Camelos e helicópteros na peça de Stockhausen
DARIO DE NEGREIROSGUSTAVO ALFAIXRESUMO Nome central da música erudita na segunda metade do século 20, o alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) teve sua ópera "Quarta-feira de Luz", que faz parte do ciclo "Licht", montada pela primeira vez, em agosto, na Inglaterra. A
Folha assistiu à première, que incluiu quarteto de cordas com helicópteros.
EM UMA QUARTA-FEIRA, centenas de pessoas se reúnem em uma indústria química desativada em Birmingham, na Inglaterra. Dois camelos lhes dão as boas-vindas, enquanto helicópteros sobrevoam o local. Elas procuram um lugar para sentar, comem frango com curry e seguram copos de cerveja, quando uma grande porta de ferro se fecha e as luzes se apagam.
Quatro conjuntos de alto-falantes reproduzem durante 54 minutos sons eletrônicos, sinos, cavalos relinchando, ruídos de código Morse. Periodicamente, luzes revelam atores que realizam encenações. "Quarta-feira: saudações!", diz a gravação, e um forte neon amarelo se acende em uma passagem estreita. Começa a ópera.
Talvez quem escute pela primeira vez uma peça do compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) prefira classificá-la como barulho, e não como música. Essa é, afinal, a maneira como opomos os sons que percebemos como caóticos e desagradáveis àqueles que são capazes de nos expressar algum sentido.
Mas, se Stockhausen é considerado um dos maiores compositores do século 20, o que teria acontecido com a música erudita para que, hoje, tantos ouvintes sequer a qualifiquem como música?
"Em 1945, havia um sentimento de que era necessário reconstruir um sistema musical inteiro do nada", conta o compositor inglês Richard Barrett. "E também era necessário, com o fim da Segunda Guerra Mundial, reconstruir o continente europeu do nada."
No pós-Guerra, a procura por um recomeço não se restringiu às mesas de discussão política. Como se o tipo de racionalidade que trouxe a barbárie ao seio da civilização ocidental estivesse espalhada por todos os cantos, inclusive na arte.
Na música de Stockhausen, os ritmos parecem muitas vezes sem sentido, irregulares. Mas como apreciar um ritmo regular, perguntava ele, depois de passar décadas ouvindo os soldados nazistas marchando?
'COM LICENÇA' No céu, os líderes do mundo se reúnem. "Parlamento do mundo", diz o presidente, "aqui, o nosso assunto é o amor".
Dezenas de parlamentares, discutindo em línguas desconhecidas e cantando em 12 ritmos diferentes, formam uma grande massa sonora. Bruscamente a música é interrompida: "Com licença!", grita um funcionário, "alguém estacionou em lugar proibido e seu carro está prestes a ser guinchado." Desesperado, o presidente abandona a sessão.
O ciclo de óperas "Licht" ("Luz", em alemão) possui cerca de 29 horas de música divididas em sete partes, uma para cada dia da semana, e que levaram 26 anos para serem escritas. O Parlamento do Mundo é a primeira cena de "Quarta-feira de Luz", cuja estreia mundial aconteceu em 22 de agosto deste ano, uma quarta-feira em que Stockhausen completaria 84 anos.
Na montagem, quase não há separação física entre artistas e público. Cantores "à paisana" levantam-se no meio da plateia para assumir o protagonismo da peça e o próprio diretor, Graham Vick, conduz o público de um galpão a outro da fábrica. Esse teatro de coxias transparentes ilustra bem uma tendência da música contemporânea: em vez de tentar parecer natural, espontânea, ela expõe seu próprio esqueleto, desnuda sua estrutura, como um mágico que diverte o público não com sua bela auxiliar voadora, mas com as cordas que sustentam seu voo.
Tal obsessão pela exposição de seus próprios processos construtivos vem como reação à música clássica e romântica, que se esforça para parecer "natural". Em uma passagem do filme "George & Frédéric" (1991), de James Lapine, o compositor romântico Frédéric Chopin (1810-49), interpretado por Hugh Grant, diz que as pessoas não sabem quanta matemática é preciso usar para compor uma peça que aparente não ter usado matemática alguma. Como se por trás da música não houvesse cálculos, não existisse construção humana.
Mostrar ao público aquilo que se esconde atrás do palco, negando todo e qualquer tipo de naturalização, é o primeiro passo de quem quer transformar as fronteiras que separam música e ruído.
CUBO SONORO O oboé é o primeiro a se apresentar, seguido por outros instrumentos da orquestra sinfônica tradicional. Mas o palco está no teto do galpão, os espectadores, deitados em colchões, e os onze músicos tocam seus instrumentos sentados em plataformas transparentes dependuradas por cabos de aço.
