LUIZ CARLOS AZEDO |
Correio Braziliense - 06/01/2014 |
Entrevista - Marcos Terena
O
líder Marcos Terena falou ao Correio sobre a situação dos índios no
país. Para ele, a Funai está acéfala, e o governo é despreparado ao
lidar com os conflitos
O Planalto prepara mudanças nas regras para a demarcação de terras indígenas; no Congresso Nacional, os ruralistas querem retirar do Executivo essa prerrogativa. Enquanto isso, os conflitos se intensificam, o mais recente em Humaitá (AM), a 675km de Manaus, onde fica a reserva tenharim. Um índio foi morto, três moradores estão desaparecidos e a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) foi incendiada. Tudo por causa de um pedágio cobrado pelos índios na rodovia que corta a reserva.
Ao Correio, o líder indígena Marcos Terena faz duras críticas ao governo: “O governo não sabe o que está acontecendo, só toma conhecimento depois que explode o conflito”. Segundo ele, a Funai está acéfala, virou obsoleta e não há interlocutores preparados para lidar com conflitos. “Em Humaitá, quem é o negociador? O ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo) mandou a polícia. A questão indígena virou caso de polícia! É a política que o Chile adotou contra os índios mapuche. O governo brasileiro está usando a mesma metodologia.”
Terena concedeu a entrevista por telefone, da aldeia Terena de Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, onde nasceu há quase 60 anos. Entrou na Funai como piloto. Foi fundador da União das Nações Indígenas. Na Eco-92, organizou a Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento. É o idealizador dos Jogos dos Povos Indígenas e do Festival das Tradições Indígenas.
O que está havendo com os índios?
A gente precisa analisar a questão por três ângulos: um é o do colonizador clássico, que é conservador e continua retrógrado em relação ao índio do novo milênio; outro, é a visão assistencialista e paternalista do governo brasileiro, que também é conservadora; o terceiro, é a dinâmica natural e progressiva dos povos indígenas, que é quase invisível. Diante das circunstâncias do ser humano, o índio tem transformado as invasões culturais e econômicas — como hidrovias, hidrelétricas, novas cidades e etc. —, que representariam uma catástrofe étnica, em nova perspectiva de luta e sobrevivência. Esse processo está sendo digerido pelos líderes tradicionais, que chamamos de autoridades, e que o sistema colonizador transformou na figura caricata de caciques. São pessoas que muitas vezes nem falam português, vivem na selva, preservam a cultura e estão muito atentas a esse processo.
O que significa a expressão “índio do novo milênio”?
Está nascendo a figura do chamado “índio-doutor”, a nova geração de líderes indígenas, homens e mulheres, que vão à universidade, fazem mestrado e até mesmo doutorado. Ela gerará em cinco anos a autonomia dos povos indígenas. Teremos os índios tribais juntando força com os índios-doutores. Isso começou em Brasília, nos anos 1980. Uma geração e meia depois, estamos próximos de fazer isso acontecer.
Você se considera um líder indígena tradicional ou um “índio-doutor”?
Eu era um dos líderes dos povos indígenas quando cheguei a Brasília nos anos 1980. A minha função é pensar e montar estratégias do movimento, a partir do conceito: ‘eu posso ser o que você é sem deixar de ser quem sou’.
Mas esse índio-doutor não pode ser cooptado pelo modo de vida do branco?
O grande cuidado das autoridades tradicionais é que esse “índio-doutor” não se transforme em um veículo da agressão aos direitos indígenas por meio da cooptação. É por isso que a gente promove eventos como os Jogos dos Povos Indígenas. É preciso que o jovem índio aprenda a cultura do seu povo. Ao contrário do sistema academicista, que cobra resultados, ele tem tempo para aprender com o seu próprio modo de vida. Nós estamos conseguindo fazer isso, embora tenhamos alguns casos de jovens que falam muito bem nos seminários, mas não conversam com os caciques para receber conselhos.
Qual a razão da intensificação dos conflitos com os produtores rurais?
Ele é resultado de um dos itens dos três pontos que citei: o assistencialismo e o paternalismo do governo, a falta de uma política indigenista. Não basta colocar a Funai em um prédio bonito. A Funai é o único órgão do governo responsável por 15% do território brasileiro. Nessa área, são faladas 220 línguas, em 330 sociedades distintas. Nenhum povo é igual a outro. O atual governo não vê isso, só enxerga a capacidade hidrelétrica dos rios, a quantidade de ouro que pode tirar. Não vê o ser humano. Mas, em cinco anos, teremos condições de debater essa situação de igual para igual, inclusive com a elite econômica.
