folha de são paulo
ENTREVISTA SAUL FRAMPTON
O mundo à roda da torre
A vida no centro dos ensaios de Montaigne
FRANCESCA ANGIOLILLO
RESUMO Filósofo francês Michel de Montaigne é tema de livro recém-lançado no Brasil. Estudioso britânico examina os "Ensaios" sob o prisma da experiência imediata e cotidiana de seu autor e sugere que o termo "essai" tem mais a ver com "gosto" e com a atividade do pensador como viticultor do que com a ideia de "tentativa".
Dentro de uma torre cilíndrica, em meio aos vinhedos da região francesa do Périgord, foram produzidos alguns dos textos mais influentes da história do humanismo. Ali, cercado quase apenas dos livros deixados como herança pelo amigo Etienne de La Boétie, Michel Eyquem, o senhor de Montaigne, retirou-se do mundo das leis e escreveu seus famosos "Ensaios".
Nos textos, esse nobre e ex-magistrado (1533-92) se dedica à análise do mundo cotidiano, partindo de si mesmo e de sua experiência pessoal para investigar indagações e prazeres até então não frequentados pela filosofia habitualmente.
A relação de Montaigne com a vida mais imediata é o tema do britânico Saul Frampton, filósofo e estudioso de literatura renascentista, que oferece, em "Quando Brinco com a Minha Gata, Como Sei que Ela Não Está Brincando Comigo?" [trad. Marina Slade, Difel, 336 págs., R$ 39], uma fluente e agradável introdução à obra do pensador francês. Leia a seguir entrevista com o autor.
Folha - Por que escolher o tema do contato com a vida para abordar a obra de Michel de Montaigne?
Saul Frampton - Acho que porque queria me apropriar daquilo de que mais gosto em Montaigne. Todo mundo gosta dele, embora seja difícil dizer por que, exatamente. Ele é charmoso, elegante, espirituoso, engraçado, profundo, inteligente, tolerante, original.
Mas parecia-me que havia algo mais; o fato de que, lendo-o, a gente se sente próximo de um homem, não só de seus pensamentos, mas de seus gostos, sensações, do seu bigode, de seu cabelo castanho. Ele nos oferece não um retrato abstrato, mas íntimo, não só psicológico, mas quase físico.
Isso se cristalizou quando visitei a torre onde ele escrevia. Estar onde ele havia estado me causou frêmito. Ao mesmo tempo, concretizou meu desejo de me encontrar com ele, apesar da distância temporal, e, ao encontrá-lo, me encontrar a mim mesmo e à vida. Com Montaigne notei que descuidamos com frequência da proximidade com os outros e com a vida, mesmo se não há nada mais profundo que o nosso anseio por ela.
Há hoje uma grande quantidade de livros que tentam aproximar a filosofia da vida cotidiana, colocando as ideias e sua história sob a lupa da "utilidade". Considerando que para Montaigne a filosofia era a vida cotidiana, você acha que seu livro pode ser lido com esses olhos?
Sim e não (mas advertindo que não tenho uma opinião firme sobre como meu livro deva ser lido: se ele for lido, fico feliz). Devo dizer que sou grato à abertura desse campo de filosofia popular, dando chance a um livro como o meu de vir à luz. Mas com Montaigne se passa algo um pouco diferente. Existe a tentação de vê-lo como imediatamente relevante para os dias de hoje, de descrevê-lo como se ele fosse quase um blogueiro.
Para mim, há algo muito particular na maneira como ele aborda a vida. Nós costumamos vê-lo com uma perspectiva pós-iluminista, pondo a ênfase no aspecto ceticista de sua obra e vendo-o como uma personalidade relaxada, relativista. Mas ele tinha um lado sério, que nem sempre vem à tona, porque não é sistemático, e consiste no desejo de restaurar sua confiança na sociedade, uma sociedade que havia sido devastada pelas guerras religiosas.
Como esse lado aparece?
Em lugar de reafirmar sua confiança por meio de princípios abstratos, Montaigne se erigiu em exemplo. Apesar de não descrever a obra como didática, ele parece dizer que há formas honrosas de viver que não se baseiam nem no princípio religioso nem no político, mas dependem de uma disposição natural para a empatia --algo que ele depreende da observação tanto do mundo animal como do Novo Mundo. Ao se colocar sob exame, Montaigne nota essa empatia em sua tendência a imitar, em sua disposição para brincar com seu cão ou sua gata quando os animais querem brincar com ele.
Sua intenção é nos recordar de que todos temos essa capacidade: é o chamado do outro, mais do que a dor do outro, o que nos atinge. Eu acredito que o que Montaigne persegue se mostra, no nosso mundo des/conectado, como um aprendizado útil.
O sr. cunha uma nova hipótese para a origem do termo "essai", "ensaio", sob o qual Montaigne enfeixou sua obra, relacionando-o à acepção do verbo "essayer" que significa "provar", em vez da mais difundida entre os estudiosos do filósofo, "tentar". De que forma o sr. acha que essa proposição sua ilumina novas leituras de Montaigne?
