domingo, 26 de abril de 2015

No horizonte do espanto - Ronaldo Cagiano

No horizonte do espanto 

  Romance premiado de João Batista Melo evoca o clima tenso do período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial sob a perspectiva de duas crianças na Belo Horizonte dos anos 1940


Ronaldo Cagiano
Especial para o EM
Estado de Minas: 25/04/2015



oão Batista Melo: questionamento dos valores sob o crivo da justiça e do humanismo



 (Wladia Drummond/Divulgação)
oão Batista Melo: questionamento dos valores sob o crivo da justiça e do humanismo


Vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais e finalista do Prêmio Benvirá de Literatura (2014), Malditas fronteiras, do mineiro João Batista Melo, aborda a recorrente questão da insularidade do estrangeiro na ótica de duas crianças que, na Belo Horizonte da década de 1940, compartilham questionamentos e perplexidades, a reboque do clima de apreensão que antecede a 2ª Guerra Mundial.

Pelo olhares argutos de Valentino (filho de um empresário xenófobo) e da pequena e cega Sophie (neta de Konrad, um mestre cervejeiro alemão que vive a eterna busca da uma receita perdida de uma cerveja bávara) vão se descortinando tempos e geografias, numa simbiose entre presente e passado, diante da bruma indecifrável do futuro. Num movimento pendular entre Alemanha e Brasil, tendo Ettal e Belo Horizonte como cenários de suas deambulações afetivas e territoriais, a infância onírica é destronada, marcada tanto pelo medo e instabilidade emocional diante da possibilidade de ingresso do Brasil no conflito quanto pela amargura dos que, no exílio, assistem, inermes, ao plano bélico que desaguou no Holocausto.

Transcendendo o teatro dos horrores desse período e as tensões dos personagens que, com suas consciências, sutilezas e projeções psicológicas alimentam a trama e servem de sustentação a seu projeto narrativo, o romance também se particulariza pela linguagem extremamente delicada e poética, cujo acento diáfano não dissimula a dimensão trágica dos acontecimentos.

Entre o Brasil e a Alemanha, o romance de Melo é uma profunda e apaixonada discussão sobre valores, instaurando uma percepção ética e humanitária sobre a injustiça e os malefícios da intransigência e do preconceito, essas as verdadeiras e malditas fronteiras que empanam a beleza da existência e amordaçam qualquer espírito de compaixão pelo outro e pela diferença. Expõe o instinto maquiavélico e a pulsão de barbárie ainda tão enrustidas nas consciências das pessoas e dos líderes políticos e que afloram justamente nesses momentos catastróficos, de beligerância entre estados e nações.

Pelos olhos sensíveis de duas crianças, a narração ganha status de um profundo questionamento sobre a brutalidade desse mondo cane em que a realidade, com toda sua carga escatológica e apocalíptica, é desnudada por meio de uma aguda consciência crítica, mostrando as dicotomias e a incompreensão naquele momento da história.

O espaço abissal entre o ver e o sentir, quando está ausente qualquer possibilidade de entendimento, é simbolizado pela sensação de embate entre a cegueira real e a cultural, que a voz do velho Konrad, num dos momentos altos do livro, reverbera: “Cada ser humano percebia de modo distinto o sol e as florestas, a chuva e as pessoas com quem convivia, e em cada pupila se retratava algo diverso. Assim, havia um céu que era seu, nuvens que eram suas, orvalhos que eram seus. Mas uma posse por afinidade, não por propriedade. Tudo isso ameaçou mudar com o nascimento de Sophie cega, mostrando para Konrad novas formas de perceber o mundo”.

Malditas fronteiras, sem dúvida, é um dos mais significativos romances brasileiros contemporâneos sobre um tema milenar e recorrente na literatura universal, o do apartheid de raças e povos e as terríveis consequências do rastro de dilaceramento físico e íntimo dos que foram compelidos a uma existência de sombras e sustos, ao degredo do pré e pós-guerra, com seus escombros e espantos; enfim, ao despertencimento.

* Ronaldo Cagiano é autor de Dicionário de pequenas solidões    (Ed. Língua Geral) e O sol nas feridas (Dobra Editorial), entre outros.


TRECHO:

“As bombas vão libertar aqueles que estão presos na Alemanha, nos campos de prisioneiros. Vão acabar com o mal que ameaça dominar o mundo. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. É preciso que seus líderes percam a guerra. Que Hitler acabe. Que Mussolini acabe. Que Goebbels. Que Goering. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. E sei que preciso jogá-las porque senão eles matarão meus amigos, meus conterrâneos de Minas Gerais, há um monte deles por aqui. E então eu jogo minhas bombas. E sonho com aqueles homens todas as noites. Espero que esteja tudo bem em Belo Horizonte. Esse é um consolo. Persigo os fascistas alemães e italianos aqui para que eles não cheguem até a Serra do Curral ou até a Pampulha”.

