domingo, 12 de maio de 2013

Lençóis secando na grama

folha de são paulo

IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Lençóis secando na grama
AMILCAR BETTEGA
O sol do meio-dia deixa-os ainda mais brancos, obrigando os olhos a fecharem-se, enquanto que o único desejo é beber o mundo. E o mundo, por enquanto, é um mar de campo, mar verde e seco, onde flutuam lençóis recém-lavados sob um céu infinitamente azul. Tudo paralisado nesse instante, nesse meio-dia de janeiro, quando as cigarras começam a enlouquecer.
O ar é puro, às vezes vem um cheiro de pêssego do pomar nos fundos da casa. E de longe vêm as vozes das mulheres, algumas risadas, e o barulho da roupa. Então a água, o sabão, outros lençóis e as mãos que batem surdamente o tecido molhado: tudo é lavagem ainda. Tudo é suspensão.
Agora os lençóis secam na grama, imensos panos de algodão que em breve serão recolhidos, antes que o calor comece a ressecar-lhes as fibras.
O menino está lá diante do mundo, os olhos castigados pela luminosidade excessiva. As cigarras se esganiçando dão a verdadeira dimensão do silêncio do campo ao meio-dia. Logo alguém vai chamar para o almoço, talvez o som de um rádio e o noticiário serão ouvidos ao longe. Todos os sons são ao longe. Tudo acontece à volta. Mesmo as cigarras, cujo retinir tende ao paroxismo, não estão ali. Por enquanto não há nada além de imensas manchas brancas sobre a grama. Silenciosas. E quarando.
Quarando, quarando, ele se repete a palavra que --já desconfia -- ficará ali, permanecerá como parte daquela paisagem, mesmo que o mundo avance.
Palavras e paisagens que não podem estar em outro lugar nem em outro tempo. Palavras e paisagens, mas não é isso o mundo? Nunca mais ele dirá, ou pensará, "quarando". Nunca mais, depois daqueles verões infinitos, de tardes infinitas suspensas pelo canto agonizante das cigarras. Para recuperar a palavra, para senti-la outra vez se formando na garganta, se mexendo dentro da boca antes de sair à procura de um significado que será sempre impreciso na sua imaginação, para isso vai ser preciso ser menino outra vez.
Voltar aqui, diante dos lençóis que secam sob o sol desse meio-dia sem fim, será a única forma de dizer "quarando" outra vez. E outra vez imaginar significados, inventar um corpo para essa palavra que é apenas som e o movimento de letras que se roçam umas contra as outras dentro da boca, trocar o sentido cada vez que pensar na palavra, cada vez que sentir que ela se forma no interior da garganta. Não será isso o mundo? Inventar sentidos na sombra fluida da palavra, acumular imagens na retina para voltar sempre à mesma paisagem que é a síntese antecipada desse mundo, o resultado da sobreposição de todas as paisagens que se descortinarão diante do menino que agora, isolado de tudo, no silêncio do janeiro mais afastado no tempo, olha abismado e quase cego para os lençóis incomensuravelmente brancos estendidos na grama, secando sob o sol.





