Um cara e tanto
Biografia e documentário cinematográfico
sobre Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio, mergulham em
um dos mais persistentes mitos literários do século 20, com revelações
bombásticas
João Paulo
Estado de Minas: 18/01/2014
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A biografia de Shields e Salerno vai matar a
curiosidade de muita gente sobre a figura de Salinger. Sempre avesso a
fotografias, ele aparece em dezenas de imagens, elegante e charmoso |
J.
D. Salinger não tem sossego. O escritor americano, nascido em 1919, fez
de tudo para se fingir de morto em vida, até ser enterrado de vez em
2010, aos 91 anos. Mas não lhe deram descanso. Chega hoje às livrarias
brasileiras mais uma biografia do autor de O apanhador no campo de
centeio, um dos romances mais lidos do século 20. O livro Salinger, de
David Shields e Shane Salerno (Editora Intrínseca), faz par com o
documentário de mesmo nome, dirigido por Salerno (roteirista de Alien
versus Predador e Armageddon), que estreia no Brasil em 14 de fevereiro.
Está aberta a temporada Salinger.
A biografia chega embalada com
promessas de revelações pessoais e literárias. Além disso, se apresenta
como a mais ampla pesquisa sobre o autor, com depoimentos e entrevistas
de mais de 200 pessoas, sem contar a recuperação cuidadosa da
bibliografia sobre o criador da família Glass. Em outras palavras,
Salinger seria uma espécie de obra definitiva, capaz de esclarecer os
enigmas em torno de um dos maiores mitos literários do século 20. Sem
querer desanimar o leitor, o livro passa longe disso.
A
existência e a criação artística de Salinger são dignas do mito. O
autor, depois de se firmar como contista de revistas de prestígio,
sobretudo a The New Yorker, lança em 1951 um romance que marcaria época,
O apanhador no campo de centeio. A ele se seguiriam apenas mais três
livros, de contos e novelas, tendo como personagens integrantes da
família Glass: Nove estórias; Para cima com a viga moçada e Seymour, uma
introdução; e Franny e Zooey. Em 1965, Salinger publica seu último
conto, “Hapworth 16, 1924”, retira-se para uma fazenda em Cornish, não
faz mais aparições públicas nem dá entrevistas ou se deixa fotografar de
livre e espontânea vontade – é claro que os paparazzi não perdoaram.
ara
dar ainda mais molho ao mistério, as obras de Salinger exibem um misto
de coloquialismo e senso de mistério, cotidiano e metafísica, infância
intocada e maturidade, dissecação do mundo material e recolhimento no
espírito. Como seu adolescente Holden Caulfield, que não encontra seu
lugar no mundo, os leitores de Salinger parecem ter descoberto um
parceiro profundo para seu desajustamento. Ele recusa o mundo material
para afirmar um universo diferente, melhor e menos conspurcado. Sua
sabedoria, nutrida em filosofia oriental e na mística do Ocidente, se
revela nas coisas mais singelas. Além disso, com uma voz literária
única, fica sempre a um passo do virtuosismo, que ele sabiamente
desmancha com uma sinceridade tocante, embora vicária.
Shields e
Salerno não chegam ao campo de centeio sem predecessores. Outros
autores, melhor dotados que eles em matéria de literatura e
historiografia, já haviam se debruçado sobre a vida de Salinger, entre
eles Peter Alexander, Ian Hamilton e, mais recentemente, Kenneth
Slawenski. O que o novo projeto traz, infelizmente, é certo senso
mecanicista de ligar vida e obra. Sem sutileza ou respeito às
inconstâncias do sujeito em sua vida psíquica, os biógrafos parecem ler a
obra de Salinger pela chave de sua vida. A causa B. Por isso, em vez da
síntese trabalhada, que é o que se espera de uma boa biografia, eles se
esmeram na coleção de informações e no mero jogo da livre associação.
O
método dos autores é o da justaposição. Assim, depois de definidos os
parâmetros de julgamento, eles dividem a obra em capítulos que nada mais
são que a colagem dos depoimentos dos tais 200 entrevistados,
intercalados com reflexões e transcrições de outras obras sobre
Salinger, num amplo tabuleiro autorizado de citações justificadoras e,
na maioria das vezes, descontextualizadas. Em poucas palavras, o
trabalho fica em grande parte para o leitor, que precisa ainda se
familiarizar com as dezenas de vozes, inclusive hierarquizar sua
importância para dar a elas o peso devido.
Um dos grandes
atrativos do livro são as fotografias, cerca de 180, com imagens
inéditas de Salinger, de sua família, namoradas e companheiras, além de
personagens e episódios importantes em sua vida. Como o escritor foi
sempre excessivamente cioso de sua privacidade, as imagens, além de dar
mais naturalidade ao homem Salinger, revelam um tipo charmoso, sempre
cuidadoso na forma de se vestir, em poses ensaiadas e com o eterno
cigarro entre os dedos. Quase um galã bonitão, um dos tipos que ele mais
escarnece em suas histórias.