Como você explica a situação em Humaitá?
É o resultado de um quebra galho econômico. Você faz uma estrada na terra dos índios, eles cobram uma taxa: um carro, R$ 20; um caminhão, R$ 50 — alguém falou isso para os caciques. Como as pessoas dependem da estrada, começaram a pagar. É uma situação que provoca revolta dos usuários desse benefício do governo, que é para todos. A mesma coisa acontece com a Estrada de Ferro Carajás, que corta o Maranhão e o Pará. É um acordo de contrapartida. A moeda indígena é outra.
Esse índio do novo milênio será um agente da nova economia verde ou um sobrevivente do extrativismo da velha economia?
Eu acredito que há uma evolução do mundo. Os indígenas brasileiros participam das negociações do Banco Mundial. A gente percebe uma preocupação com uma nova ordem. A Organização das Nações Unidas, na última Rio+20, propôs a chamada economia verde. E adotou um termo que ninguém sabe bem o que é, só os índios: sustentabilidade. O agronegócio, por exemplo, adota o termo, mas continua fazendo a monocultura de sempre.
Qual o papel da Funai nessa discussão?
Esse debate está chegando: 15% do território brasileiro são terras indígenas. Neles, estão concentrados grandes recursos econômicos do ponto de vista biológico e mineral. Nós sabemos disso, mas com quem vamos debater? Infelizmente, a Funai não se atualizou para esse debate, não se preparou. Por exemplo, lá em Humaitá, quem é o negociador? O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, mandou a polícia. A questão indígena virou caso de polícia!
Cadê os nossos indigenistas?
Não existem mais caras como os irmãos Villas-Boas, o Sydney Possuelo e o Apoena Meirelles. Nos últimos cinco anos, a Funai extinguiu os antigos postos indígenas. Se houvesse um lá em Humaitá, não teria ocorrido isso. Teríamos um funcionário da Funai morando na aldeia, falando a língua dos índios, treinado para lidar com aquelas pessoas. A Funai do PT acabou com isso. Há um vácuo que pega o governo toda hora de surpresa. O governo não sabe o que está acontecendo, só toma conhecimento depois que explode o conflito.
O que está acontecendo no Xingu?
Os índios de lá também estão vivendo uma nova fase. Nos Jogos Indígenas, velhos caciques estavam preocupados com o comportamento dos jovens no huka-huka, que é uma luta tradicional e faz parte do ritual do Quarup. É a única luta que não tem juiz, é um cerimonial. Os jovens estão a transformando em briga. Outra coisa ainda mais grave: estão aprendendo a tomar vitaminas para ficar mais fortes. Isso não acontecia antes porque a força física dos xinguanos era natural. Os jovens estão saindo da aldeia para trabalhar nas fazendas, querem dinheiro para comprar celulares e até mudaram o corte de cabelo.
Isso é uma forma de aculturação?
É o que a gente chama de relação intercultural. O velho Aritana, que é o grande símbolo do Xingu, me contou que as ONGs levaram a internet para lá, mas não têm compromisso com a cultura indígena. Esse novo indiozinho vai querer o celular, vai querer a internet. Em um primeiro momento, isso tem até impacto negativo, mas acredito que acabará sendo útil à preservação da cultura. Quando houve o debate na ONU sobre acesso ao novo conhecimento, dissemos que não deveríamos ser considerados um novo mercado, mas isso é inevitável. Darcy Ribeiro escreveu que os índios estavam sofrendo uma “fricção interétnica”, que os levaria ao desaparecimento. Mas isso não aconteceu, o índio está usando essa fricção para encontrar novos mecanismos de resistência.
Os conflitos com produtores são uma forma de fricção violenta?
Já voei muito por Humaitá antes de a Funai destruir sua aviação para terceirizar os serviços e alugar taxi-aéreo. O conflito de lá é parecido com o dos guaranis-caiovás de Mato Grosso do Sul e o dos terena de Aquidauana. Aqui, havia uma fazenda dentro da aldeia, os fazendeiros foram expulsos e levaram suas coisas, pacificamente, mas a Funai não demarcou a terra por causa de pressões políticas. Quando é que vamos ter um índio na presidência da Funai? Quando vamos ter nossos representantes no Congresso? Quando chegaremos ao poder? Como índios, temos que guardar essas informações tribais para fazer um pedaço desse caminho.
