sábado, 28 de dezembro de 2013

Natais de antigamente - Luiz Mott


A Tarde/BA 28/12/2013

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br


Na minha São Paulo, o Natal sempre foi
a celebração festiva mais importante.
Em minha família, de forte tradição
católica, o Natal começava quatro semanas
antes, com o Advento, quando minha mãe
distribuía aos oito filhos uma cartilhazinha
com cenas do presépio, que deviam ser pintadas
a lápis de cor, à medida que realizássemos
pequenos sacrifícios que a Igreja estimulava
como preparação espiritual para o
nascimento de Jesus: deixar de comer uma
sobremesa, rezar alguns padre nossos a mais,
dar esmola a um pobre.

No começo de dezembro meu pai comprava
a árvore de natal: ou o espetudo pinheiro
araucária ou o cheiroso cipreste. Toda a família
se reunia para montar a árvore com
bolas multicolores reutilizadas por décadas
seguidas, algumas em forma de casinhas, gatos,
papais-noéis. As guirlandas eram muito
menos brilhantes que as chinesas de hoje em
dia. Usava-se muito algodão pra imitar neve.
O ponteiro da árvore tão bonito! Sobre a lareira,
o presépio completo, com o Menino
Jesus deitadinho na manjedoura: aí rezávamos
toda noite ao menos uma ave-maria ao pé do
menino Deus.

No dia 22 começava no quintal a preparação
do peru da ceia: metia-se-lhe goela abaixo um
copão de cachaça, pra amaciar a carne. Já bêbado
era então degolado e depenado comágua
quente, passando a noite numa vinha d’alhos
para tomar gosto. A farofa paulista comfarinha
de milho e muitos miúdos e linguiça é patrimônio
nacional. À meia-noite de 24, missa
do galo: toda família comungava. Ao voltar da
igreja, profusão de presentes debaixo da árvore,
a criançada em polvorosa. Era o Menino Jesus
quem trazia os presentes, não o Papai Noel.
Antes da ceia, oração de agradecimento,
comidas deliciosas, sobremesas com muito
chantilly, bolo inglês, castanha portuguesa,
nozes e amêndoas, tâmaras, pêssego, figo
fresco. Antes de dormir, a oração de toda
noite: “Menino Jesus, meu irmãozinho, eu vos
dou meu coraçãozinho. Meu anjo da guarda,
meu bom guardador, guardai minha alma
para nosso Senhor...” Noite feliz!


A mesma coisa de sempre - JC Teixeira Gomes


A Tarde/BA  28/12/2013

Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com



Em Salvador, hoje
detentora da pior
qualidade de vida do
Brasil, o fim do ano
foi marcado por boa
notícia: o prefeito
assegurou que
começarão sem
demora as obras
de recuperação do
Aeroclube Plaza Show




Os homens criaram a ilusão de que o tempo passa e sempre recebem a mudança de ano com grandes esperanças. Faz parte da psicologia humana. No fundo, o que todos desejam é a perspectiva de vidas melhores, mais dinheiro e amor, mais seriedade na condução dos governantes, mais felicidade no futuro que chega.

Esse elenco de esperanças quase nunca se concretiza, pois os fatos humanos invariavelmente se repetem ano após ano: guerras, crises, dificuldades de toda ordem em marcha avassaladora. Mas não é bom que percamos as ilusões. Façamos, então, o balanço bem mais fácil do que passou, pois a sabedoria do povo já consagrou que o futuro a Deus pertence.

Em Salvador, cidade hoje considerad como detentora da pior qualidade de vida do Brasil, o fim do ano foi marcado por boa notícia: o prefeito ACM Neto assegurou que em 2014 começarão sem demora as obras de recuperação do Aeroclube Plaza Show. Fato auspicioso. Aquilo tinha se transformado numa autêntica vergonha, a refletir inclusive a falta de competência de administrações anteriores. Era inacreditável
que tão maravilhoso espaço fosse lançado ao abandono, prematuramente degradado, e aliás muito mal planejado, numa sucessão de equívocos que marcaram o empreendimento desde o início. Tudo ali foi lastimável, na canhestra articulação do poder público com a iniciativa privada.

Agora, comacerto, o prefeito revelou que o Aeroclube se transformará num centro fechado, climatizado, com notável estrutura de lojas, cinemas e serviços. Faltou incluir um teatro, fica a sugestão. Citou ACM Neto a vinda de uma grande paisagista e arquiteta para dar forma à obra, que incorporará, para os usuários, a deslumbrante paisagem marítima da área. Isto poderá fazer do local uma realização única no Brasil. Lembro como padrão a ser imitado o notável shopping Vasco da Gama, em Lisboa, que parece flutuar nas águas do Tejo. Não era crível que o mar baiano permanecesse ausente do entorno do Aeroclube. É bom termos a consciência de que, mais do que pontos de compras e de lazer, shoppings são poderosos centros de convivência social.

Essa ideia de trazer um especialista de renome para planejar obras em Salvador deveria ser retomada pelo prefeito para outras obras fundamentais da cidade. A administração pública na capital e no próprio estado tem sistematicamente revelado um pensamento mesquinho, pequeno, responsável pela degradação do nosso tecido urbano e pela desfiguração das nossas tradições. O pensamento medíocre é responsável pela Bahia atrasada de hoje, repleta de sufocantes problemas que martirizam a vida dos cidadãos. No mundo inteiro, os governantes competentes convocam grandes especialistas, juntando-se aos talentos locais, para acelerar a solução dos problemas urbanos fundamentais.

O mesmo propósito de trazer um planejador de fora devia inspirar o prefeito na busca das soluções para o inconcebível trânsito baiano, que não pode continuar vivendo de improvisações, como agora ocorre. Salvador precisa urgentemente de uma revolução urbana, com a construção de ruas, viadutos, elevados e passagens subterrâneas. Já não é possível contemporizar com os engarrafamentos da zona do Iguatemi, da rua Oswaldo Cruz, no Rio Vermelho, da saída do Salvador Shopping, entre tantos outros lugares que transformamdiariamente a vida dos baianos num inferno. A avenida Tancredo Neves precisa ser replanejada, alargando-se nas laterais e expulsando dali o inconveniente posto de gasolina que atravanca o tráfego. E que a prefeitura não inverta prioridades: diante da magnitude dos problemas da capital baiana, não há o menor sentido em gastar recursos públicos na reforma da Barra.

Bem, com tantas coisas importantes a comentar, usei todo o meu espaço para falar de umas poucas questões de Salvador, mas creio que valeu a pena porque a cidade, desfigurada pelas últimas administrações, virou um caos. Ninguém imagina como nossa capital suportará o afluxo que se espera na Copa, pois a Bahia sediará alguns dos jogos mais esperados do torneio. E a cidade, não custa lembrar, sequer esboçou a realização das obras essenciais.