GUERRA E RELIGIÃO
A tese dos autores é que a Segunda Guerra destruiu o homem Salinger e
deu origem ao artista. Em seguida, a religião vedanta salvou o homem
para dar cabo do artista. Entre os dois polos, a guerra e a religião, a
vida e obra do escritor foi sendo tecida em meio à solidão, sofrimento e
poucos momentos de redenção. A primeira parte da biografia põe Salinger
no teatro da guerra, onde servia como agente de contrainformação, em
meio a muitas mortes e destruição. Sem deixar nunca de escrever, o jovem
e sofisticado Jerome David acaba tendo um colapso nervoso grave, é
internado e volta outro para seu país.
A partir daí, os
biógrafos seguem a vida do homem e do artista, sempre com o senso
determinista. Assim, entra em cena a paixão por Oona O’Neill, a linda
jovem, filha do dramaturgo Eugene O’Neill, que deixará Salinger para se
casar com Charles Chaplin, muito mais velho que ela, com quem teria oito
filhos e viveria até a morte do marido. Salinger, para seus biógrafos,
teria adquirido uma fixação em moças jovens, que o atrairiam e em
seguida ele se apressaria em abandonar, para se antecipar à rejeição que
poderia vir a sofrer. As sucessivas paixões por adolescentes teriam
sido todas elas heranças do trauma causado por Oona.
Sempre em
busca de certo sensacionalismo que brote da vida – Shields e Salerno
certamente não são analistas literários muito refinados – os autores
anunciam então a raiz biológica do comportamento evasivo do escritor:
uma anomalia anatômica. De acordo com os autores (a partir de
depoimentos confirmados por duas mulheres que conheceram o escritor
intimamente), Salinger tinha apenas um testículo. O exagero dos autores é
dar a um fato pouco traumático o condão de explicar o comportamento
esquisitão de Salinger, que teria se retirado do mundo para evitar que
as pessoas soubessem que um de seus testículos não teria descido.
Os
autores tinham em mãos um personagem e tanto, complexo, às vezes
genial, identificado com milhões de jovens (só O apanhador no campo de
centeio vendeu 65 milhões de exemplares e segue com quase 1 milhão por
ano até nossos dias), atravessando um período de grandes transformações
na sociedade americana e de transformação na arte literária. Sem
esquecer que ele colaborou para todas essas mudanças, na cultura e no
comportamento. Para completar, ao se isolar por 55 anos, Salinger criou
um modelo anticelebridade que destoa do cenário contemporâneo, que o
torna ainda mais atraente.
Salinger
De David Shields e Shane Salerno
Editora Intrínseca, 704 páginas, R$ 49,90
Entre Holden e Seymour
Biografia de Shields e Salerno anuncia a
publicação de cinco obras inéditas de Salinger até 2020. O apanhador...
ainda atrai a atenção de adolescentes e pacifica pais em busca de
diálogo com os filhos
João Paulo
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Oona O'Neill, um amor da mocidade |
Shields
e Salerno escreveram Salinger e produziram o documentário de mesmo nome
para responder a três perguntas: por que ele deixou de publicar; por
que se retirou do mundo; o que escreveu em seu bunker defeso em Cornish,
enquanto via naufragrar seus relacionamentos pessoais, familiares e
afetivos?. São boas questões, mas não são certamente as mais
importantes. Olhar de sobrevoo, fica faltando a consideração às obras e
ideias de Salinger. Na verdade, fica faltando Salinger. Depois de 700
páginas, David Shields e Shane Salerno sintetizam suas conclusões em 10
“problemas”.
O primeiro é a falta do testículo, que teria
afastado o escritor de seus semelhantes, além de diminuir sua
autoestima; o segundo, a perda de Oona para um homem mais velho e mais
famoso; o terceiro, o trauma da guerra (“a guerra o criou”); o quarto, a
conversão ao vedanta e o afastamento do mundo material; o quinto, o
refúgio em Cornish, uma fuga da vida social e do secularismo
nova-iorquino; o sexto, os casamentos; o sétimo, as crianças, já que
Salinger prezava mais seus filhos ficcionais (Holden e a família Glass)
do que os de carne e osso.
Na lista de Shields e Salermo, o
oitavo problema foram as garotas, com a fixação do escritor por jovens
adolescentes à beira da entrada no terreno da sexualidade, num misto de
pureza e desejo; em nono vinha o isolamento, com a contraditória
inclinação para lembrar o público o tempo todo que ele era um recluso;
e, por fim, em décimo lugar, o desapego, a tentativa de se livrar de
suas feridas reais e imaginárias por meio da arte – as sucessivas
tentativa de cura o aniquilaram como sujeito, embora em alguns momentos
tenham ajudado a constituir o artista.
