador e o encontra por um milhão e duzentos mil reais, desde que tire os seus 80 mil, pague os impostos e devolva o resto, cash, em metal sonante, ao benfeitor da pátria. Alfim e ao cabo, o país é grande, bobo e corrupto.

Bigodes

Que levaria um sujeito aparentemente normal a deixar crescer os bigodes? É pergunta que me faço sempre que deixo crescer os meus, como no momento em que componho estas bem traçadas. Minha moustache (em francês é substantivo feminino) vai para três meses e já não aguento me olhar no espelho, sinal de que em dois ou três dias dou cabo da barba que deixei crescer sobre o lábio superior. Dá um trabalho infernal, sem que o resultado seja bonito. Aliás, falar de boniteza depois de certa idade é meio difícil. Consola-me saber que Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain (1835-1910), meu guru número um, fumava charutos e cultivava um bigotão. Resta saber onde foi que Houaiss descobriu bigotão como aumentativo irregular de bigode.

Aurélio diz que a etimologia de bigode é controversa, Houaiss concorda, mas arrisca: parece ter a ver com a locução exclamativa germânica bî God “por Deus”. Em alemão, bigode é Schnurrbart no pequeno dicionário Michaelis português-alemão, mas você vai ao alemão-português do mesmo volume e não encontra Schnurrbart, sinal de que o dicionarista raspou o bigode como vou fazer daqui a pouco.

O mundo é uma bola

O dia 5 de outubro de 1143, ao contrário do que se possa imaginar, teve relação direta com um país descoberto em 1500: realizou-se em Zamora, Leão, a conferência de mesmo nome em que Afonso VII, rei de Leão e Castela, reconhece a independência de Portugal. Não fosse a Conferência de Zamora, os brasileiros estaríamos falando castelhano ou, o que seria mais grave, lunfardo, gíria originalmente de malandros de Buenos Aires (Argentina), que se estendeu a outros países do Prata. Em espanhol lunfardo significa “gatuno, ladrão”, atividade em que o brasileiro excele, verbo exceler: destacar-se ou salientar-se muito de outros; ser excelente; excelir.

Em 1414, abertura do Concílio de Constança, que resultou no fim do cisma da Igreja. Cisma, substantivo masculino, no caso significa “separação de uma pessoa ou grupo de pessoas de uma coletividade, especialmente religiosa”. O adjetivo cismado, regionalismo brasileiro, significa “prevenido contra alguém; desconfiado, acautelado”.

Em 1582, último dia do calendário Juliano. Oficialmente, de 6 a 14 de outubro os dias não existiram. Em 1768 o marquês de Pombal obriga, por decreto, os nobres portugueses antissemitas, que tivessem filhos em idade de casar, a promover casamentos com famílias judaicas. Na flor dos meus 18 aninhos tive namoradinha judia da melhor supimpitude.

Em 1897, fim da Guerra de Canudos. O sargento Mello, do nosso Exército, rastejou sob fogo inimigo para jogar uma granada na trincheira em que se abrigavam os últimos conselheiristas. Escusado é dizer que a granada não explodiu, o que obrigou o excelente sargento a repetir o rastejamento para jogar outra granada, que felizmente funcionou. Tive como chefe num banco oficial o senhor Leônidas, filho do sargento. Hoje é o Dia Mundial dos Professores.

Ruminanças
“Nas empresas jornalísticas, dia de muitas reuniões é dia em que ninguém faz nada” (R. Manso Neto).

EM DIA COM A PSICANáLISE » Seca e silêncio

Regina Teixeira da Costa - reginacosta@uai.com.br
Estado de Minas: 05/10/2014 



Essas duas palavras aparentemente não têm relacionamento direto, porém, o que vimos ocorrer com a nascente do Rio São Francisco reflete claramente o silêncio e a passividade com que o poder público e grande parte da sociedade lidam com a questão ambiental no Brasil.

A nascente secou sim por causa da pior estiagem da história do rio. Mas o ocorrido não se restringe à falta de chuvas. Também é consequência das ações do homem sobre a natureza. O desmatamento das matas ciliares e outras nas proximidades e o assoreamento do rio são igualmente causadores da desertificação do planeta.

Ainda nestes dias de seca, em que toda a mídia publica diariamente relatórios assustadores, vemos nas ruas lavarem passeios com mangueiras, vemos vazamentos e tanta falta de consciência que nos assusta. Qual seria o motivo dessa barbaridade? Alienação, desprezo pela vida do planeta, odiosidade, falta de educação?

Nenhuma campanha educativa foi lançada pelo estado e nada foi feito para conscientizar a população de que é preciso uma mudança de comportamento radical. E que cada um é responsável pelo uso razoável de um bem que é de todos, que vivemos numa coletividade. Sendo assim, cada um depende do outro.

Ocorre que até hoje nem mesmo coleta seletiva de lixo é feita corretamente pelos vários condomínios e residências na cidade. Alguns dizem que até o recolhimento é irregular ou inexistente. Que esperança podemos ter no futuro? O que será de nossos descendentes?

E nada disso é por desconhecimento de causa. É sabendo. E assim as pessoas contraem o vírus da Aids; assim elas têm câncer de pulmão porque fumaram toda a vida; cirrose porque beberam; matam porque querem o que o outro tem; roubam porque não acham que o trabalho lhes será lucrativo; e cobiçam conquistar por força aquilo que não conquistam pela competência.

E se disserem que sou simplista e que problemas sociais maiores são a causa disso, concordarei, lembrando, entretanto, que muitos vencedores de hoje saíram da extrema pobreza e triunfaram por seu próprio esforço.

Finalmente, agradeço por ter encontrado em meu caminho da ética psicanálise como recurso para não apenas suportar esse real duro de roer como também para entender um pouco melhor a conduta humana. Mas entender não resolve coisas fundamentais, que dependem de todos.

Mesmo assim, insisto: para a psicanálise, o homem está dividido entre a pulsão de morte e a de vida e há uma constante luta entre essas duas forças que o movem. Essa divisão nem sempre é conhecida racionalmente, o posicionamento cabe a cada um, mas nem todo ele é consciente, sendo parte da vida psíquica inconsciente. Nem sempre somos capazes das melhores escolhas. Simplesmente vai-se vivendo sem pensar no amanhã.

Talvez por nos sabermos mortais, agimos como se a batalha entre a morte e a vida estivesse perdida, posto que todos morrem no fim. Mas a vida não se resume à nossa existência curta e pontual. Além de nós, existe a continuidade da vida do planeta e daqueles que virão depois. E toda a construção da civilização caminha, apesar da curta vida de cada um.

A vida em jogo está para além da morte naqueles que darão continuidade à espécie e ao prolongamento da vida da Terra. Mas por que a voz dos educadores, intelectuais, artistas, homens públicos não surte reação? Por que nenhuma campanha expressiva até hoje? Por que não nos unimos incansavelmente em campanha pelo nosso maior bem? Por que o silêncio da maioria?