"Essai" é normalmente traduzido como "tentativa", o que convém à leitura ceticista da obra de Montaigne. Mas ele era um "vigneron", um viticultor, numa era em que a produção de vinho se sofisticava. Tanto nos ensaios como nos seus diários de viagem fica claro quanto ele conhecia vinhos.
As palavras "essai" e "goût" --ambas significando "provar", "experimentar"-- são frequentes nos ensaios, e Montaigne se aferra muito a elas nas primeiras versões dos textos, só substituindo-as por outras, mais abstratas, como "apreender", em versões posteriores. O que isso sugere é que sua linguagem de viticultor lhe permite se colocar como objeto de sua própria experimentação --o que parece fácil, mas que ninguém tinha feito, dessa forma, antes dele.
Diferentemente da introspecção racional de, digamos, Descartes, Montaigne, ao se experimentar, demonstra consciência corporal, e não uma separação de mente e corpo: é mais humilde, mas mais vívido e profundo. Ele se lembra de sua animalidade, não de sua elevação. Ele se lembra do prazer e da experiência de viver. Essa consciência o conecta ao resto da sociedade, numa ideia de experiência compartilhada que todos nós deveríamos buscar.
A amizade com La Boétie foi determinante para os escritos de Montaigne. O sr. acha que a prevalência do ideal de amor romântico enterrou esse tipo de ligação intelectual?
De certa forma, a intensidade da relação de Montaigne com La Boétie reflete seu tempo: era uma sociedade fortemente patriarcal, e as relações masculinas eram consideradas mais perfeitas que aquelas entre homem e mulher. Isso ecoa a ideia clássica de amizade, livre de laços dinásticos ou conjugais. Além disso, para os humanistas do século 16, a amizade representava uma forma de liberdade linguística e intelectual: um espaço aberto para a discussão, isolado dos dogmas eclesiásticos.
Então, sim, para Montaigne, o papel da amizade ia além do recreativo ou do psíquico --era esse espaço para o livre pensar. Após a morte de La Boétie, seus ensaios de certa forma se tornam um sucedâneo da amizade. Montaigne dedica um ensaio inteiro à apreciação da conversação, mas, nele, o leitor é o seu amigo.
Montaigne recebeu uma educação bastante formal --provavelmente o padrão da época para alguém de sua posição. No entanto ele parece ter mantido o olhar atento às coisas mundanas, em vez de se voltar para temas supostamente mais elevados, como moral e religião. O sr. diria que essa é sua mais marcante singularidade como filósofo?
Sim, sua formação reflete o ideal humanista de aperfeiçoamento do homem. Ele era acordado pelo leve som de uma espineta [instrumento semelhante ao cravo] e aprendeu latim antes do francês. Seu aprendizado escolar representou uma imersão brutal na linguagem e nos costumes do classicismo, das sete da manhã às nove da noite. Mas Montaigne sempre teve clareza de que aquela era uma escola com professores "intoxicados pela própria raiva". O que ele mais apreciava nela era atuar, e isso talvez nos dê uma chave para o que você chama de sua mais marcante singularidade.
A função do teatro na escola era melhorar a oratória dos alunos, mas por meio dele Montaigne passou a observar, imitar e analisar o comportamento humano. Os ensaios estão perpassados pela preocupação com a linguagem e com o comportamento, não como simples expressões do pensamento, mas como forças em si. Ele lamenta que a atuação não fosse mais vista como profissão respeitável como na Antiguidade, e dá para se perguntar se, caso Montaigne não tivesse sido pressionado para estudar direito, não teria se tornado um Shakespeare francês.
Da forma como Montaigne é apresentado em seu livro, ele quase parece contemporâneo. O sr. acha que ele pode ser lido por qualquer um? Se não no original em francês arcaico, em traduções atualizadas é um autor tão acessível quanto parece?
Sim, ele é um desses grandes autores, como Shakespeare ou Cervantes, que podem ser lidos por "qualquer um". Seus ensaios começam meio devagar, com temas como diplomacia e estratégia militar, mas, conforme ele os reescreveu, eles os aqueceu, direcionando-os para seu tema --ele mesmo--, achando assim uma maneira de escrever como reviver, o que culmina no seu ensaio sobre a experiência.
Suas preocupações são imediatas, vibrantes e vivas: o sono, a tristeza, o amor e a amizade, filhos, sexo, morte. E seus diários de viagem, frequentemente deixados de lado, oferecem uma incrível visão de dentro do século 16: ele anda de trenó, fica em segundo lugar numa rifa e vai a Pisa, onde conhece o dr. Burro, que lhe dá um livro sobre movimentos das marés.
Montaigne nos oferece uma visão de algo que nós despachamos com muita facilidade: o simples fato de estar vivo. Seus ensaios são o que há de mais próximo, em termos literários, à matéria humana, em carne e osso.