Mas a grande revelação de
Salinger está no último capítulo, “Segredos”. Os autores garantem que o
escritor nunca deixou de trabalhar (o que já se sabia) e que organizava
cuidadosamente sua produção, tendo deixado pelo menos cinco livros
completos, que serão publicados entre 2015 e 2020. A grande notícia, de
acordo com os biógrafos, foi comprovada por fontes seguras, embora o
filho e responsável pelo espólio, Matthew, não confirme. O próprio
Salinger já havia deixado nas entrelinhas (e em orelhas de seus livros)
que vinha trabalhando em novas histórias. O que os biógrafos cravam,
entretanto, é não apenas a quantidade exata de originais, como também o
tema de cada um deles.
O primeiro livro a ser publicado
postumamente no ano que vem reunirá as histórias da família Glass; em
seguida, chegará ao leitor um romance sobre a primeira mulher, Sylvia
Welter (acusada por Shields e Salerno de ser informante da Gestapo, que
manteria um romance com o sargento X do conto “Para Esmé, com amor e
sordidez”). Na sequência, uma novela em forma de diário de um agente da
contrainformação, sobre a Segunda Guerra Mundial; um manual de filosofia
vendanta por meio de histórias edificantes; e, finalmente, mais Holden
Caulfield. O eterno herói de O apanhador no campo de centeio vai
ressurgir em um conto de 12 páginas, de 1942, totalmente reformulado, ao
lado de seis novas histórias que desenham a genealogia da família
Caufield.
Sobre o filme Salinger, o trailler disponível no
YouTube deixa entrever uma pegada sensacionalista, com depoimentos de
atores de Hollywood falando da importância de O apanhador… em suas vidas
(uma bobagem recorrente), ao lado de especulações sobre a relação com
adolescentes e inspiração do assassinato de John Lennon e do atentado ao
ex-presidente Ronald Reagan. Em suma, tudo que Salinger desprezava em
Hollywood parece ter se armado contra ele. “O documentário não respeitou
o espírito, a seriedade e a qualidade do trabalho artístico de
Salinger”, escreveu o editor de cinema do Village Voice, Alan
Scherstuhl. É mais ou menos o mesmo incômodo que fica da leitura do
livro.
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O velho Salinger, o ermitão de Cornish |
Numa
conclusão questionável, os biógrafos afirmam que a vida de Salinger foi
“um suicídio em câmera lenta”, certamente em referência a personagens
seus que se matam, como Seymour e Teddy. Para um homem que viveu 91
anos, sem deixar de trabalhar até o último de seus dias e de refletir
sobre o sentido da existência, a afirmação chega a ser risível. Salinger
morreu rompido com o mundo real, mas sua vida foi uma tentativa
desesperada, e por vezes tocante, de tentar encontrar liames possíveis
entre o mundo interior e o lado de fora. Afinal, e não precisa ser
versado em vedanta para chegar a essa conclusão, somos todos suicidas
adiados. A vida faz seu trabalho e sabe a hora de dar por encerrada a
peleja sob o Sol.
PAIS E FILHOS A biografia
Salinger serve ainda para repor antigas questõe. Por que ler Salinger
hoje? O que um autor tão tipicamente dos anos 1940 e 1950, que em 1965
deixa de publicar para sempre, tem a dizer ao jovem de hoje? O fato é
que seus livros continuam sendo vendidos e amados e parecem responder a
questões que fazem parte do universo dos adolescentes, mesmo em contexto
tão diverso. As pessoas ainda costumam, mais de 60 anos depois,
presentear os jovens com volumes de O apanhador no campo de centeio.
Há,
ainda, uma avaliação diferenciada do romance e dos contos do autor.
Enquanto a saga de Holden Caulfield parece não corresponder à
expectativa de uma segunda leitura mais madura, os contos se mantêm como
exemplos de arte literária, sublime em alguns momentos. O Salinger
estilista ainda se presta a releituras, o ideólogo pode ter ficado para
trás, junto com as incoerências da puberdade.
O apanhador no
campo de centeio não fez sucesso por acaso. É o tipo de livro que é
esperado e que quando chega toma conta do território. Salinger captou,
como pouca gente antes e depois dele, o impulso que faz do adolescente
um tipo tão desajustado e carente de quem o entenda. É como se o jovem
fosse o hardware da insatisfação com o mundo e o romance o software que
tornasse tudo mais compreensível. Salinger deu conteúdo a um sentimento
de inadequação.
Além disso, seu personagem, Holden, é urbano,
vive problemas típicos da classe média e não se sente em casa no mundo.