A 'História das Histórias' de John Burrow

folha de são paulo

ROGERIO FORASTIERI DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

RESUMO É lançada no Brasil importante história geral da historiografia, isto é, da "história-discurso", de Heródoto e Tucídides ao século passado, escrita por renomado autor britânico. Eivada de problemas de tradução e anacronismos, porém, a edição brasileira denota pouca familiaridade com o tema do livro.
*
Em primeiro lugar, louvemos a iniciativa de traduzir "Uma História das Histórias: de Heródoto e Tucídides ao século 20" [trad. Nana Vaz de Castro, revisão técnica de Vera Chacham. Record, 598 págs., R$ 69,90], uma história geral da historiografia de autoria do britânico John Burrow (1935-2009), internacionalmente consagrado. Trata-se de um fato importante no contexto editorial brasileiro, uma vez que, salvo a obra de Josep Fontana ("História: Análise do Passado e Projeto Social", Edusc, 1998), as publicações em língua portuguesa de histórias gerais da historiografia que temos disponíveis são obras de caráter introdutório, oriundas de Portugal ou aqui publicadas.
No Brasil, a iniciativa pioneira nesse sentido cabe a José Honório Rodrigues, consignada em alguns capítulos de uma obra cujo escopo é mais amplo, a "Teoria da História do Brasil" (1949). Oxalá a presente publicação sirva de incentivo para que se produzam mais traduções de histórias gerais da historiografia, na medida em que, entre nós, os estudos historiográficos têm aumentado substancialmente em volume e qualidade, bem como consagrados centros de pesquisa, estudos e debates vêm promovendo encontros entre especialistas. É o caso, por exemplo, do Núcleo de Estudos da História da Historiografia e Modernidade e da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia, sediados no campus de Mariana da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
John Burrow destaca-se por aquilo que podemos designar como "o ponto de vista da história geral da historiografia", isto é, toma a história-discurso considerada na sua inteireza, desde os gregos até a atualidade. Não considera as mudanças a partir do século 19 ("história científica") como uma "ruptura epistemológica" como fazem normalmente outros historiadores da historiografia. O que o diferencia entre os seus pares é de suma importância porque permite distinguir a especificidade da história em relação às demais ciências sociais. Não se trata de apenas mais uma história geral da historiografia, mas a obra é especialíssima por este motivo.
Além da introdução e do prólogo, seguem-se cinco partes nas quais o autor nos oferece o contexto histórico da produção dos historiadores desde a Grécia até a atualidade. As cinco partes --uma forma possível de periodização da história da historiografia-- são as seguintes: "Grécia", "Roma", "Cristandade", "O Renascimento da História Secular" e "Estudando o Passado". Cada parte, por sua vez, divide-se em capítulos nos quais o autor seleciona os historiadores que considera significativos para cada período.
O prólogo merece uma atenção especial pois estabelece a distinção entre "fazer registros" e a constituição do "discurso histórico" para que possamos entender por que a história-discurso emerge na Grécia antiga e não nas anteriores civilizações da Antiguidade Oriental. A história-discurso passa a se constituir como algo fundamental para a definição de identidades coletivas bem como para a construção da memória social.
A quinta e última parte ("Estudando o Passado") é brilhantemente apresentada. Destaca que a partir do século 16 a história passa a ser objeto sistemático de estudo. Não depende mais somente dos antigos recursos para a reconstrução do passado, ou seja, os testemunhos, os cronistas e os historiadores dos períodos anteriores.
Acrescenta-se agora a pesquisa histórica em arquivos, de certa forma dando autonomia de trabalho e critérios mais efetivos para fortalecer o "compromisso com a verdade" caro aos historiadores. Daí o merecido destaque dado ao humanista italiano Lorenzo Valla (1407-57), que demonstrou que a "Doação de Constantino" não poderia ter sido escrita no século 4º e que não passava de um documento forjado na Idade Média.
Para que fique mais claro o que queremos dizer com "o ponto de vista da história geral da historiografia", implícito na obra de Burrow, essa perspectiva consiste em não considerar as mudanças ocorridas ao longo do século 19, consolidadas na "belle époque", como uma "ruptura epistemológica", pois esse último ponto de vista leva os historiadores da historiografia a considerar todo o período anterior à "historiografia científica" como "pré-história", com o que, se perde exatamente a especificidade da história no seu relacionamento com as ciências sociais.
Na obra de Burrow, esse ponto de vista já desponta no título "Uma História das Histórias", na distinção entre "fazer registros" e a "construção da história-discurso" ("acertar contas com o passado") e na estruturação: o estudo do passado começa antes do século 19.
TRADUÇÃO
Tratemos por fim dos aspectos formais relacionados à tradução que merecem reparos. O cotejo da obra original com a edição brasileira tornou possível constatar inumeráveis incorreções. De forma geral elas correspondem a supressões de palavras, mudanças de tempos verbais, erros comuns de tradução e de falsos cognatos, utilização de expressões não condizentes com uma obra acadêmica, incorreções na citação de nomes e datas, ausência de crédito de uso de tradução de terceiros e, por fim, erros que revelam falta de familiaridade com o tema do livro, isto é, a história.
Devido à limitação de espaço indicaremos apenas os lapsos mais eloquentes. Supressões: nada justifica a mutilação do sumário (omissão dos historiadores) pois a seleção é significativa para o conteúdo da exposição do autor (capítulos 3, 16 e 21 a 26). Por outro lado, suprimem-se palavras ao longo do texto, bem como muda-se o significado e o tempo verbal: o que no original é "parece refletir" passa a ser "reflete" (pág. 515); "parecia implicar" passa a ser "implicava" (pág. 529); "Weber pensava" passa a ser "Weber achava" (pág. 534).
Tradução de palavras e problemas com falsos cognatos: o que no original é "engenhosidade" passa a ser "ingenuidade" (pág. 98); "causalidade" passa a ser "casualidade" (pág. 200); "ideia" passa a ser "ideal" (pág. 298, 299); "menestréis" passa a ser "ministros (pág. 302); "epígrafe" passa a ser "prefixo" (pág. 380); "campônios boquiabertos" passa a ser "palhaços boquiabertos" (pág. 411); "lealdade emocional" passa a ser "aliança emocional" (pág. 522); "notável" passa a ser "notório" (pág. 525); "circunscrever" passa a ser "restringir" (pág. 529); "corolário" passa a ser "consequência" (pág. 533); "preços da época Tudor" passa a ser "príncipes Tudor" (pág. 550); "assim como à responsabilidade", passa a ser "assim como à contabilidade" (pág. 562).
De passagem, note-se o emprego de gíria incompatível com o trabalho acadêmico: "já era" (pág. 94), "para pegar um exemplo" (pág. 552); "cada vez mais badalada" (pág. 554); "a micro-história pega" (pág. 556).
No tópico relativo a problemas com nomes: "não gregos" passa a ser "bárbaros" (pág. 223); "Conselho Privado" passa a ser "conselho real" (pág. 561); "Jürgen Habermas" passa a ser "Norbert Elias" (pág. 532); "Seymour Martin Lipset" passa a ser "Martin Seymour Lipset" (pág. 542). As duas notas explicativas de rodapé são desastradas (pág. 365, 381). No que se refere a problemas com datas, o que é "1641" passa a ser "1691" (pág. 365); "século 16" passa a ser "século 17" (pág. 557); "século 20" passa a ser "século 21" (pág. 565).
Entre as páginas 418 e 434 utilizou-se, nas citações de Thomas Carlyle, a tradução da "A História da Revolução Francesa" de Antonio Ruas (1945), sem se dar o devido crédito. Mais grave ainda são as traduções dos textos de William Stubbs (págs. 451, 452), que estão incompreensíveis.
Por fim, há problemas atribuíveis à infamiliaridade com as ciências sociais em geral e a história em particular. Ao tratar da periodização estabelecida por Tucídides (século 5º a.C.), somos informados de que ele marcava o tempo "quando o cereal estava maduro" ou "enquanto o cereal amadurecia", que passa a ser "quando o milho estava maduro" ou "enquanto o milho amadurecia" (pág. 53). Assim como os romanos não "corriam a todo vapor" (pág. 190), na Antiguidade e na Idade Média os europeus não conheciam o milho, lá chegado após a conquista e colonização do Novo Mundo.
Onde é "Fortuna" passa a ser "Sorte" (págs. 188, 205); "Antão" passa a ser "Antônio" (págs. 232, 233); "Liga da Jarreteira" passa a ser "Ordem da Liga" (págs. 265); "Dia do Chefe da Municipalidade" (prefeito) passa a ser "festas do lorde Mayor" (págs. 413); "Juramento do Jogo da Pela" passa a ser "Juramento da Quadra de Tênis" (págs. 417); "bem-estar social" passa a ser "assistência social" (págs. 441); "Jano bifronte" passa a ser "obra de duas faces" (págs. 468); "entradas reais" passa a ser "registros sobre reis" (págs. 526); "quietismo político" passa a ser "imobilidade política" (págs. 537); "ethos" passa a ser "espírito democrático" (págs. 540).
Enfim, dado o exposto, a obra merece completa e rigorosa revisão.