PRELO

CLARICE E DE CHIRICO


A obra de Clarice
Lispector,
publicada no
Brasil pela
Rocco, continua
ganhando novas
edições pelo
mundo. Em
janeiro, na
Inglaterra, a
Penguin UK
publicará cinco
títulos da
escritora: “Perto do coração selvagem”, “Água viva”, “A hora
da estrela”, “A paixão segundo GH” e “Um sopro de vida”.
Alguns deles já haviam saído há vários anos por outra
editora inglesa, a Carcanet, de Manchester. As edições da
Penguin terão, porém, um atrativo a mais: as capas
ganharam reproduções de telas de Giorgio de Chirico, que
em 1945 imortalizou Clarice num retrato pintado na Itália


NOVO FERRONI
A editora Companhia das
Letras publicará, em abril, o
segundo romance do
escritor e editor Marcelo
Ferroni. Intitulado “Das
paredes, meu amor, os
escravos nos contemplam”,
a obra tem elementos da
literatura policial. “Método
prático da guerrilha”,
primeiro romance de
Ferroni, publicado pela
mesma editora em 2010,
ganhou o Prêmio São Paulo
Literatura de 2011 na
categoria autor estreante


CIORAN INÉDITO
Em fevereiro chegará às
livrarias, pela editora
Rocco, “O livro das ilusões”,
do romeno Emil Cioran
(1911-1995), ainda inédita
no Brasil. Com tradução
direta do romeno feita pelo
filósofo José Thomaz Brum,
“O livo das ilusões” é a
segunda obra de Cioran,
publicada pela editora
Cugetarea de Bucareste em
1936, quando ele tinha 25
anos e apresenta, nas
palavras de Dominique
Fernandez, que faz a
apresentação do livro, um
pensador em formação e
“ainda não petrificado no
niilismo”.


DITADURA MILITAR I
As editoras universitárias
pretendem aproveitar os 50
anos do golpe militar de
1964 para lançar novas
obras e reeditar outras
esgotadas. A Editora da
Unicamp vai relançar “1964
— Visões críticas do golpe”,
com organização do
professor Caio Navarro
Toledo e textos de nomes
consagrados, como
Florestan Fernandes,
Francisco de Oliveira,
Nelson Werneck Sodré,
Paul Singer e Ênio Silveira,
entre outros. A obra, de
1997, estava fora de
catálogo há alguns anos. A
Editora Unesp vai reeditar
“Em busca do povo
brasileiro: artistas da
revolução, do CPC à era da
TV”, de Marcelo Ridenti,
professor do
Departamento de
Sociologia da Unicamp. O
livro, um dos principais
estudos sobre a cultura
durante o regime, foi
lançado originalmente pela
Record em 2000. Já a
Editora UFMG vai lançar
uma coletânea de artigos
sobre as ditaduras do Cone
Sul, com foco nas
experiências brasileira,
chilena e argentina,
organizada pelo professor
Rodrigo Patto Sá Motta, do
departamento de História
da UFMG.


DITADURA MILITAR II
A Zahar prepara uma série
de lançamentos sobre o
regime militar que vigorou
no Brasil entre as décadas
de 1960 e 1980. Tanto que
vai lançar um selo especial
sobre o assunto: “1964,
cinquenta anos depois”. A
estreia ficará a cargo de “A
ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de
1964”, organizado por
Daniel Aarão Reis, Marcelo
Ridenti e Rodrigo Patto Sá
Motta. Outro livro da
editora sobre o assunto,
publicado em 2012, “A
política nos quartéis”, da
historiadora francesa Maud
Chirio, ganhou o Prêmio
Thomas Skidmore 2013, do
Arquivo Nacional.


MERGULHOS
“Mergulho na escrita” e
“Mergulho na memória” são
as duas oficinas que
acontecerão na Estação das
Letras, no Flamengo, a
partir do dia 13 de janeiro. A
primeira é com Silvia
Carvão e a segunda com a
escritora Ana Leticia Leal.
Informações e inscrições:
3237-3947.







Quintana ao vento - José Castello


O Globo 28/12/2013


NAS MÃOS DE MÁRIO QUINTANA, O LIRISMO É A LINHA COM QUE ELE COSE O MUNDO E O CONECTA AO SUBLIME


O que é a poesia? Como definila?
De onde, afinal, ela vem? “O
verso é um doido cantando sozinho./
Seu assunto é o caminho.
E nada mais!/ O caminho
que ele próprio inventa”, responde
Mário Quintana em um pequeno poema
de “Preparativos de viagem” (Alfaguara), livro
organizado por Italo Moriconi. O poema se chama
“O verso”. Em outro, “Música”, Quintana tenta
mais uma definição para o material de trabalho
do artista. “O que mais me comove em música/
são essas notas soltas/ — pobres notas únicas
—/ que do teclado arranca o afinador de pianos”.
Um afinador de pianos não tem um plano a seguir,
ou uma partitura a executar. Luta com as
notas tentando encaixá-las em seus lugares da
escala musical, mas enquanto luta produz estranhos
grunhidos. Gritos das notas, que não se
deixam domar. Restos da música, que enfim são
aquilo que dentro dela se guarda, aquela desordem
original de onde os sons provêm.

Lírica, a poesia de Mário Quintana se debruça
sobre as coisas do mundo para delas arrancar
sons. Delas arrancar poesia. O poeta trabalha com
materiais estranhos, que desconhece e que o desafiam.
Só o poeta? Diante de um espelho, Quintana
medita: “Esse estranho que mora no espelho/
Olha-me de um jeito/ De quem procura recordar
quem sou...”. O desconhecido e a ignorância não
são obstáculos, mas armas. Eles alimentam o poeta
— um homem qualquer, embora grave — e lhe
servem de combustível para a escrita. Podemos ler
em outro poema, “Extraterrena”: “Nós colhíamos
flores de hastes muito longas/ E cujos nomes nem
ao menos conhecíamos.../ E nem sequer, também
sabíamos os nossos nomes...”. Nesse ambiente nublado,
semelhante ao daquele que desembarca
em outro planeta, as palavras se mexem e fazer
sentido. Elas se alinham, se agarram, formam cadeias
e poemas.

É tudo muito precário. Exige muita destreza de
quem manipula. No “Haikai de outono”, ele se pergunta:
“Uma borboleta amarela?/ Ou uma folha
seca/ Que se desprendeu e não quis tombar?” A poesia
é um bicho limítrofe, que rasteja entre dois
mundos. Um pouco para lá, um pouco para cá, e para
lá novamente. É um balanço, um ritmo, uma dança
com as palavras. Em “Aeroporto”, o poeta nos leva
a ver que temos todos nomes deslocados, nomes
falsos, e que só uns poucos de nós merecem “nomes
verdadeiros”. No mais, temos todos “um nome reconhecido
apenas pelos anjos./
Mas eu reconhecerei o meu nome/
Como reconheço no espelho
a minha imagem/ de cada dia”.

O poeta trabalha na dobra: um
conhecer que é, ao mesmo tempo,
desconhecer. Uma descoberta
que é, ao mesmo tempo, susto.
Nessa fronteira, as coisas se
misturam e se incluem. “Pois
minha alegria inclui, também,
minha tristeza”, ele escreve. O saborear
das palavras abrange,
também, o conhecimento de sua futilidade. Está
em “O visitante matinal”: “Para que nomes? Era
azul e voava...” O poema começa e acaba aqui. A
coisa em si lhe basta, o nome parece um adorno
exagerado.

