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Antônio Nóbrega sabe que o bailarino popular dança para manter viva a beleza do movimento
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O
maior inimigo da cultura não é a burrice, mas a ganância. De tal forma
nos acostumamos com o valor da ambição que consideramos normal que
teatros e cinemas fechem em nome dos interesses financeiros de seus
donos. O mais recente exemplo vem de São Paulo, com a ameaça de
encerramento das atividades do Teatro Brincante, de Antônio Nóbrega. Não
é preciso esforço para defender Nóbrega e seus brincantes: trata-se de
uma das mais consistentes propostas culturais do país, que corre o risco
de se encerrar em razão da especulação imobiliária.
Depois de se
destacar no Quinteto Armorial, fundado por Ariano Suassuna, quando
ainda era um jovem violinista de orquestra, Nóbrega logo se torna uma
das figuras de proa do Movimento Armorial. Contribuiu para isso seu
conhecimento da cultura popular do Nordeste, o talento musical
extraordinário, o dom para a pesquisa, o acervo de conhecimento sobre o
teatro popular e, sobretudo, a incorporação da dança ao movimento.
Nóbrega, bom em tantas artes, vinha nos últimos 30 anos construindo um
repertório de movimentos do que um dia vai se chamar dança popular
brasileira. Ao lado de tudo isso, mostrou capacidade de agregar,
construir e mobilizar, com seu espaço que se tornou ponto de encontro
entre o popular e o erudito, o passado e o presente, a arte e a
reflexão.
A história de fechamento de endereços culturais,
infelizmente, não é nova nem patrimônio de São Paulo. Quem já passou dos
50 anos se lembra bem do fim do Cine Metrópole, em Belo Horizonte, e da
onda que se seguiu de extinção dos cinemas de rua até o deserto que
hoje define o horizonte. Foram todos transformados em templos, lojas
populares e estacionamentos. A sensação de perda se tornou ainda maior
pela aparente naturalidade do processo, como se coubesse apenas ao dono
do lugar dar o destino de sua propriedade, independentemente do
interesse dos cidadãos e das responsabilidades do setor público.
O
caso do Metrópole foi ainda mais triste em função da grande mobilização
de pessoas dispostas a defendê-lo. O poder público se eximiu e apenas
articulou um acordo no fio do bigode com o Bradesco, que levou à criação
de um teatro, o Klauss Vianna, no alto da Avenida Afonso... que vai ser
fechado no mês que vem. Desapropriado, o edifício que hoje abriga o
teatro (que é um patrimônio da população de BH) passou ao Tribunal de
Justiça, que o considera seu e não parece disposto a manter o
funcionamento do equipamento cultural em suas dependências.
A
situação é tão explícita e grave que gerou um movimento, em várias
cidades do país, que propõe que se deixem os teatros em paz. Por sua
natureza localizados onde há grande circulação de pessoas, os espaços se
tornam atrativos para o setor imobiliário, sem que esse reconheça o que
fica ali de história. Foi o movimento dos teatros e cinemas que levou
para vários lugares da cidade o valor que hoje se torna moeda. A arte
valorizou as regiões degradadas e hoje são expulsas do lugar que
ajudaram a criar com seu estoque de méritos.
O maior prejuízo da
especulação imobiliária que atinge a cultura em cheio, no entanto, é a
cidade como um todo. O que vem se perdendo não são apenas casas de
espetáculos e salas de exibição, mas um modo civilizado de habitar o
mundo. Mesmo que os negócios em si sejam particulares e por isso afeitos
às regras de mercado, há um substrato público na cultura: ela tem
potencial agregador e crítico que cabe ao poder público defender e
promover.
Shoppings e circuitos Curiosamente,
em vez de acompanhar um processo de valorização da ocupação de todo
tecido social, o que se vê é uma tendência concentracionista, seja
dirigida pela iniciativa privada – por meio dos shoppings –, seja do
poder público, em projetos como o Circuito Cultural da Praça da
Liberdade, uma ilha dentro da ilha, em termos de urbanismo excludente e
negação dos encontros de classes sociais. Trata-se de um espaço público
que foi privatizado, destinado a um genérico “todos” que são apenas
alguns.
Essa lógica, é claro, se traduz também nos conteúdos,
com propostas que são sempre marcadas pelo lucro (cinemas de shopping só
passam filmes para adolescentes de todas as idades) ou pela visão
encastelada de cultura (que tende para o estereótipo, ainda que
distinto). O que vem se estabelecendo nesses espaços é, ainda, um falso
modelo de interatividade, que nada mais é que uma interpassividade
mediada por computadores.
Com isso, no modelo único de centros
culturais patrocinados com verba pública (que levam a marca privada de
seus donatários na fachada e no nome) o que se consolida é um circuito
altamente lucrativo, operado por curadorias de alto valor de mercado,
com seus nomes de excelência a validar os projetos. As marcas passeiam
sobre a cultura e dão nome a tudo. Não é mais preciso dialética para
flagrar o fetichismo da mercadoria: desavergonhadamente, ela se mostra e
até se vende em brindes encontrados nas “lojinhas”.
Por isso os
espaços culturais de rua, espalhados por toda a cidade, têm um papel
agregador e de confirmação da cidadania. E é exatamente por se situar de
forma autônoma (não em shoppings ou circuitos) que criam uma identidade
própria, que realiza a dimensão plural da cultura. Ao se cerrarem as
portas de cinemas, teatros e galerias de rua, a cidade fica mais
estática, se movimenta menos, perde a dinâmica que atrai pessoas
diferentes e faz conviver a diversidade.