Malditas fronteiras
. De João Batista Melo
. Editora Benvirá
. 289 páginas, R$ 32,50

 (Benvirá/Divulgação)

Heliodora, Bárbara - Jota Dangelo

Heliodora, Bárbara 

  A mais respeitada crítica de teatro do Brasil, Bárbara Heliodora deixa não só uma lacuna com sua morte, mas também um importante legado para a cultura nacional


Jota Dangelo
Estado de Minas: 25/04/2015



Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, ela foi ensaísta, tradutora, jornalista e crítica teatral
 (Vanor Correia/GERJ )
Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, ela foi ensaísta, tradutora, jornalista e crítica teatral


As artes cênicas perderam no último dia 10 a crítica teatral Bárbara Heliodora. Mais do que uma competente analista de espetáculos teatrais, ela era uma das mais importantes pesquisadoras do teatro brasileiro, defensora intransigente da modernização das artes cênicas no país, posicionando-se desde o início de sua carreira contra os remanescentes do “velho teatro” encastelados na Associação Brasileira de Críticos Teatrais e no antigo Serviço Nacional de Teatro. Uma luta histórica que ficou marcada pelos notáveis textos que a colunista escreveu naquele período.

Nascida no Rio de Janeiro em 29 de agosto de 1923, Heliodora Carneiro de Mendonça ganhou posteriormente o nome de Bárbara e, aos 12 anos, recebeu de presente de sua mãe, a poetisa Ana Amélia Carneiro de Mendonça, uma edição completa das obras de Shakespeare. Durante toda a vida manteve com a obra do bardo inglês uma simbiose existencial, íntima e permanente, que já em 1975, como acadêmica da USP/SP, resultou na defesa de sua tese de doutorado “A expressão dramática do homem político em Shakespeare”, publicada posteriormente em livro.

Consagrada como a maior autoridade do país em Shakespeare, Bárbara Heliodora foi responsável pela tradução da maioria das peças do dramaturgo, além de textos referenciais sobre sua obra, como Falando de Shakespeare, de 1997; Reflexões shakespearianas, de 2004, e Shakespeare: o que as peças contam – Tudo que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos, de 2014.

Fim de jogo

Bárbara Heliodora começou como colunista teatral numa época em que a presença feminina na imprensa, particularmente no âmbito teatral, era, para dizer o mínimo, inusitado. Antes de ela assumir uma posição na crítica teatral, somente duas mulheres haviam exercido a atividade e, mesmo assim, por pouco tempo: Luiza Barreto Leite, ligada ao Jornal do Commércio, e a inglesa Claude Vincent, na Tribuna da Imprensa.

No ofício de crítica teatral, exercida com inteligência arguta, humor ferino e sinceridade dolorosa, sem condescendências em razão de amizades e círculos de convivência no meio teatral, Bárbara atuou na Tribuna da Imprensa (1957 e em 1990), Jornal do Brasil (1958–1964), revista Visão (1986–1989) e O Globo (1990–2014). Foi no Jornal do Brasil que Bárbara Heliodora, pela primeira vez, decide estar atenta ao que se passava nas artes cênicas em Minas Gerais.

Em 12 de dezembro de 1959, aniversário de Belo Horizonte, o Teatro Experimental estava estreando nacionalmente a peça Fim de jogo, de Samuel Beckett, apresentada pela primeira vez em Londres apenas dois anos antes. Era difícil dimensionar para nós, do Teatro Experimental, nossa satisfação em fazer parte de um empreendimento como aquele. Beckett era referência mundial numa nova e surpreendente dramaturgia, iniciada por ele com o sucesso mundial de Esperando Godot, que antecedera a Fim de jogo.

Bárbara Heliodora também estava atenta às novidades cênicas e compareceu à estreia do espetáculo do Teatro Experimental no Teatro de Bolso do Museu de Arte da Pampulha, recém-reformado. No elenco de Fim de jogo estavam Silvio Castanheira, Neuza Rocha, Ezequiel Neves e eu mesmo, com direção de Carlos Kroeber, cenário de João Marschner e iluminação de José Carlos Almeida Cunha.

Senhorita Julia

A segunda proximidade de Bárbara Heliodora com o teatro mineiro ocorreu muitos anos depois, quando Priscila Freire decidiu pela montagem de Senhorita Julia, de Strindberg, com o Teatro Escola da Cruz Vermelha, criado por ela. Algum tempo antes, a requintada crítica teatral tinha apresentado no Teatro Marília, sob sua direção, A comédia dos erros, de Shakespeare, com um grupo do Rio de Janeiro. O espetáculo não fez sucesso, não atraiu o público e nem foi bem recebido pela crítica.

Daise Prates presidia a Cruz Vermelha e o Teatro Marília pertencia àquela entidade. O grupo teatral carioca tinha se apresentado no Marília a convite de dona Daise, razão pela qual a presidente da Cruz Vermelha em Belo Horizonte convenceu Priscila a convidar Bárbara Heliodora para dirigir Senhorita Julia, na tentativa de amenizar, ou reverter, melhor dizendo, o insucesso da comédia de Shakespeare. Não foi uma boa estratégia: Senhorita Júlia foi um fracasso. Mais do que isso: um desastre, no dizer da própria Priscila Freire, particularmente na curta temporada da encenação no Rio de Janeiro.