Contudo, um poeta continua a escrever. Sempre.
É sua sina e destino. Uma certeza secreta o guia:
depois do Apocalipse, ficarão as palavras. Um dia,
imagina ele, uma peste acabou com todos os homens
do planeta. Restaram só as bibliotecas. “E
nelas estava meticulosamente escrito/ o nome de
todas as coisas!” O poeta arremeda, aqui, a sina de
Arthur Bispo do Rosário, o artista que se sentia
obrigado a colecionar uma peça de cada coisa
existente para que elas sobrevivessem ao fim do
mundo. Fixar para perdurar.
Emoldurar (escrever) para não
morrer. A palavra como um sinônimo
de eternidade. No mais,
sobra uma memória em farelos,
como mais coisas trancadas do
que abertas. “De minha vida, o
que me lembro/ É uma/ Sucessão
de janelas fechadas...” Interessa
mais ainda o arremate:
“Nalgum país de sonho...” A memória
(sonho) feita de imprecisões.
Sutilezas. Toda poesia é
sutil, ou não é poesia. Existem sempre muitas janelas
fechadas no caminho de um poeta; mas ele,
em vez de se espantar, escreve.

A poesia, nas mãos de Quintana (1906-1994), era
um instrumento para borrifar lirismo sobre a realidade.
De coisas do mundo, comuns, rasteiras, ele fazia
coisas elevadas. Da banalidade, desentranhou
grandeza. É uma poesia flutuante, que fica a meio
caminho entre o sonho e o real. Ele mesmo nos diz
em “Poesia”: “Às vezes, tudo se ilumina de uma intensa
irrealidade/ E é como se agora este pobre,
este único, este efêmero instante do mundo/ Estivesse
pintado numa tela”. O efêmero — como um
pássaro enfim detido em uma frágil gaiola — enfim
retido nos limites das palavras. Só assim conseguimos
vê-lo. Vê-lo? Vislumbrá-lo. Senti-lo apenas,
talvez só. Fica para o poeta a mesma pergunta
que ele faz a Deus, em “A rede”: “Senhor,/ Que
buscas tu pescar com a rede de estrelas?” Não há
resposta. A poesia não inclui respostas e é isso —
esse silêncio cósmico — que o poeta deve suportar
para escrever.

Ali, o poeta reconhece o grande abismo entre as
duas partes do mundo que, com a palavra, ele luta
para unir. Um gato (em “O gato”) olha o poeta. Fita-
o. “Fitamo-nos”. Um abismo — exatamente ali
onde a poesia se estende, imensa rede — se abre
ele entre eles. Escreve Quintana: “Como duas criaturas
incomunicáveis e solitárias/ Que fossem feitas
cada uma por um Deus diferente”. Pois é isso, a
diferença, a matéria da poesia. Sem diferença, não
há poesia. Sem entre rasgão no Um, não há lugar
para a palavra e sua costura. Nas mãos de Mário
Quintana, o lirismo é a linha com que ele cose o
mundo e o conecta ao sublime.

Registra sua origem: “Venho do fundo das
Eras,/ Quando o mundo mal nascia”. Ao longo
dos séculos, a persistir sempre na mesma costura
delicada. “Sou tão antigo e tão novo/ Como a
luz de cada dia”, ele continua em “O poeta”. É o
tempo que se rasga ali onde a poesia surge. Passado
e futuro se atrelam no presente sutil da palavra
poética. Por isso mesmo, já não importa saber
que Quintana já está morto: sua voz continua
a reverberar pelos espaços do mundo, indiferente
ao ritmo dos relógios. No fundo, como nos diz
no comovente “O tio”, dedicado a um tio que
nunca teve: “É tudo sombra vã que agita o vento”.
A poesia, mostra Quintana, espalha sua manta
de vento sobre a eternidade para lhe moldar um
corpo amoroso.

A história não acabou - João Paulo


A história não acabou

João Paulo
Estado de Minas: 28/12/2013 



O cubano Leonardo Padura levou a experiência da literatura policial para seu thriller histórico     (Adalberto Roque/AFP)
O cubano Leonardo Padura levou a experiência da literatura policial para seu thriller histórico


Às vezes o que há de mais humano nas pessoas é o amor aos cães. E é por isso que, mesmo adversários radicais, muitos homens se igualam na capacidade de gostar de animais. O romance de Leonardo Padura O homem que amava os cachorros trata dos principais momentos políticos do século 20, da Primeira Guerra Mundial à derrocada do comunismo, sem perder nunca a dimensão da individualidade e de suas ricas contradições. É um romance extraordinário, que dá à história real uma dimensão que só é possível pela ficção, em sua liberdade e abrangência. O livro vale por uma biblioteca inteira de estudos acadêmicos e ainda diverte e faz pensar.

Leonardo Padura é cubano. Autor de romances policiais protagonizados pelo detetive Mario Conde, ambientados em seu país, inaugura um gênero literário com seu novo livro: o thriller histórico. Sua narrativa é ágil e, mesmo em quase 600 páginas, não perde um momento sequer de tensão. Cuba está presente como cenário e na voz do narrador. E é exatamente a dupla inscrição do livro, entre a história e a ficção, num equilíbrio feito com mão de mestre, que justifica que O homem que amava os cachorros seja considerado um dos romances mais importantes dos últimos anos.

O livro tem como projeto contar a história real, com seus personagens verdadeiros (e alguns inventados), a partir da ficção. E não é qualquer história, e muito menos habitada por personagens convencionais. A narrativa atravessa o século 20, chegando ao começo do 21, sempre em torno dos maiores fatos políticos do período: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a ascensão do nazismo, a polarização da Guerra Fria e a Revolução Cubana. No avesso desses momentos, o ocaso do sonho comunista e os descaminhos das experiências socialistas.

Há três personagens centrais no romance, dois reais e um fictício. O livro é dividido em capítulos que são narrados a partir de cada um dos protagonistas, em três focos distintos que se sucedem, que vão tecendo uma relação que se torna mais clara à medida que o romance se desenvolve. O primeiro personagem – e de certa forma figura central da história – é Leon Trotski (1879–1940), que aparece em seu embate político com Stálin, que o derrotou no comando da revolução, e faz de tudo para apagar sua figura dos rumos do comunismo, tachando-o de traidor, renegado e revisionista. Em busca de um exílio que permitisse manter sua atividade política, ele passa por vários países até chegar ao México, onde será assassinado com um golpe de picareta na cabeça.

A vida de Trotski é de uma riqueza única, pela força intelectual e humana do personagem, além do fato de participar de uma das mais renhidas disputas ideológicas do século 20. No arco temporal que vai da Revolução Russa aos primeiros momentos da Segunda Guerra, a vida dele se confunde com a do próprio período. Foram 20 anos que mudaram o mundo, pelo olhar da ação de um dos homens que ajudou a guiar a roda da história. O Trotski de Padura é também um homem que ama, que se preocupa com o destino dos filhos, e que também precisa da companhia de seus cães para se sentir melhor.

Matador
O segundo personagem é o jovem militante espanhol Jaime Ramón Mercader del Río Hernadéz (1913-1978). É ele que dá nome ao livro, o homem que amava os cachorros. Ramon Mercader entrou para a história como o assassino de Trotski, a soldo de Stálin. Mas nada é mecânico nessa história. Até ser recrutado pela polícia secreta da União Soviética, Ramon foi exemplo do revolucionário de todas as boas causas, tendo lutado na Guerra Civil Espanhola e dedicado sua vida ao comunismo.