Entrevista: RAIMUNDO CARRERO - Escrita salvadora


O Estado de S.Paulo - 12/05/2013

Raimundo Carrero lança Tangolomango, romance escrito com enorme empenho durante a recuperação de um AVC


Ubiratan Brasil




Tangolomango, novo romance
de Raimundo Carrero, é enxuto,
com apenas 128 páginas.
Mas, cada capítulo (na verdade,
cadafrase)representouumaautêntica
vitória para o escritor
pernambucano de 65 anos – afinal,
foi seu primeiro trabalho
publicado depois de sofrer um
acidente vascular cerebral
(AVC)emoutubrode2010,que
o deixou com a fala e parte da
movimentação comprometidas.
“Com isso, esse se tornou
meuprincipalromance”,garante
Carrero, em entrevista por
e-mail ao Estado.

Ele escreveu as respostas
usando apenas o dedo indicadordamãodireita,
recursotambémutilizadopara
criaratrama
de Tangolomango, emque recuperaumpersonagem
de seu romance
anterior, O Amor Não
Tem Bons Sentimentos, Tia Guilhermina.
Agora, em pleno carnaval,
ela sofre com a possibilidade
de seu sobrinho Matheus,
com quem mantém uma relação
muito íntima, ser preso. Sobre
o assunto, ele respondeu às
seguintes questões.


Pela circunstância em que foi
criado, é possível dizer que Tangolomango
é seu principal livro?

Sim, Tangolomango é o meu
principal romance, pelas circunstâncias
em que estou envolvido,
curando-me das sequelas
do AVC, pela vida de
Tia Guilhermina, por quem
me apaixonei perdidamente,
pelos avanços técnicos e pela
retomada dos elementos armoriais
– o carnaval é a maior festa
armorial brasileira, numa homenagem
ao meu amigo Ariano
Suassuna. Significa também
um retorno ao meu começo
literário com os temas centrais
e a consolidação da minha
visão do mundo. É um romance,
tecnicamente, muito
sofisticado, escrito em ritmo
de frevo, com improvisações,
variações e movimentos, sem
relatar, mas representando –
privilegiando sentimento e a
não narração convencional.
Sem esquecer que também
sou músico, toco sax tenor desde
a adolescência. Um romance
para a mente e o coração,
não apenas para os olhos.