Como assim?
Temos que provocar um debate político com os candidatos à Presidência. Vamos debater com todos. No meio indígena, não existe ideologia de branco, esquerda e direita, existe governo e índios. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos mostrou isso. Ele era o maior companheiro do índio, mas virou presidente e desestruturou a Funai. Quem é que o governo põe para resolver os conflitos? Põe a Força Nacional, que já tem até um departamento de questões indígenas. Quem é que está treinando esses policiais? É preciso abrir esse debate. É no campo das ideias, que queremos debater essas questões.
A gente precisa analisar a questão por três ângulos: um é o do colonizador clássico, que é conservador e continua retrógrado em relação ao índio do novo milênio; outro, é a visão assistencialista e paternalista do governo brasileiro, que também é conservadora; o terceiro, é a dinâmica natural e progressiva dos povos indígenas, que é quase invisível. Diante das circunstâncias do ser humano, o índio tem transformado as invasões culturais e econômicas — como hidrovias, hidrelétricas, novas cidades e etc. —, que representariam uma catástrofe étnica, em nova perspectiva de luta e sobrevivência. Esse processo está sendo digerido pelos líderes tradicionais, que chamamos de autoridades, e que o sistema colonizador transformou na figura caricata de caciques. São pessoas que muitas vezes nem falam português, vivem na selva, preservam a cultura e estão muito atentas a esse processo.
O que significa a expressão “índio do novo milênio”?
Está nascendo a figura do chamado “índio-doutor”, a nova geração de líderes indígenas, homens e mulheres, que vão à universidade, fazem mestrado e até mesmo doutorado. Ela gerará em cinco anos a autonomia dos povos indígenas. Teremos os índios tribais juntando força com os índios-doutores. Isso começou em Brasília, nos anos 1980. Uma geração e meia depois, estamos próximos de fazer isso acontecer.
Você se considera um líder indígena tradicional ou um “índio-doutor”?
Eu era um dos líderes dos povos indígenas quando cheguei a Brasília nos anos 1980. A minha função é pensar e montar estratégias do movimento, a partir do conceito: ‘eu posso ser o que você é sem deixar de ser quem sou’.
Mas esse índio-doutor não pode ser cooptado pelo modo de vida do branco?
O grande cuidado das autoridades tradicionais é que esse “índio-doutor” não se transforme em um veículo da agressão aos direitos indígenas por meio da cooptação. É por isso que a gente promove eventos como os Jogos dos Povos Indígenas. É preciso que o jovem índio aprenda a cultura do seu povo. Ao contrário do sistema academicista, que cobra resultados, ele tem tempo para aprender com o seu próprio modo de vida. Nós estamos conseguindo fazer isso, embora tenhamos alguns casos de jovens que falam muito bem nos seminários, mas não conversam com os caciques para receber conselhos.
Qual a razão da intensificação dos conflitos com os produtores rurais?
Ele é resultado de um dos itens dos três pontos que citei: o assistencialismo e o paternalismo do governo, a falta de uma política indigenista. Não basta colocar a Funai em um prédio bonito. A Funai é o único órgão do governo responsável por 15% do território brasileiro. Nessa área, são faladas 220 línguas, em 330 sociedades distintas. Nenhum povo é igual a outro. O atual governo não vê isso, só enxerga a capacidade hidrelétrica dos rios, a quantidade de ouro que pode tirar. Não vê o ser humano. Mas, em cinco anos, teremos condições de debater essa situação de igual para igual, inclusive com a elite econômica.
Como você explica a situação em Humaitá?
É o resultado de um quebra galho econômico. Você faz uma estrada na terra dos índios, eles cobram uma taxa: um carro, R$ 20; um caminhão, R$ 50 — alguém falou isso para os caciques. Como as pessoas dependem da estrada, começaram a pagar. É uma situação que provoca revolta dos usuários desse benefício do governo, que é para todos. A mesma coisa acontece com a Estrada de Ferro Carajás, que corta o Maranhão e o Pará. É um acordo de contrapartida. A moeda indígena é outra.