O leitor fica conhecendo outro Ramon Mercader, não o matador de aluguel eternizado pela história oficial, mas o filho de Caridad del Río, uma mulher avançada para seu tempo. Ele entrou ainda adolescente para a luta política, foi preso, viveu na clandestinidade, uniu-se a uma revolucionária como ele, participou da luta armada e, em razão de sua coragem, foi recrutado em 1937 pela URSS. A missão que viria em seguida se colaria à sua pele como destino. Preso depois da morte de Trotski, ficou 20 anos encarcerado no México, de onde seguiu para a URSS e, em 1970, para Cuba, onde passaria seus últimos anos.

É em Cuba, quando tenta entrar em acordo com seu passado, que Mercader conhece o terceiro personagem do romance, o veterinário e aspirante a escritor Ivan Cárdenas Maturell. Como quem ata as várias pontas que foram sendo desfiadas ao longo da narrativa, ele vive, no momento, os dilemas que parecem ainda presentes na história, mesmo que essa deusa já tenha sido dada por morta.

Com o fim do comunismo na Rússia, a queda do Muro de Berlim e a crise em Cuba, sem a força ideológica que cimentou posições ao longo de décadas, Iván tem à sua frente um destino vivo. São dilemas reais de um país que busca se afirmar na transição de um regime que murcha e anda não divisa com clareza para onde caminha. O que há de mais forte é a insatisfação, que prega na pele como se a vida de verdade ainda estivesse para começar.

O homem que amava os cachorros é um livro que mostra que a história não acabou. Não apenas a história de Cuba, congelada de certa forma em projetos de outros tempos, mas a própria grande narrativa das utopias, algo que alimentou o mundo desde a aurora do século passado. A disputa entre Stálin e Trotski, o sentido da esquerda num mundo marcado por desigualdades, o papel da mão do homem nos rumos da política, a força construtiva e destrutiva das ideologias, o sonho revolucionário, a busca da liberdade, o eterno enredo do traidor e do herói – tudo isso se mantém pulsante na história narrada por Padura, por meio das vozes, sonhos e pesadelos de seus personagens.

Obra-prima de romance histórico, o livro é também um conjunto soberbo de caracteres recrutados entre os maiores e mais mesquinhos de um século que não acabou. E mostra que a história é feita de gente, algo que só o romance é capaz. O homem que amava os cachorros  passa a ser, ao lado do filme O assassinato de Trotski, de Joseph Losey (1972), e do romance A segunda morte de Ramón Mercader (1969), de Jorge Semprún, uma das obras artísticas que ajudam a compreender os homens, a história e a relação entre os dois universos. E dá a Trotski nova chance de se defender do silêncio a que foi relegado.


O homem que amava os cachorros
. De Leonardo Padura
. Editora Boitempo, 590 páginas, R$ 69



 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

Orelha


Estado de Minas: 28/12/2013 


Obras de Sigmund Freud ganham mais uma tradução em português (AFP Files)
Obras de Sigmund Freud ganham mais uma tradução em português


Antes da psicanálise

Com a entrada da obra de Freud (1856-1939) no terreno do domínio público, novas edições brasileiras surgiram para substituir a problemática tradução da Standard Edition, lançada no Brasil pela Imago a partir da versão inglesa. Depois da Companhia das Letras, da L&PM e até mesmo da própria Imago, com novo tradutor, chega agora às livrarias o projeto da Editora Autêntica, de Belo Horizonte. Intitulada Obras incompletas de Sigmund Freud, a coleção traz novas traduções feitas diretamente do alemão, sempre perseguindo o rigor filológico, o cuidado estilístico e a precisão conceitual. Os dois primeiros volumes são Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, até então inédito no país (por ser considerado pré-psicanalítico) e As pulsões e seus destinos, em edição bilíngue. Os livros trazem ensaios que comentam a obra freudiana e os percalços da tradução. A coleção é coordenada por Gilson Iannini e Pedro Heliodoro.


Mistério de Cecília

No projeto de reedição das obras poéticas de Cecília Meireles, a Editora Global se prepara para lançar Solombra, último livro de poemas da escritora, publicado originalmente em 1963. A nova edição celebra os 50 anos da obra e reúne 28 poemas envoltos por uma silenciosa atmosfera de mistério. Entre os temas estão a sombra, o tempo, a memória e a solidão. Puro simbolismo.


Vida de sambista


A Editora Casa da Palavra anuncia o lançamento da biografia do sambista Wilson Baptista, autor dos clássicos Mundo de zinco e O bonde de São Januário. O livro Wilson Baptista – O samba foi sua glória!, de Rodrigo Alzuguir, revela fatos inéditos da vida do compositor, gravado por Francisco Alves, Aracy de Almeida, João Gilberto e Paulinho da Viola. Entre as passagens curiosas da trajetória do artista está a polêmica com Noel Rosa, que rendeu sambas memoráveis em torno da fama de boêmio dos sambistas.


Voto e sociologia


Não há democracia sem eleições. E por isso, no campo da política, é fundamental compreender como se dão os diferentes processos eleitorais. O livro Comportamento eleitoral e comunicação política na América, organizado por Helcimara Telles e Alejandro Moreno, estuda as particularidades, afinidades e diferenças entre o comportamento dos eleitores latino-americanos, europeus e norte-americanos. Além disso, os ensaios focalizam especialmente a questão da comunicação nos processos eleitorais, com destaque para o uso da internet e redes sociais, cobertura da imprensa e campanhas eleitorais. Uma reflexão bastante útil para 2014. O lançamento é da Editora UFMG.


     (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press  )
Pepetela inédito


A Editora Leya lança no ano que vem romance inédito do escritor angolano Pepetela (foto), O tímido e as mulheres, que parte de um triângulo amoroso para fazer um retrato da sociedade angolana atual. A trama se passa na periferia de Luanda, habitada por mulheres fortes e homens fracos e dependentes. A obra do escritor vem sendo relançada no Brasil pela Leya, que este ano mandou paras as livrarias os romances Mayombe e A geração da utopia.


Mapa literário

A Editora Arte e Letra, de Curitiba, não tem medo de ser chamada de quixotesca. Na verdade, até se orgulha disso, como confessa no editorial do primeiro número da revista literária Mapa, que terá circulação bimestral. Com ensaios inéditos sobre livros e material traduzido da revista The York Review of Books e do jornal The New York Times, a publicação é gratuita e assume até mesmo as despesas de correio dos interessados. Os contatos devem ser feitos pelo endereço mapa@arteeletra.com.br. Apostando na força do papel, Mapa não terá edição eletrônica.


Viver bem
Conhecido como defensor do ócio criativo, o pensador italiano Domenico De Masi lança obra destinada a criar polêmica: O futuro chegou – Modelos de vida para uma sociedade desorientada. O ensaio defende que a qualidade de vida e a felicidade das populações influenciam o futuro do país. De Masi debruça-se sobre modelos socioeconômicos e religiosos já testados pela humanidade, com o objetivo de extrair o melhor de cada um deles.


Callado completo


A obra do escritor Antonio Callado (1917-1997, foto) ganha projeto de reedição integral pela José Olympio. Os relançamentos chegam às livrarias a partir de fevereiro, e contemplam os romances (entre eles Quarup e Concerto carioca), obras para teatro e reportagens. A editora quer lançar um volume por mês, até completar a série em sete tomos. Serão convidados especialistas na obra de Callado para escrever os prefácios, além de depoimentos de amigos do escritor.