O relativo insucesso na direção de espetáculos em nada desmerece o talento, o brilhantismo, a competência, o poder analítico e a contribuição notável de Bárbara Heliodora como crítica e ensaísta teatral, como tradutora de textos teatrais e livros antológicos sobre o teatro. Mais do que isso: em maio de 1964, foi convidada para dirigir o Serviço Nacional de Teatro, ao qual imprimiu seu sopro renovador até 1966. Entre 1966 e 1971, dirigiu o Conservatório Dramático Nacional, onde também atuaria como docente, reduzindo sua atividade jornalística. Apenas em 1985 retomaria suas atividades na imprensa.

Formar público
A saída de cena de Bárbara Heliodora tem um sentido histórico. Ela foi a última grande crítica de uma geração de jornalistas culturais que se imbuiu de um objetivo missionário: formar o público por meio de seus textos. Entre estes jornalistas, que fundaram com Bárbara o Círculo Independente dos Críticos Teatrais (CITC) no final dos anos 1950, estavam Paulo Francis (1930–1997), Bricio Abreu (1903–1970), Edgar Alencar (1908–1993) e Henrique Oscar (1925–2003).

Em boa hora, a professora Claudia Braga, doutora em artes pela Unicamp, com pós-doutorado nas universidades de Paris III, Sorbonne Nouvelle e Lyon II, organizou e publicou pela Editora Perspectiva, em 2007, o volume de 948 páginas Bárbara Heliodora – Escritos sobre teatro, registro indispensável da obra crítica e ensaística de uma das figuras mais importantes do universo das artes cênicas no Brasil.

* Jota Dangelo é diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural 

EM DIA COM A PSICANáLISE » Palavra parada

EM DIA COM A PSICANáLISE » Palavra parada


Regina Teixeira da Costa - reginacosta@uai.com.br
Estado de Minas: 26/04/2015 




Existem pessoas inspiradas. Como as admiro e, por isso mesmo, desculpem-me a franqueza, as invejo (em 50 tons)! As pessoas assim dotadas precisam expressar seus sentimentos. Geralmente, encontram meios criativos para fazê-lo e, dessa forma, tocam as outras que, ao se depararem com seu feito, identificam-se e compartilham de um grande e prazeroso entusiasmo.

Freud escreveu sobre os “Escritores criativos e devaneio” (1908). Interessado pela criação imaginativa, comparou o brincar infantil com a criação poética. Ele indaga se não estariam na infância os primeiros traços da capacidade imaginativa, já que a criança prefere o brincar e usa nessa atividade muito da realidade em que vive. Freud sugere que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio. O autor nos ensina que a antítese do brincar não é o sério, mas sim o real. Um equívoco frequente.

Além de colocar os escritores criativos e sua capacidade de fantasiar e de criar como herdeiros do brincar infantil, Freud ainda afirma serem as fantasias oriundas dos desejos insatisfeitos. Toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.

Nós, literalmente, pegamos uma boa carona no que os artistas criam e por isso mesmo desfrutamos de suas obras com tanto prazer. Freud era um excelente leitor, amava a literatura. Sergio Paulo Rouanet escreveu o livro Os dez amigos de Freud (Companhia das Letras, 2003) em dois volumes, apresentando 10 dos escritores preferidos e as afinidades do pai da psicanálise.

Os escritores sabem pelo menos intuitivamente a importância das palavras e como são fundamentais por urdirem os laços que nos ligam aos demais. Elas são a cura que nos alivia dos males sofridos e, ao mesmo tempo a faca que corta e fere frequentemente nosso semelhante. O conselho: devemos cuidar mais do que sai da boca do que do que por ela entra, é bíblico. Encontrei outro dia uma poetisa, Viviane Mosè, que escreveu: “Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa. Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor”.

A palavra é vital de fato e, quando encontramos quem as use bem, ficamos fascinados. A força da palavra, seja falada, escutada, escrita, sustentada, é de inacreditável influência e poder. A psicanálise trabalha com a palavra presa e com a pedra que ela significa para um sujeito. A verdade íntima de cada um de nós espera ser resgatada de um recôndito estado de desconhecimento. Espreita palavras a serem pronunciadas. Ou não. É o que a poeta Sandra Viola toca nos seguintes lindos versos:

“Como uma pedra no mar/há em mim/uma palavra parada

Pedra e palavra aguardam/(inutilmente)/ a poesia”

Os Largados - Martha Medeiros

Zero Hora 26/04/2015

Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro
Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.
Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.
Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.
É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum.
Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita? o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”. E continua: “Partiu-se uma corrente – da qual eu sou o último elo”.
A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?
Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.


Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.