Em Belo Horizonte, nos
últimos anos, estamos vivendo os estertores desse tipo de cultura. É
claro que há reações. Grupos de teatro, por exemplo, estão criando seus
espaços, que permitem habitar regiões geográficas da cidade e latitudes
estéticas da arte (que se contrapõe ao modelo canônico dos editais),
inclusive no Hipercentro, com resultados muito importantes para a vida
cultural e para a mobilização política do setor.
Outro modelo
agregador tem sido o dos coletivos, o que viabiliza o aspecto material,
mas avança também para o sentido compartilhado da criação, em
contraponto ao culto da celebridade e da carreira individual fundada no
mercado de bens. E, com mais consistência e combatitividade, as
ocupações de espaços adormecidos da cidade, que vêm ganhando uma rica
dinâmica criativa e de circulação de ideias.
Mobilização
Voltando a São Paulo, a mesma cidade que é exemplo de insensibilidade
com a ameaça do fim do Brincante em razão da especulação, deu provas
recentes da capacidade de se articular para recuperar o Belas Artes, um
histórico espaço de cinema de repertório, que estava fechado há muitos
anos. Reduto do cinema chamado de arte, o Belas Artes foi objeto de
intensa mobilização popular para que fosse recuperado e entregue
novamente ao uso da população.
O movimento popular precisou –
sempre precisa – de capacidade política tanto na organização como no
desenho de um projeto viável. Entram em cena, nessa hora, não apenas o
interesse do dono do imóvel, mas da municipalidade, que tem por dever
proteger os direitos do cidadão, sendo a cultura um dos mais valiosos. A
solução encontrada envolveu poder público, proprietário do espaço,
setores organizados do meio cinematográfico e população.
Nessa
hora se estabelece um novo jogo de forças, capaz não apenas de reverter
situações dadas como definidas, como de avançar na reposicionamento de
cada setor envolvido. O que fica patente no caso do Belas Artes de São
Paulo é que o setor público não precisa se abater aos valores do
mercado, mesmo que legítimos, e deve se dirigir pelo que responde de
forma mais completa aos interesses da sociedade. Cabe ao dirigente
púbico a sensibilidade para buscar soluções que viabilizem a vitalidade
da cidade e melhore a vida de seus cidadãos.
Outra constatação é
que há saída, dentro do mercado, que preserve o funcionamento dos
cinemas de rua. Entregue à população em meados de julho, o Belas Artes
de São Paulo tem acompanhado um significativo sucesso de público e já
ensaia investimentos em novos projetos de ampliação de espectadores.
Para isso são fundamentais parcerias que reúnam todos os interesses em
nome de um propósito básico de viabilização do espaço, o que significa
que cada área aprende com a outra.
Além disso, um dos maiores
gargalos da indústria cinematográfica do país, a exibição, passa a ter
um novo caminho, já que se trata de um conglomerado de salas, com
vocação para público mais permeável ao novo e com grande repercussão no
campo da formação de opinião. As dezenas de produções que estrearam em
festivais e aguardam salas, têm, certamente, nos cinemas de rua e em
propostas como a do Belas Artes, sua melhor via para chegar ao público.
Uma
conta em que todo mundo ganha é sempre resultado da boa política. O que
exige determinação, capacidade de organização e conhecimento técnico. O
poder, como ensinou Michel Foucault, não é algo fixo, que troca de mãos
entre os mais fortes a cada momento do jogo político. Poder é uma
situação que se cria, um momento da vida social que coloca em xeque o
estabelecido em nome de um horizonte mais ampliado de direitos e
liberdade.
Belo Horizonte ainda tem alguns de seus esqueletos de
cinema de rua recuperáveis, o Pathé, o Royal, o Odeon, o Roxy, o Nazaré,
o Regina, o Santas Tereza, o Art-Palácio, entre outros. O mesmo vale
para teatros que deixaram a população menos servida de arte, que foram
agonizando até que todos se esquecessem deles. Outros morrem aos nossos
olhos, sob promessas sempre procrastinadas, como o Marília e o Clara
Nunes, em obras permanentes, sempre fechados.
Muitos já se
perderam de forma irrecuperável. Um movimento para revitalizar esses
espaços, dando a eles viabilidade inclusive econômica, não é um
desvario, mas a retomada viável de um tempo perdido. O que falta, por
exemplo, para o Cine Pathé voltar a ser um cinema e deixar de ser um
estacionamento inútil, que espera apenas a hora certa de jogar o prédio
no chão? A se confirmar esse “the end”, a atual gestão da cidade e as
próximas ficarão marcadas pela leniência em responder a essa pergunta.
São
Paulo está perdendo um teatro, mas recuperou cinemas de rua e, talvez,
com sua mobilização cultural amadurecida pelo embate, ainda consiga
salvar o Brincante, para bem da cultura brasileira. Aqui em BH, estamos
apenas na coluna das perdas, das ameaças e das portas fechadas. Salvar o
Klauss Vianna e reabrir o Pathé como cinema talvez sejam bons começos
para despertar o amor pela arte que nos faz melhores e, quem sabe, no
futuro próximo, mais fortalecidos e menos entregues ao desejo cego do
mercado.