Por que Guilhermina voltou?

Tia Guilhermina tinha um papel
muito forte na família Cavalcante
do Rego, com suas virtudes
e seus pecados, limpezas
e sujeiras, e porque sempre foi
considerada, pela família, como
um exemplo, um modelo,
daí ter sido escolhida para
criar Matheus. Só apareceu em
O Amor Não Tem Bons Sentimentos
porque Matheus resolveu
falar dela e da intimidade
da casa, os dois se amando e tomando
banhos juntos, nus.
Portanto, era tão sensual quanto
os outros. Uso a palavra sensual
no sentido dostoievskiano
de desregramento, do comportamento
impulsivo e cego,
que vai do crime físico, assassinatos,
traições, envolvimentos
até o amor. Assim, não apenas
sexual. Vai além, muito além.
Por isso, a técnica não podia
ser convencional, aproxima-se
da usada por Flaubert para narrar
os comícios agrícolas em
Madame Bovary, emque se pretende
escutar o burburinho da
feira. Também em Tangolomango
se pretende escutar o burburinho
do carnaval, com os sons
dos instrumentos, das músicas,
das letras, as reflexões desordenadas
da personagem, o
tempo sem tempo, a mudança
ou as mudanças dos tempos
verbais, uma aparente confusão.
É preciso ver Tangolomango
como um romance atemporal,
embora e em certo sentido
as músicas cantadas remetam
o texto a décadas passadas.


É curioso como Guilhermina
desponta melancólica mesmo
em uma época tão festiva como
o carnaval. Por quê?

Na verdade, Tia Guilhermina
está vivendo uma grande dor,
com saudades de Matheus acusado
de estuprar e assassinar a
mãe e a irmã. No começo da
narrativa, sabe-se que ela anda
em desespero porque Matheus
vai a novo julgamento, e isso a
inquieta: “Como é que um menino
tão doce e tão belo” pôde
estuprar e matar a mãe e a irmã?
E, se isso aconteceu, ela
não quer admitir, por que não
foi com ela, já que ele fez sexo
e, portanto amou? E não com
ela, que amava tanto?Umgrande
ciúme, um magnífico ciúme,
mesmo que tivesse sido assassinada.
Não poderia ser de outra
forma: carnaval e tristeza, sem
dúvida. Sem contar, que o carnaval
é uma festa triste. “Tanto
riso, ó quanta alegria, mais de
mil palhaços no salão”, diz Zé
Kéti interpretando o amor de
Pierrot e Columbina. Carnaval
e tristeza, a mesma coisa.


Vejo semelhança no seu trabalho
com o do cineasta Claudio
Assis, também pernambucano.

Somos autores sensuais, naquele
mesmo sentido de que fala
Dostoievski, sem limites, excessivos.
Já fui chamado de apóstolo
do excesso, com o que concordo.
Quero ir sempre à raiz
da alma, ainda que isso me cause
sofrimento. É preciso botar
o dedo na ferida. Um escritor
não pode se esquecer disso.


Por que os capítulos do livro
são curtos e sempre com títulos
provocativos?

Em certo sentido, precisei controlar
o texto no computador,
até porque me perdia muito,
sentia a mente flutuando. E
não gosto de títulos diretos,
narrativos – isso antecipa os fatos
ao leitor. O título provocativo
ou poético surpreende,
não diz, não afirma. E a narrativa
deve ser sempre assim, surpreendente.

Como está a escrita do novo
volume da trilogia? Você já tem
toda a trama definida, faltando
escrever ou vai criando ao sabor
da união das palavras?

Sim, chama-se Lamalagata (o
caminho da águia no ar) e enfocará
a personagem Paloma,
amiga de Camila, que também
aparece em outro romance,
Minha Alma É Mãe de Deus. Lá
está dito que ela não cresceu
fisicamente e permaneceu menina
a vida inteira. Uma personagem
cruel e rebelde, mesmo
quando há algum lirismo.
Pela primeira vez surge uma
personagem fora da família,
mas ligada a ela pela amizade,
grande amizade, embora no
momento eu esteja mais preocupado
com a biografia de Jesus,
e que se chama Jesus Cristo
– O Deus Perseguido. E que
começa com Nossa Senhora
caminhando para Belém




Cientistas políticos são melhores do que analistas de TV?