Tudo isso coroado por uma inteligência acima da média e uma
sensibilidade quase doentia. Quem, aos 14 anos, não se identifica com
esse perfil, levante a mão. Para completar uma possível explicação do
sucesso do romance, Salinger cria uma voz literária e inaugura um modo
de expressão que usa gírias e palavreado pouco literário. Dá à luz um
estilo.
Para alguns especialistas, como Louis Menard, Salinger
vai ainda mais longe: cria um novo gênero. Dessa forma, cada geração
terá, a partir dos anos 1950, uma nova tentativa de rever o mesmo
personagem no seu próprio contexto. Fariam parte do gênero O
apanhador..., por exemplo, romances como A redoma de vidro, de Silvia
Plath (1963); Medo e delírio em Las Vegas, de Hunther Thompson (1971);
Brilho da noite, cidade grande, de Jay McInerney (1984); e Uma comovente
obra de espantoso talento, de Dave Eggers (2000), para ficar apenas nos
EUA. Sem falar em filmes como Os incompreendidos e Juventude
transviada.
No entanto, parece faltar uma explicação mais humana
para o sucesso dessa “lengalenga tipo David Copperfiled”. Por que será,
por exemplo, que os pais dão o livro de presente para os filhos
adolescentes? Certamente, não é para que eles fujam de casa, se
embebedem e procurem prostitutas. Parece haver uma dialética entre
inocência e amadurecimento que perpassa a trama de Salinger. Holden, no
fim das contas, não gosta do que vê à volta e acaba sofrendo um colapso,
mas percebe que tem sentimentos bons dos quais não quer abrir mão.
Talvez
essa seja uma definição um pouco constrangida do processo educacional:
queremos que nossos filhos sejam autênticos e tenham condições de
desafiar o mundo e combater o que não concordam. Mas ao mesmo tempo
torcemos para que sejam dotados de bom senso para entender os limites da
revolta. Holden Caulfield parece lembrar a cada pai o jovem que um dia
ele foi e que, por interposta pessoa, quer mostrar a seus filhos: “Olhe
como eu era legal!”. E, quem sabe, esperem do filho um reconhecimento
por suas capitulações: “Você até que não é tão ruim assim!”.
A
crítica literária nunca se acertou com O apanhador no campo de centeio.
Entre escritores, há desde entusiastas como Faulkner e Hemingway, a
detratores como Mary McCarthy. Uns conseguem perceber a tragédia que
boia em meio ao vocabulário vulgar e à personalidade doentia do
personagem central; outros atacam a fuga de temas fundamentais,
sobretudo o sexo, que faz da obra de Salinger, muito mais que um livro
sobre adolescentes, um romance em si adolescente.
Do romance
para os contos, Salinger avança tanto em termos humanos como literários.
A família Glass é sua grande criação. Alguns contos estão entre os
melhores escritos no século 20, como ‘‘Para Esmé, com amor e sordidez’’,
‘‘Franny’’ e ‘‘Um dia ideal para os peixes-banana’’, uma obra-prima
absoluta. Além dos contos, os Glass, com Seymour à frente,
protagonizaram algumas novelas, como Pra cima com a vida moçada, Seymour
uma introdução e Zooey. São livros ambiciosos em termos filosóficos e
estéticos, com sofisticada estrutura literária. Se há um pecado neles é a
proximidade da perfeição, que por vezes soa como exibicionismo.
Todos
os filhos de Les e Bessie Glass, casal de atores de vaudeville, são
geniais, participaram do programa radiofônico Crianças sabidas e
alimentam ambições metafísicas diversas. Um se torna padre, outro ator,
há o que morre na guerra, o professor de escrita literária (Buddy, alter
ego de Salinger), a dona de casa e a moça em crise espiritual. Todos
sideram em torno de Seymour, gênio e santo, que é apresentado no
primeiro conto sobre a família Glass, no qual suicida em frente da
esposa, depois de brincar com uma menina na praia.
A obra madura
de Salinger, relida, está mais nos contos e novelas que no romance. No
entanto, em matéria de leveza, talvez ele nunca tenha superado O
apanhador no campo de centeio e seus livros posteriores se perdem por
vezes na prolixidade. Há um movimento, contudo, que parece dar unidade
ao projeto do autor: do retrato do jovem sensível até o rompimento com o
mundo materialista, com a corajosa afirmação de novos valores. O
desajuste não era um problema, como parece no primeiro momento, mas uma
escolha livre.
Nesse meio do caminho entre a inocência e a
reinvenção do destino humano, Salinger levou a própria vida com todas as
suas provações e prazeres. Embora ele tenha feito de tudo para ser
Seymour Glass, com seu invejável patrimônio de sabedoria e independência
– até mesmo no gesto final – tudo conspirou para que ele continuasse
com Holden Caufield na alma. Sua obra é expressão desse “fracasso”.