 (Douglas Silva/O Cruzeiro/Arquivo EM)

Pessoas não humanas - Maurício Andrés Ribeiro

A forma como os homens percebem e tratam os animais varia entre as culturas e através dos tempos. A Índia, com sua história de valorização de todas as formas de vida, tem lições que merecem reflexão 



Maurício Andrés Ribeiro
Estado de Minas: 28/12/2013 


Vacas passeiam na rua do comércio de eletrônicos em Nova Deli, na Índia: tradição e modernidade convivem sem conflito   (Desmond Boylan/Reuters)
Vacas passeiam na rua do comércio de eletrônicos em Nova Deli, na Índia: tradição e modernidade convivem sem conflito


A Índia recentemente reconheceu os golfinhos como pessoas não humanas. Baniu os parques temáticos que os usam para diversão. Reconheceu que eles têm alto nível de inteligência e nos próprios direitos ao bem-estar, sendo inaceitável mantê-los em cativeiro.

A percepção dos humanos em relação aos animais, bem como as atitudes em relação a eles, variam ao longo do tempo e de cultura para cultura. Algumas civilizações têm uma perspectiva antropocêntrica e outras têm uma cosmovisão bio ou ecocêntrica. Para algumas, os animais são coisas e objetos, mercadorias, propriedades dos humanos; para outros, no outro extremo, eles são divindades. Alguns se ocupam de seu bem-estar, lembram a condição animal do Homo sapiens e os consideram como animais não humanos. Outros os elevam à condição de pessoas não humanas. Crescentemente tem-se estendido aos animais o status que se dá às pessoas físicas (indivíduos de carne e osso) e às pessoas jurídicas (empresas ou instituições). Tal atitude os retira da condição de coisas e os aproxima da condição humana.

No passado, vacas e outras espécies animais e vegetais foram divinizadas. Em religiões politeístas ou panteístas, os deuses assumem fisionomia e aspectos animais. Entre as grandes civilizações e tradições espirituais hoje existentes, a que mais explicita isso com clareza é o hinduísmo, no qual várias divindades têm expressão animal, a exemplo de Ganesh, homem e elefante; do boi Nandi, usado como meio de transporte por Shiva; de Hanumam, o macaco; ou da serpente Subramanian, entre outras.

Nas tradições hindu, budista e jainista, entre outras, os seres humanos são vistos como uma forma de vida e toda vida é respeitada e tem direitos a viver neste mundo.

“Vaca sagrada” é expressão por demais conhecida no Brasil e alude à relação dos indianos com os animais. Gandhi dizia que os antigos sábios de seu país tinham escolhido a vaca para ser sacralizada por sua importância nos serviços que presta e seu valor como uma segunda mãe para milhões de pessoas, a quem fornece o leite, o adubo, a força no arado e no carro de boi. Para ele, a vaca significava todo o mundo sub-humano, estendendo as simpatias, a empatia e a compaixão humanas para além de sua própria espécie.

A extensão aos animais do status de pessoa não humana, a sua sacralização e divinização, assim como os cuidados para com aqueles que prestam serviços de valor econômico, são aspectos de uma relação respeitosa e que os valoriza.

Na Índia, dois terços da energia usada no campo, para o arado ou para o transporte rural, provêm de animais de carga, principalmente mais de 80 milhões de bois e búfalos, um milhão de cavalos e outro tanto de camelos. O trabalho com os animais e a condução de 13 milhões de carros de boi empregam 20 milhões de pessoas.

Os indianos usam a ciência e a tecnologia para facilitar o desenvolvimento rural e para aprimorar as práticas tradicionais, agregando-lhes o conhecimento técnico e aprimorando o design. Quanto estudei na Índia, tive contato com pesquisadores a design de carros de boi. O projeto visava a reduzir o desperdício de energia animal, diminuir a crueldade com que eram tratados os animais que trabalham para o homem, modernizar o carro de boi e outros implementos agrícolas movidos a tração animal. O veículo foi redesenhado para reduzir sofrimento, danos e esforços desnecessários.

O projeto estimou que a capacidade de carga do carro de boi poderia ser dobrada sem sobrecarregar o animal. A redução do atrito por meio de uma plataforma mais leve, o redesenho das rodas, a utilização de pneus e diminuição do componente vertical de peso sobre o animal aumentam a vida útil do veículo, reduzem danos nas estradas e evitam o aparecimento de nódulos e de câncer no pescoço dos bovinos.

Não violência


A Índia apresenta uma longa história de valorização dos animais, por seu valor intrínseco e pelo valor dos serviços que prestam. As populações das aldeias respeitam os códigos religiosos criados por seus antepassados. Ainda hoje, há na Índia grande devoção pelos animais, que tem raízes na tradição religiosa e no princípio do ahimsa, ou não violência, que inclui tanto o mundo humano quanto o animal. Nos templos e em alguns centros de pesquisa do governo indiano podem ser obtidas preciosidades genéticas de espécimes de qualidade. O gado leiteiro de boa qualidade nos templos atende a necessidade de alimentar os pobres.

O relacionamento da população humana com a animal condiciona o tipo de desenvolvimento socioeconômico naquele país. Nas aldeias, cada búfalo ou vaca é objeto de cuidados domésticos. A alimentação e o pastoreio do gado são atividades diárias que ocupam as crianças e mulheres. À tardinha, eles são levados para pastar às margens das estradas ou nas terras públicas; à noite são levados para junto das casas de seus donos, para que o precioso esterco possa ser recolhido de manhã. Nas cidades indianas há uma diversidade de veículos nas ruas: riquixás, cavalos, camelos, elefantes, bois. Existe a convivência pacífica nas cidades, entre homens, bois, búfalos, macacos, pavões, corvos e outros animais.

Usa-se o boi vivo para o transporte, o arado e o adubo, mas evita-se que seja morto para servir como alimento.

O vegetarianismo baseia-se no princípio da não violência estendida para o mundo animal. Presente nos Vedas, antigos textos sagrados, tal princípio foi atualizado pelo budismo. A ideia de abstenção está presente nos principais preceitos e na ética budista, que propõe abster-se de causar danos a outros seres vivos. Os estudos de ecologia energética revelam a superioridade dos alimentos de origem vegetal sobre os de origem animal quanto à produtividade energética. O hábito vegetariano é muito menos impactante sobre o ambiente e o clima do que outros hábitos alimentares: a quantidade de água, de insumos agrícolas e a área de terra necessária para alimentar vegetarianos são menores que as necessárias para alimentar carnívoros.

Um cientista de ponta, o indiano Rajendra Pachauri, coordenador do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), recomenda diminuir o consumo de carne, de modo a reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

A civilização indiana foi guardiã de valores como a sacralização dos animais, a não violência estendida a eles, o vegetarianismo. Tais valores e práticas hoje influenciam pessoas de outras formações culturais em várias partes do mundo.