Esse índio do novo milênio será um agente da nova economia verde ou um sobrevivente do extrativismo da velha economia?
Eu acredito que há uma evolução do mundo. Os indígenas brasileiros participam das negociações do Banco Mundial. A gente percebe uma preocupação com uma nova ordem. A Organização das Nações Unidas, na última Rio+20, propôs a chamada economia verde. E adotou um termo que ninguém sabe bem o que é, só os índios: sustentabilidade. O agronegócio, por exemplo, adota o termo, mas continua fazendo a monocultura de sempre.
Qual o papel da Funai nessa discussão?
Esse debate está chegando: 15% do território brasileiro são terras indígenas. Neles, estão concentrados grandes recursos econômicos do ponto de vista biológico e mineral. Nós sabemos disso, mas com quem vamos debater? Infelizmente, a Funai não se atualizou para esse debate, não se preparou. Por exemplo, lá em Humaitá, quem é o negociador? O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, mandou a polícia. A questão indígena virou caso de polícia!
Cadê os nossos indigenistas?
Não existem mais caras como os irmãos Villas-Boas, o Sydney Possuelo e o Apoena Meirelles. Nos últimos cinco anos, a Funai extinguiu os antigos postos indígenas. Se houvesse um lá em Humaitá, não teria ocorrido isso. Teríamos um funcionário da Funai morando na aldeia, falando a língua dos índios, treinado para lidar com aquelas pessoas. A Funai do PT acabou com isso. Há um vácuo que pega o governo toda hora de surpresa. O governo não sabe o que está acontecendo, só toma conhecimento depois que explode o conflito.
O que está acontecendo no Xingu?
Os índios de lá também estão vivendo uma nova fase. Nos Jogos Indígenas, velhos caciques estavam preocupados com o comportamento dos jovens no huka-huka, que é uma luta tradicional e faz parte do ritual do Quarup. É a única luta que não tem juiz, é um cerimonial. Os jovens estão a transformando em briga. Outra coisa ainda mais grave: estão aprendendo a tomar vitaminas para ficar mais fortes. Isso não acontecia antes porque a força física dos xinguanos era natural. Os jovens estão saindo da aldeia para trabalhar nas fazendas, querem dinheiro para comprar celulares e até mudaram o corte de cabelo.
Isso é uma forma de aculturação?
É o que a gente chama de relação intercultural. O velho Aritana, que é o grande símbolo do Xingu, me contou que as ONGs levaram a internet para lá, mas não têm compromisso com a cultura indígena. Esse novo indiozinho vai querer o celular, vai querer a internet. Em um primeiro momento, isso tem até impacto negativo, mas acredito que acabará sendo útil à preservação da cultura. Quando houve o debate na ONU sobre acesso ao novo conhecimento, dissemos que não deveríamos ser considerados um novo mercado, mas isso é inevitável. Darcy Ribeiro escreveu que os índios estavam sofrendo uma “fricção interétnica”, que os levaria ao desaparecimento. Mas isso não aconteceu, o índio está usando essa fricção para encontrar novos mecanismos de resistência.
Os conflitos com produtores são uma forma de fricção violenta?
Já voei muito por Humaitá antes de a Funai destruir sua aviação para terceirizar os serviços e alugar taxi-aéreo. O conflito de lá é parecido com o dos guaranis-caiovás de Mato Grosso do Sul e o dos terena de Aquidauana. Aqui, havia uma fazenda dentro da aldeia, os fazendeiros foram expulsos e levaram suas coisas, pacificamente, mas a Funai não demarcou a terra por causa de pressões políticas. Quando é que vamos ter um índio na presidência da Funai? Quando vamos ter nossos representantes no Congresso? Quando chegaremos ao poder? Como índios, temos que guardar essas informações tribais para fazer um pedaço desse caminho.
Como assim?
Temos que provocar um debate político com os candidatos à Presidência. Vamos debater com todos. No meio indígena, não existe ideologia de branco, esquerda e direita, existe governo e índios. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos mostrou isso. Ele era o maior companheiro do índio, mas virou presidente e desestruturou a Funai. Quem é que o governo põe para resolver os conflitos? Põe a Força Nacional, que já tem até um departamento de questões indígenas. Quem é que está treinando esses policiais? É preciso abrir esse debate. É no campo das ideias, que queremos debater essas questões.