folha de são paulo

NATE SILVER
tradução CLÁUDIO FIGUEIREDO e ANA BEATRIZ RODRIGUES

RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano traz trecho editado de "O Sinal e o Ruído", no qual o estatístico Nate Silver expõe seu método de análise de dados para fazer previsões. Na política, ele acertou 9 em 11 resultados nas eleições americanas de 2010. O livro sai em junho, pela Intrínseca.
*
A desintegração da União Soviética e de outros países do Leste Europeu se deu a um ritmo notavelmente rápido e, de modo geral, dentro de certa ordem.1
Em 12 de junho de 1987, o presidente norte-americano Ronald Reagan, junto ao Portão de Brandemburgo, implorou ao dirigente soviético Mikhail Gorbatchov que botasse abaixo o Muro de Berlim --uma medida popular e louvável que parecia tão audaciosa quanto a promessa de John F. Kennedy de enviar um homem à Lua. Reagan mostrou-se certeiro: menos de dois anos depois, o Muro cairia.
Em 16 de novembro de 1988, o Parlamento da República da Estônia, uma nação do tamanho aproximado do Estado americano do Maine, declarou sua independência em relação à todo-poderosa URSS. Menos de três anos depois, Gorbatchov evitou um golpe planejado pela linha-dura do partido em Moscou, e a bandeira soviética desceu pela última vez diante do Kremlin; como a Estônia, outras repúblicas soviéticas logo se tornariam Estados independentes.
Contudo, se a queda do império soviético a posteriori pareceu previsível, quase nenhum cientista político ligado às instituições de maior prestígio tinha vislumbrado esse desfecho. As poucas exceções haviam sido ridicularizadas. Se cientistas políticos não puderam prever a derrocada da URSS --talvez o acontecimento mais importante na segunda metade do século 20--, para que exatamente eles serviriam?
Philip Tetlock, professor de psicologia e de ciência política --lecionando, na época, na Universidade da Califórnia em Berkeley--, fazia-se algumas dessas perguntas. Na verdade, ele realizou uma experiência ambiciosa e inédita durante o colapso da URSS. Tendo dado início ao projeto em 1987, Tetlock colheu previsões de um amplo espectro de especialistas, na academia e em instituições governamentais, a respeito de uma enorme variedade de temas ligados a política interna, economia e relações internacionais.2
Tetlock descobriu que os especialistas em política tiveram dificuldades para antecipar a queda da URSS porque uma previsão que não apenas antevisse a extinção do regime mas compreendesse suas razões exigia que diferentes sequências de argumentos se combinassem. Não havia elementos inerentemente contraditórios nessas ideias, mas elas tendiam a ser expressas por pessoas de lados opostos do espectro político, e era improvável que estudiosos arraigados a determinado campo ideológico adotassem ambos os tipos de argumentos.
Por um lado, Gorbatchov era um fator decisivo nessa história --seu desejo de promover reformas era sincero. Se tivesse decidido ser contador ou poeta em vez de entrar para a política, a URSS poderia ter sobrevivido por pelo menos mais alguns anos. Os progressistas tendiam a vê-lo com mais simpatia. Conservadores se mostravam mais desconfiados --e alguns encaravam sua conversa a respeito da "glasnost" como mera pose.
Estes, sendo instintivamente mais críticos em relação ao comunismo, compreenderam com mais rapidez que a economia da URSS estava naufragando e que a vida se tornava cada vez mais difícil para o cidadão médio. Já em 1990, a CIA estimava --de modo bastante equivocado3-- que o PIB soviético equivalia a cerca da metade do valor americano (per capita, seria equivalente ao PIB atual de democracias estáveis como Coreia do Sul e Portugal).
Na realidade, dados recentes revelaram que a economia soviética, enfraquecida pela longa guerra no Afeganistão e pelo descaso do governo em relação a uma série de problemas sociais, encontrava-se cerca de 1 trilhão de dólares mais pobre do que indicava a estimativa da CIA e encolhia a uma razão de 5% ao ano, com a inflação mantendo-se em dois dígitos.
Considere esses dois fatores e seria mais fácil prever o colapso da URSS. Ao abrir a mídia e os mercados do país e conceder maior autoridade democrática aos seus cidadãos, Gorbatchov havia proporcionado ao povo um mecanismo para catalisar uma mudança no regime. E, devido ao estado deteriorado da economia do país, a população mostrou-se feliz em tirar proveito da oferta. O centro do sistema se mostrava fraco demais: não apenas os estonianos estavam cheios dos russos como estes estavam, quase na mesma medida, cheios dos estonianos, já que as repúblicas satélites contribuíam menos para a economia soviética do que recebiam em subsídios dados por Moscou.