Seres vivos

Cientistas têm estudado a sensibilidade, a inteligência e a consciência nos humanos e as capacidades cognitivas e o comportamento emocional dos animais. Eles estudam os sistemas nervosos de polvos, de aves como o papagaio cinzento africano, de mamíferos. Também os mamíferos terrestres e marinhos (baleias, golfinhos) têm sensibilidade, afeto, consciência, inteligência. Os pesquisadores constatam afinidades no funcionamento cerebral entre essas diversas espécies e realçam processos evolutivos similares. Como os humanos, os animais têm percepção por meio dos sentidos. O olfato, a visão e a audição de cada um cobre faixas diferentes daquelas percebidas pelos humanos. Eles veem e percebem, portanto, outros mundos.

Animais não são coisas, são seres vivos, com afeto, sensibilidade, sentem dor e medo. Têm valor intrínseco. Estudos científicos resgatam essa forma de considerá-los.

O status de pessoas não humanas que a Índia concedeu agora aos golfinhos é uma referência para atitudes na mesma direção a serem tomadas em outras sociedades. Artistas e ecologistas de valor, como Paul McCartney, militam pela causa dos animais e sensibilizam a sociedade, que se mostra cada vez mais aberta a questionar os pressupostos utilitaristas que justificavam uma relação mercantilista dos humanos com os animais, tomados como mercadorias, com valor de uso e de troca. Estamos evoluindo de uma postura em que animais são considerados coisas usadas a nosso bel-prazer, para outra em que sejam valorizados como pessoas não humanas.

Tais mudanças no modo de relacionamento de nossa espécie humana com os animais, reconhecendo o seu valor intrínseco e natural, e não apenas o seu valor como coisa ou objeto a ser explorado economicamente, são partes da mudança cultural necessária para ingressarmos numa era ecológica, na evolução neste planeta.

. Maurício Andrés Ribeiro é autor de Ecologizar, Tesouros da Índia e Meio ambiente e evolução humana.

Crescer não é fácil

Crescer não é fácil
 
O artista francês Régis Loisel lança adaptação de Peter Pan em quadrinhos, em três volumes de luxo editados pela Nemo. Destinada a adultos, a série se distancia da imagem pueril criada pela Disney 



Valf
Estado de Minas: 28/12/2013 


Adaptação de Loisel tem rica palheta de cores e desenho sofisticado que amplia a força da narrativa literária     (Nemo/Reprodução)
Adaptação de Loisel tem rica palheta de cores e desenho sofisticado que amplia a força da narrativa literária
Quando se fala em Peter Pan, a primeira imagem lembrada, sem dúvida, é a do menino de roupa verde, chapéu com pena e uma pequena espada na cintura. Imagem eternizada pelo filme lançado pela Disney em 1953, no qual o personagem principal vivia suas fantásticas aventuras na Terra do Nunca ao lado da fada Sininho, dos Garotos Perdidos, de Wendy e de seus irmãos, e do terrível Capitão Gancho e seus piratas.

Concebida originalmente como uma peça teatral em 1904 pelo escocês James Matthew Barrie, veio a tornar-se livro apenas em 1911, com o nome de Peter e Wendy, posteriormente mudado para Peter Pan. Durante o último século, inúmeras releituras e adaptações foram feitas para a estória do “menino que não queria crescer” e uma dessas versões da obra infantojuvenil acaba de chegar ao Brasil. Foi lançado recentemente pela Editora Nemo o terceiro e último volume da série em quadrinhos Peter Pan, do francês Régis Loisel.

Com uma abordagem voltada para o público adulto, a história se passa como um prólogo para o livro de Barrie e, com a liberdade dada pela ficção, se aprofunda e alinhava importantes questões até então não levantadas na obra original. Quem é Peter Pan? Por que ele se recusa a crescer?

Publicada originalmente em seis volumes, entre 1990 e 2004, as mais de 300 páginas da HQ de Loisel criam com maestria um novo universo e dão respostas para aquelas perguntas. É preciso ressaltar que a base usada para isso em nada lembra os aspectos estéticos tão conhecidos de Peter Pan. A ambientação de Londres já nos mostra o quanto o artista francês se afasta dessas referências. É um lugar frio, sujo, cercado de párias de toda espécie. É nesse lugar que o personagem Peter vive.

Atormentado pelo conflito entre a fantasia do amor materno, que na verdade lhe falta, e a dura realidade do desamor de sua mãe alcoólatra, Peter busca na ilusão o seu refúgio. Seus amigos do orfanato (que mais tarde se tornariam os Garotos Perdidos) adoram ouvir seus casos e estórias, principalmente sobre os reconfortantes carinhos e afagos de sua mãe. E Peter, com todas suas forças, quer acreditar nisso também.

Porém, sua realidade é feita de outro material. Se no livro original o autor coloca os adultos em situações que poderiam justificar o desconforto em se tornar um deles (o pai das crianças, por exemplo, para se punir quando elas fogem com Peter Pan passa a viver na casinha do cachorro), Loisel dá reais contornos a seus medos e mais que razões para Peter abominar a ideia de crescer. A sedução de uma prostituta, a humilhação de ser despido em público em troca de bebida para sua mãe, um mendigo que tenta abusar dele... Enxotado de casa, Peter transpõe a realidade quando se encontra com a fada Sininho.

Novamente, não a referência conhecida, mas sim uma versão voluptuosa que mal cabe em seu corpete. Com a ajuda do pó mágico das fadas os dois voam para a Terra do Nunca. E é lá que Peter se encontra. Trazido como salvador dos habitantes da ilha contra a invasão dos piratas, pouco a pouco Peter vai se transformando e assumindo o papel de líder e vivendo suas aventuras. Mas a terra da fantasia pode ser tão cruel quanto o lugar de onde ele veio.

Medo profundo


Em uma passagem do primeiro volume, por exemplo, somos apresentados a uma criação da história em quadrinhos – Opikanoba – um lugar cercado de brumas eternas no qual quem entra tem que enfrentar seus mais profundos medos. E novamente a questão não resolvida com a figura materna vem à tona. Essa inadequação em relação ao sexo oposto aparece em vários momentos da trama, seja com a mãe, seja simplesmente não sabendo lidar com o afeto das outras personagens femininas.

Sininho, por exemplo, extremamente possessiva em relação a Peter, é levada à loucura por ciúme. No livro original, ela usa de uma artimanha para cometer um atentado contra Wendy e por pouco não consegue seu objetivo. Já na versão dos quadrinhos, é outra personagem que é vítima da cólera de Sininho e não tem a mesma sorte. Sininho, porém, tem na Terra do Nunca um valioso aliado: a falta de lembranças. Depois de um tempo as pessoas que vivem ali vão se esquecendo das coisas, até que as questões mais graves também acabam ficando no passado.

No decorrer dos três volumes, o autor vai construindo uma rica história, apresentada a partir de desenho belíssimo e uma extremamente bem cuidada palheta de cores, que consegue ao mesmo tempo ressaltar a dimensão decadente e arruinada quando retrata a Londres vitoriana, e as belezas das paisagens intocadas da Terra do Nunca.

Aos poucos cria um novo universo entremeado com o livro de J. M. Barrie para, de forma surpreendente e ambígua, nos deixar em aberto duas histórias paralelas que devem ser lidas com atenção. Uma sobre o passado do Capitão Gancho e outra sobre os assassinatos de Jack, o estripador.