Cada solo é acompanhado por sons eletrônicos e concretos reproduzidos em oito canais de saída de áudio, que nos colocam dentro de um cubo sonoro. O modo como o som dança pelos alto-falantes passa a ser, na música nova, um dos elementos principais da obra. A busca por um novo tipo de música fez de Stockhausen uma espécie de cientista. Com base em suas concepções, foi construída em 1970 na Feira Mundial de Osaka, no Japão, a primeira sala de concertos esférica do mundo, com 50 grupos de alto-falantes espalhados por um grande globo.
Na década de 50, os sons eletrônicos sintetizados em seu laboratório em Colônia, na Alemanha, ganharam fama mundial e influenciaram artistas eruditos e populares. Ao ponto de, em 1967, os Beatles colocarem seu rosto na capa de "Sgt. Pepper's". Stockhausen está na última fila, o quinto da esquerda para a direita, perto de Carl Jung e Edgar Allan Poe.
'UM', 'DOIS', 'TRÊS' Levar a música aos céus, dizia Stockhausen, sempre havia sido seu sonho. Mas esta vontade de libertar a música dos limites de uma sala de concerto só encontraria sua realização radical na terceira cena de "Quarta-feira", com o Quarteto de Cordas com Helicópteros.
Ainda na fábrica, o quarteto é apresentado ao público: duas violinistas, um violista e uma violoncelista. Eles deixam o palco, tomam uma van e embarcam cada um em um helicóptero, enquanto suas imagens são transmitidas ao vivo em quatro telões.
Sobrevoando a cidade durante 32 minutos, os músicos tocam sons que mimetizam o barulho das aeronaves e acompanham com precisão, através de pontos eletrônicos, dezenas de mudanças de ritmo. "Um!", grita a violoncelista, seguida pelos seus companheiros: "dois!", "três!", "quatro!". Com a contagem, o público percebe que os quatro estão tocando em absoluta sincronia.
Quando lhe encomendaram uma peça para quarteto de cordas, em 1991, Stockhausen havia decidido recusar o convite. Como nunca separou forma e conteúdo, dizia, não podia escrever algo para uma formação típica do século 18.
Mas o compositor parece ter vislumbrado, ali, a oportunidade de encenar um encontro paradoxal: o da enorme distância e da intensa conexão entre a nova arte e a tradição. Afinal, se foi o processo de elaboração da linguagem musical que trouxe a necessidade de sua própria desconstrução, a ruptura pode ser vista, aqui, como um tipo particular de continuidade.
Nada melhor, então, do que fazer uma das formações mais usadas pelos clássicos alçar voo em máquinas do século 20, sincronizando tempos distintos. "Nós estamos muito longe uns dos outros, no céu", conta Emma Smith, uma das violinistas do quarteto. "E o sentimento de que mesmo assim podemos nos encontrar, em sincronia, é fascinante."
'SUPERFÓRMULA' Do meio da plateia, um cantor escuta a um rádio e imita ruídos de interferência. Um camelo entra em cena e defeca sete globos coloridos, pouco antes de o coro seduzi-lo com uma garrafa de champanhe gigante.
Para a musicóloga Katerina Grohmann, que dedicou seu doutorado ao estudo desta ópera, não há uma narrativa linear conectando todas as cenas. "As personagens são representadas por estruturas musicais, por fórmulas", explica.
Uma "superfórmula" define previamente a estrutura de todo o ciclo "Licht". Nela, os personagens principais da ópera possuem cada qual uma espécie de estrutura sonora, o que lhes permite aparecer não apenas fisicamente, no palco, mas também como puro som. "O público, segundo Stockhausen, seria capaz de entender quem eles são de uma maneira puramente musical", conta Katerina.
Identificar a fórmula de cada personagem não é, entretanto, uma tarefa fácil. Mas será necessário ser um especialista para poder apreciar Stockhausen?
"Eu não digo que escutar Stockhausen seja tão fácil quanto ouvir Rolling Stones", diz Richard Barrett. "No entanto, a forma mais empolgante de se aproximar não é se tornando especialista, mas, ao contrário, deixando de lado tudo o que você conhece sobre música". Modo de aproximação que coloca o leigo em situação de vantagem em relação ao estudioso.
"Este show é para o público em geral", diz o diretor Graham Vick. "Crianças, pessoas que não conhecem música, vão pegar muito mais rápido." É a mesma opinião do professor de filosofia da USP e crítico musical Lorenzo Mammì, que começou a se interessar pela música contemporânea ouvindo free jazz. "O caminho para apreciar é surpreendente. A primeira coisa a fazer é se abandonar à sonoridade", diz. "Não tente impor um significado imediatamente, viaje um pouquinho!".
A respeito de outro compositor alemão do século 20, o músico norte-americano Steve Reich afirmou, certa vez: "O carteiro nunca irá assoviar [Arnold] Schönberg".
Indagado se um dia o carteiro irá assoviar Stockhausen, Barrett resume a expectativa que anima os compositores contemporâneos, em sua espera por um novo público: "Creio que não falta muito tempo para que não existam mais carteiros".