Quando os domínios começaram a cair no Leste Europeu --Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Bulgária, Hungria e Alemanha Oriental estavam em meio a uma revolução em fins de 1989--, havia pouco que Gorbatchov ou qualquer outro pudesse fazer para evitar que o país desmoronasse. Muitos especialistas soviéticos conheciam partes do problema, mas poucos tinham colocado todas as peças do quebra-cabeça no lugar, e quase ninguém antecipou o súbito colapso da URSS.
Tetlock, inspirado pelo exemplo soviético, começou a fazer sondagens com especialistas de outras áreas, pedindo que fizessem previsões a propósito da Guerra do Golfo, da bolha imobiliária japonesa, de uma possível separação do Québec e do Canadá e de quase todos os grandes acontecimentos dos anos 1980 e 1990. O fracasso em prever o colapso da URSS seria uma anomalia ou as análises políticas dos "especialistas" raramente fazem jus à consideração que recebem? Suas pesquisas, que se estenderam por mais de 15 anos, foram publicadas, em 2005, no livro "Expert Political Judgment" [A avaliação dos especialistas em política].
A conclusão de Tetlock foi devastadora. Os especialistas ouvidos em sua sondagem --a despeito de cargos, experiência ou campo de atuação-- saíram-se só um pouco melhor do que prognósticos guiados pelo mero acaso e, ao preverem acontecimentos políticos, saíram-se pior até mesmo do que métodos estatísticos rudimentares.
Mostravam uma autoconfiança muito exagerada e eram péssimos no cálculo de probabilidades: cerca de 15% dos acontecimentos que disseram não ter a menor chance de ocorrer tornaram-se realidade, enquanto jamais aconteceram cerca de 25% dos eventos de cuja ocorrência estavam absolutamente certos. Não importa se as previsões dos especialistas diziam respeito a economia, política interna ou assuntos internacionais, suas avaliações se mostraram igualmente equivocadas em todo o espectro de temas.
A ATITUDE CORRETA PARA FAZER MELHORES PREVISÕES: PENSE COMO A RAPOSA
Ainda que, tomado em seu conjunto, o desempenho dos especialistas tenha deixado a desejar, Tetlock descobriu que alguns se saíram melhores do que outros. Entre os que tinham se mostrado piores, estavam aqueles cujas previsões eram citadas com maior frequência na mídia. Quanto mais entrevistas haviam concedido à imprensa, descobriu Tetlock, piores tendiam a ser suas previsões.
Outro subgrupo, contudo, saiu-se relativamente bem. Com sua formação em psicologia, Tetlock se interessara pelos estilos cognitivos dos especialistas, no modo como eles pensavam o mundo, e submeteu todos, então, a algumas perguntas extraídas de testes de avaliação da personalidade.
Com base nesses resultados, Tetlock conseguiu dividir seus especialistas ao longo de um espectro entre o que chamou de "porcos-espinhos" e de "raposas". A referência aos animais vem do título de um ensaio de Isaiah Berlin sobre o romancista russo Lev Tolstói, chamado "O Porco-Espinho e a Raposa". Berlin, por sua vez, extraiu seu título de um trecho atribuído ao poeta grego Arquíloco: "Muita coisa sabe a raposa; o porco-espinho, uma só, e grande".
A menos que você seja fã de Tolstói --ou de um estilo floreado--, não há motivo para ler o ensaio de Berlin, mas sua ideia básica é que escritores e pensadores podem, grosso modo, ser divididos em duas categorias:
  • Porcos-espinhos são personalidades de tipo A, que acreditam em grandes ideias4 --ou seja, certos princípios que regem o mundo com o rigor de leis da física e que sustentam praticamente todas as interações que ocorrem na sociedade. Pense em Karl Marx e a luta de classes ou em Sigmund Freud e o inconsciente. Ou em Malcolm Gladwell e o "ponto da virada".
  • Raposas, por outro lado, são criaturas afeitas a fragmentos, que acreditam numa infinidade de pequenas ideias e em adotar uma série de abordagens diferentes para um problema. Tendem a ser mais tolerantes em relação às nuances, à incerteza, à complexidade e às opiniões discordantes. Se os porcos-espinhos são caçadores e estão sempre em busca de uma presa grande, as raposas são animais coletores.
Raposas, descobriu Tetlock, são muito melhores em fazer previsões do que porcos-espinhos. Em relação à URSS, por exemplo, seus prognósticos tinham chegado mais perto do alvo. Em vez de encarar a URSS de maneira altamente ideológica --como um "império do mal" ou como exemplo relativamente bem-sucedido (e talvez até admirável) de um sistema econômico marxista--, viram-na, ao contrário, como aquilo que era: uma nação que funcionava cada vez pior e sob risco de se desintegrar. Enquanto as previsões dos porcos-espinhos eram pouco melhores do que opções escolhidas aleatoriamente, as raposas demonstraram habilidade para prever.
POR QUE PORCOS-ESPINHOS SE SAEM MELHOR NA TV