PETER PAN
. De Régis Loisel
. Editora Nemo, três volumes, R$ 69 cada

A chapa esquentou - Ângela Faria


A chapa esquentou 
 
Livro de Júlio Ludemir seleciona 101 canções para convidar ao mergulho no universo do funk. Fenômeno surgido na periferia carioca toma conta das festas e marca posição na música popular
 
 
Ângela Faria
Estado de Minas: 28/12/2013 


Bailes funk são hoje realizados em todo o Brasil, com sucessos que deixaram os guetos e frequentam a lista dos mais vendidos   (Beto Magalhães/EM/D.A Press)
Bailes funk são hoje realizados em todo o Brasil, com sucessos que deixaram os guetos e frequentam a lista dos mais vendidos


Goste-se ou não do funk carioca, é fato: ele conquistou o seu espaço na música popular brasileira. Porta-voz das favelas e ainda considerado caso de polícia por muita gente, o batidão ganha livro em que sua trajetória é narrada por meio de 101 composições selecionadas pelo escritor e agitador cultural Júlio Ludemir, criador da Festa Literária Internacional das UPPs (Flupp) – a Flip da periferia. O jornalista Rafael de Pino e Écio Salles, ligado ao Centro Cultural AfroReggae, são parceiros dessa empreitada.

O songbook 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer (Editora Aeroplano) é um guia de canções. Não traz ensaios sociológicos, antropológicos ou estéticos, mas histórias que ajudam a compreender “a linha evolutiva” desse fenômeno cultural brasileiro, marcado pela proliferação de subgêneros e pela volatilidade de artistas. Enquanto velhos refrões são ouvidos até hoje nos estádios de futebol, incontáveis hits dos bailes fizeram apenas um verão – e ficaram nisso. Se Claudinho e Buchecha encantaram estrelas da MPB, outros MCs amargaram (e amargam) a sina de um sucesso só.

Se nos anos 1990 o som-de-preto-de-favelado chegou a emplacar sucessos no Programa da Xuxa, o funk carioca – estigmatizado depois do famoso arrastão na Praia de Ipanema – só se impôs graças ao rebolado do povão, seja nos bailes, na internet, desafiando a moral e os bons costumes ou fazendo troça da polícia. Ao proibir bailes que mobilizavam milhares de jovens da periferia, o governo fluminense entregou o funk de bandeja ao tráfico. A partir dos anos 1990, a festa se transferiu dos clubes de subúrbio para favelas dominadas por facções, as madrinhas do polêmico proibidão.

Hoje, o funk está no iPod da garotada, nas boates dos mauricinhos e nos discos de sertanejos universitários. Anitta, Naldo Benny, MC Leozinho e MC Koringa entram pela porta da frente do mainstream. Ao se tornar “funkeiro” e gravar Furdúncio para a trilha sonora da novela Salve Jorge, Roberto Carlos não veio “legitimar” o funk. O Rei simplesmente correu atrás.

“Na virada do século 20 para o 21, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social”, afirma a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda. Ela é articuladora da coleção Tramas urbanas, que convoca os próprios protagonistas da nova cena para contar sua história. Outros volumes da Aeroplano abordaram o tecnobrega, o hip-hop e a inovadora experiência da Daspu, a grife criada por prostitutas.

Tido quase como “ofensa” por seus adversários, que o acusam de propagar a violência, as drogas e a pornografia, o universo do batidão é multifacetado, adverte o jornalista Rafael de Pino. Há artistas talentosos, outros não. Boas composições e outras sofríveis, argumenta. Letras tanto falam de amor e do orgulho de morar na favela quanto de sexo explícito. Enaltecem chefões do tráfico, mas não deixam de trazer a crônica social de um Brasil marcado pela injustiça e desigualdade. O português é ruim, mas dá o recado.

O funk carioca está dentro da casa do pobre, do remediado e do rico. É tocado em novelas, festinhas no play, comemorações de formatura e nos alto-falantes de carros tunados. Esse “lixo cultural” está também no radar de vanguardistas militantes como Tom Zé. O tropicalista deu uma aula de estética a Jô Soares ao analisar – e cantar – Atoladinha no “programa do gordo”. O divertido papo começou nas catacumbas da Roma Antiga e no canto gregoriano, passou pela bossa nova e abordou o “metarrefrão microtonal e polissemiótico” do refrão de Bola de Fogo e as Foguentas para alcançar o gozo feminino, historicamente reprimido. Para desespero de pais e mestres, Atoladinha caiu no gosto da criançada, assim como Cerol na mão e Eguinha pocotó, com suas letras de duplo sentido.

Barraco


Marco zero do funk carioca, Melô da mulher feia, execrado pelas feministas, é o bulliyng em forma de batidão. Gravada em 1989, a letra traz grosserias machistas embaladas pelo tamborzão. O troco – digamos, ideológico – demorou. Mas veio: em 2004, Tati Quebra Barraco, debochada e nem um pouco submissa, cansou de cantar Boladona e Sou feia, mas tô na moda em boates de gente fina e em bailes da periferia. A MC da Cidade de Deus levantou a bandeira da sexualidade feminina – sem meias palavras. E avisou: quem paga o motel é ela. Nessa seara, Só um tapinha (MC Beth e Naldinho), literalmente, acabou em pancadão. Feministas pressionaram o Ministério Público Federal a agir, acusando os autores de banalizar a violência contra a mulher. A defesa veio do “andar de cima”: Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto gravaram a o hit funkeiro criticando o conservadorismo sexual por trás da polêmica.

Antes que se acorrente o tamborzão à baixaria, é bom avisar: funk carioca fala – e muito – de amor. Claudinho e Buchecha romperam o apartheid musical: incorporaram a levada pop e fazem o Brasil cantar até hoje delicadezas como Quero te encontrar, Só love e Conquista. Kid Abelha, Adriana Calcanhotto e Celso Fonseca gravaram sucessos dos rapazes. Posteriormente, MC Leozinho faria o Brasil namorar ao som de Ela só pensa em beijar, com direito a uma versão “joão-gilbertiana” de Celso Fonseca. Até o Rei Roberto cantou “se ela dança, eu danço” em seu programa de fim de ano.

Crônica social, Rap da felicidade (Eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci) fala de sonho, de cidadania e de autoestima. A consagração não se limitou aos bailes: quando o jogador Adriano trocou a Europa pela Vila Cruzeiro, o primeiro gol em sua reestreia no Flamengo foi saudado pela arquibancada com o refrão de Cidinho e Doca.

De um lado, o funk consciente critica a violência e defende a autoestima das favelas. De outro, o polêmico proibidão enaltece facções do crime que comandam e aterrorizam a periferia, descrevendo o morro que o asfalto não vê. MC Smith foi parar na cadeia por apologia ao tráfico. Em Vida bandida, ele canta a saga de um desses “poderosos” em meio a cordões de ouro, armas, BMW e sexo com patricinhas da Zona Sul: “Nossa vida é bandida/ E o nosso jogo é bruto/ Hoje somos festa/ Amanhã seremos luto”. A “consciente” Rap das armas (Júnior e Leonardo), sucesso no filme Tropa de elite ao desfiar o pesado arsenal do narcotráfico, ganhou versão que se tornou “clássico” do proibidão ao enaltecer o poderio do “movimento” no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. Seu refrão, aliás, conquistou fãs na Holanda. É cantado até pela torcida do time sueco Djugardens If Fotboll na hora de incentivar os craques...

Champanhe Mais recentemente, surgiu o funk ostentação, que trocou cidadania, armas, Comando Vermelho e versos picantes por champanhe, BMW, tênis caríssimos e grifes importadas. Despolitizado, talvez, mas não deixa de ser trilha sonora do Brasil enfeitiçado por shopping centers, cartões de crédito e pelo vício do consumo.

Há tempos, o batidão deixou de ser coisa nossa. Paul McCartney elogiou a pegada do Bonde do Rolê. Em seu novo disco, Beyoncé gravou Blue, com direito a clipe rodado no Brasil. Há várias cenas de jovens dançando o passinho funkeiro. Em setembro, no Rock in Rio, ela já havia rebolado ao som do grudento “ah lelek lek lek”. A contragosto de muita gente, o som-de-preto-de-favelado canibaliza o mainstream – e isso não se dá pelas beiradas. Ele já virou música de boate, toca no disco do Roberto e virou trilha de desfile de Stella McCartney, a estilista filha de Paul. Resta saber se esses novos endereços do baile, já tão distantes da favela, vão desafinar – de vez – o tamborzão...

101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER
. De Júlio Ludemir
. Aeroplano, 268 páginas, R$ 30

João Paulo-Em busca das origens (Autobiografia de Stephen Hawking‏

Em busca das origens 

Autobiografia de Stephen Hawking, Minha breve história apresenta de forma bastante sucinta a vida e as ideias do mais conhecido cientista dos nossos dias 



João Paulo
Estado de Minas: 28/12/2013 


O físico Stephen Hawking em seu gabinete de trabalho na Universidade de Cambridge   (Sarah Lee/The Science Museum/Reuters)
O físico Stephen Hawking em seu gabinete de trabalho na Universidade de Cambridge


O físico Stephen Hawking é a mais conhecida figura da ciência em todo o mundo. Contribuem para isso elementos científicos e pessoais. No que diz respeito às ideias, ele é um ousado pesquisador em física teórica e cosmologia, tendo desenvolvido pesquisas em torno do Big Bang, dos buracos negros e de novas concepções sobre o tempo. Além disso, ocupou em Cambridge a cátedra de matemática que pertenceu a Newton. Em física, paradoxalmente, quanto mais difícil o assunto, mais próximo do interesse do homem comum, já que as pessoas não querem saber de equações, mas de respostas para as grandes questões: a origem do universo, as viagens no tempo, o que são buracos negros. Esse é o campo de Stephen Hawking e vem daí parte de sua proeminência.

O outro motivo que faz do físico britânico de 71 anos uma das pessoas mais conhecidas do mundo é sua condição pessoal, uma doença incapacitante progressiva, a esclerose lateral amiotrófica, que foi retirando aos poucos os movimentos, até deixar o cientista preso numa cadeira de rodas, movimentando apenas um músculo do rosto, com o qual opera um computador. Ele escreve, letra a letra, o que dá ainda mais dramaticidade à sua obra. A imagem que passa é a de um cérebro poderoso, encarcerado em um corpo quase paralisado. Além disso, poucos portadores da doença chegam à idade que ele alcançou.

Stephen Hawking não diminui o impacto da doença em sua vida, mas está longe de ficar na lamentação. Mesmo criticando quem o valoriza sobretudo pela coragem em vencer obstáculos físicos, sabe que não pode falar de sua vida sem tratar da doença. Minha breve história é uma tentativa de equilibrar os dois lados. Com isso, consegue ser uma introdução útil à vida e obra do cientista. Quem quiser conhecer mais sobre Hawking tem outras obras disponíveis, como a extensa biografia escrita por seu colaborador, Leonard Mlodinow, ou mesmo seus livros de divulgação científica mais aprofundados, como Uma breve história do tempo e O universo numa casca de noz, já lançados no Brasil.

Hawking, até pela dificuldade em escrever, pesa bem as palavras (cada uma delas exige esforço que pode levar minutos) e os momentos que escolheu relembrar em sua autobiografia. E tem ainda o cuidado de entremear o texto com fotos, sempre expressivas, que substituem o que poderia estar num texto mais descritivo. O livro, com pouco mais de 140 páginas, é dividido em pequenos capítulos, que desde o título sintetizam o que será revelado, intercalando relatos sobre a vida pessoal (“Infância”, “Oxford”, “Casamento”) e acerca da pesquisa científica e ideias cosmológicas (“Ondas gravitacionais”, “Buracos negros”, “Viagem no tempo”).

Sobre a vida pessoal, Hawking revela aspectos que cativam o leitor: o fato de ter aprendido a ler apenas aos 8 anos, o prazer em brincar com trens elétricos e aeromodelos, a curiosidade em saber como funcionavam os diferentes mecanismos. Conta ainda da vida no pós-guerra, da relação com os pais e sobre as escolas que frequentou. Para o leitor brasileiro é particularmente interessante refletir sobre o funcionamento de um sistema educacional estritamente meritocrático, capaz de selecionar e investir nos alunos mais talentosos.

Casamentos


Chama a atenção ainda na vida de Stephen Hawking o lado familiar e os relacionamentos afetivos. Chega a incomodar a revelação de que Stephen, a pedido de sua mulher, Jane, que temia ficar viúva cedo com três filhos para criar, tenha aceitado a convivência de outro homem em sua casa. Quando considerou a situação insustentável, em 1990, decidiu sair de casa. Contratou uma enfermeira, Elaine, com quem viria a se casar. “Meu casamento foi apaixonado e tempestuoso”, escreve. Em 2007, ele se divorciou de Elaine e passou a viver sozinho, com o apoio de uma governanta. A saúde de Stephen Hawking piora a cada dia, obrigando a incorporação de novas rotinas e equipamentos para mantê-lo vivo.

A vertente propriamente científica de Minha breve história é ainda mais resumida e evocativa que a de outros livros de divulgação científica escritos por Hawking. Ele recorda do processo de produção de Uma breve história do tempo e do incômodo que causou a recepção da crítica. Com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, o livro foi mais comentado em razão da doença de seu autor do que por suas ideias. Hawking, no entanto, confessa que ficou lisonjeado em ver seu livro comparado a Zen e a arte de manutenção de motocicletas, de Robert Pirsig, por um jornal londrino.

Ao fim de suas memórias, depois de dizer que a deficiência não foi um obstáculo sério em seu trabalho científico (até foi vantajoso ao liberá-lo de certas tarefas burocráticas, deixando tempo integral para a pesquisa), completa seu balanço reconhecendo que teve uma vida prazerosa, que o permitiu conhecer pessoas e lugares interessantes, além de fazer seu trabalho com liberdade intelectual.

E sintetiza sua trajetória na ciência: “Meus primeiros trabalhos mostraram que a relatividade geral clássica colapsava nas singularidades do Big Bang e dos buracos negros. Minhas pesquisas posteriores mostraram que a física quântica pode prever o que acontece no começo e no fim do tempo. Tem sido um período glorioso para se viver e fazer pesquisa no campo da física teórica. Fico feliz se acrescentei algo ao nosso conhecimento do universo”. Poucos homens do século 20 poderiam escrever a sentença final do balanço de Stephen Hawking.

MINHA BREVE HISTÓRIA

. De Stephen Hawking
. Editora Intrínseca, 142 páginas, R$ 19,90