Encontrei-me com Tetlock para um almoço numa tarde de inverno, no hotel Durant, construção imponente e ensolarada nas imediações do campus de Berkeley. Como era de esperar, ele se revelou uma raposa: de fala mansa, era cuidadoso e fazia uma pausa de 20 ou 30 segundos antes de responder às minhas perguntas (para não me oferecer uma resposta impensada).
"Quais são os incentivos para um intelectual conhecido?", perguntou-me Tetlock. "Alguns integrantes da academia não se incomodam em ser anônimos, mas outros aspiram a ser intelectuais famosos, a se mostrar ousados e a associar probabilidades não negligenciáveis a mudanças bastante dramáticas. Com essa atitude, têm mais chance de atrair atenção."
Previsões grandiosas e ousadas --em outras palavras, no estilo dos porcos-espinhos-- têm maior probabilidade de levar seus autores à TV. Considere o caso de Dick Morris, ex-assessor de Bill Clinton que agora trabalha como comentarista para a Fox News. É um exemplo clássico de porco-espinho, cuja estratégia parece consistir em fazer uma previsão dramática sempre que possível.
Em 2005, Morris proclamou que o modo como George W. Bush lidou com o furacão Katrina iria ajudá-lo a recuperar sua reputação junto à opinião pública. Na véspera das eleições de 2008, previu que Barack Obama venceria no Tennessee e em Arkansas. Em 2010, Morris previu que os republicanos poderiam conquistar, com facilidade, cem cadeiras na Câmara. Em 2011, disse que Donald Trump concorreria para ser o candidato do Partido Republicano e que tinha "excelentes" chances.
Todas essas previsões se revelaram completamente erradas. Para Bush, o furacão Katrina significou o começo do fim, não o início de uma recuperação. Obama perdeu feio no Tennessee e em Arkansas --na verdade, ambos estiveram entre os únicos Estados nos quais seu desempenho foi pior do que o obtido pelo democrata John Kerry quatro anos antes. Os republicanos tiveram uma noite feliz em novembro de 2010, mas conquistaram 63 cadeiras, não 100. Trump desistiu de concorrer à Presidência apenas duas semanas depois de Morris ter insistido que ele tentaria entrar na disputa.
Porém Morris é ágil, tem boa conversa e sabe vender a si mesmo. Assim, ele continua sendo uma presença constante na Fox News e vendeu seus livros para centenas de milhares de pessoas.
Às vezes, raposas têm dificuldade de se enquadrar em culturas Tipo A, como a da TV, dos negócios e da política. Sua crença de que é difícil fazer previsões sobre muitos problemas e de que deveríamos assumir essas incertezas pode ser tomada equivocadamente como falta de autoconfiança. Sua abordagem pluralística pode ser encarada como falta de convicção; numa frase famosa, Harry Truman pediu "um economista de um lado só", frustrado pelo fato de as raposas do seu governo serem incapazes de lhe dar respostas inequívocas.
Acontece, porém, que as raposas fazem previsões muito melhores: elas reconhecem com mais rapidez até que ponto possíveis ruídos podem distorcer as informações e se mostram menos inclinadas a correr atrás de falsos sinais. Elas sabem mais a respeito daquilo que ainda não conhecem.
Se você estiver procurando um médico que preveja o desdobramento de determinado problema de saúde ou um consultor financeiro que dê dicas sobre como aumentar o retorno de suas aplicações, talvez seja melhor confiar numa raposa. Ela pode fazer promessas mais modestas; no entanto tem mais chances de êxito.
POR QUE PREVISÕES POLÍTICAS TENDEM A FRACASSAR
Atitudes típicas de uma raposa podem ser importantes quando se trata de fazer previsões sobre política, pois elas têm mais cuidado em evitar algumas armadilhas que podem levar os porcos-espinhos a fazerem papel de idiota.
Uma dessas armadilhas consiste simplesmente em ideologia partidária. Morris, apesar de ter assessorado Bill Clinton, identifica-se como republicano e levanta doações para os candidatos do partido --e suas opiniões conservadoras se encaixam na visão da emissora que o contratou, a Fox News. Mas os progressistas não estão imunes à possibilidade de serem porcos-espinhos.
Em meu estudo sobre a precisão nas previsões feitas pelos integrantes de "The McLaughlin Group", Eleanor Clift --normalmente a convidada mais progressista da equipe de colaboradores-- quase nunca emitia um prognóstico favorável aos republicanos que não fosse consenso no grupo. Isso pode tê-la ajudado quando previu o resultado das eleições de 2008, mas, a longo prazo, ela não se mostrou mais precisa do que seus colegas conservadores.
Especialistas do mundo acadêmico, como os estudados por Tetlock, podem sofrer com o mesmo problema. Na realidade, um pouco de conhecimento pode se tornar algo perigoso nas mãos de um porco-espinho com PhD. Uma das descobertas mais notáveis de Tetlock é o fato de que, enquanto as raposas tendem a fazer prognósticos cada vez melhores, o contrário pode ser dito a respeito dos porcos-espinhos: seu desempenho tende a piorar à medida que acumulam credenciais.
Tetlock acredita que, quanto maior a quantidade de fatos com que os porcos-espinhos lidam, mais oportunidades eles têm para permutá-los e manipulá-los de modo que confirmem suas visões preconcebidas. A situação é análoga à de um hipocondríaco colocado numa sala escura com conexão à internet. Quanto mais tempo lhe déssemos, mais informações ele teria à sua disposição e mais ridículo seria o autodiagnóstico ao qual chegaria; não demoraria muito para que visse um simples resfriado como peste bubônica.
Ainda que tenha descoberto que porcos-espinhos de direita e de esquerda fazem prognósticos igualmente ruins, Tetlock também notou que as raposas de todas as posições políticas mostravam-se mais imunes a esses efeitos. Raposas podem ser enfáticas em suas convicções a respeito de como o mundo deveria ser, mas normalmente conseguem separar essas percepções da sua análise sobre o modo como o mundo é, e sobre como será num futuro próximo.
Porcos-espinhos, ao contrário, têm maior dificuldade em distinguir sua análise dos ideais arraigados. Em vez disso, segundo Tetlock, eles criam "uma fusão indistinta entre fatos e valores, embolando todos juntos" e adotam uma visão preconcebida das evidências que examinam, enxergando o que desejam ver e não o que realmente existe.
Você pode aplicar o teste de Tetlock para saber se é um porco-espinho: suas previsões melhoram à medida que você ganha acesso a mais informações? Teoricamente, um número maior de informações deveria auxiliar bastante a formulação de previsões --é sempre possível ignorar uma informação se ela não parece ajudar muito. Porém, porcos-espinhos tendem a se embrenhar no meio de um cipoal.
Veja o caso de uma sondagem promovida pelo periódico "National Journal", abrangendo cerca de 180 políticos, consultores políticos, pesquisadores de opinião e analistas. A pesquisa é dividida entre partidários republicanos e democratas, porém as mesmas perguntas são dirigidas a ambos os grupos. Independentemente da posição política, o grupo que tende a assumir a atitude de porco-espinho é composto por elementos atuantes na política, que exibem suas cicatrizes de batalha com orgulho e veem a si mesmos presos a uma eterna luta contra seus antagonistas.
Poucos dias antes das eleições de 2010, no período entre campanhas presidenciais, o "National Journal" perguntou aos analistas políticos que colaboravam com a publicação se era provável que os democratas conservassem o controle da Câmara e do Senado. Havia quase um consenso a respeito dessas questões: os democratas manteriam o Senado, mas os republicanos assumiriam o controle da Câmara (a sondagem acertou as duas previsões).
Os integrantes de ambos os partidos também estavam praticamente de acordo a respeito das dimensões da vitória dos republicanos na Câmara; os especialistas democratas disseram que seus adversários conquistariam 47 cadeiras, enquanto os republicanos previram um ganho de 53 posições --diferença trivial considerando que existem 435 vagas na Câmara.
Em sua sondagem, contudo, o "National Journal" também pediu prognósticos para os resultados de 11 eleições específicas, incluindo disputas no Senado, na Câmara e pelos governos dos Estados. Aqui, as diferenças foram muito maiores. O conjunto de pessoas ouvidas mostrou-se dividido sobre quais seriam os vencedores nas disputas pelo Senado em Nevada, Illinois e Pensilvânia, a respeito da eleição para o governo na Flórida e sobre uma disputa especialmente decisiva para a Câmara em Iowa.
De modo geral, os republicanos ouvidos esperavam que os democratas ganhassem apenas uma das 11 disputas, enquanto estes esperavam vencer em 6. (O resultado, como era de esperar, foi mais ou menos um meio-termo entre as duas visões: os democratas venceram 3 das 11 disputas sondadas pelo "National Journal".)5
É óbvio que o partidarismo desempenhou algum papel aqui: democratas e republicanos estavam torcendo para seus próprios times. Contudo isso não basta para explicar a maneira pouco usual como os analistas ouvidos se dividiram ao responderem aos diferentes tipos de perguntas. Quando consultados em termos gerais sobre até que ponto os republicanos seriam bem-sucedidos, foi registrada ínfima diferença entre as pessoas ouvidas. Entretanto, os dois lados diferiam de modo profundo quando questionados sobre casos específicos, que traziam à tona as diferenças entre os partidos.6
Informações em excesso podem se tornar um mau negócio para um porco-espinho. Saber quantas cadeiras os republicanos provavelmente tirariam dos democratas era uma questão abstrata: a menos que tivessem examinado todas as 435 disputas, poucos detalhes adicionais poderiam ajudar a chegar a uma conclusão.
Ao contrário, quando indagados sobre qualquer uma daquelas disputas --digamos, a eleição para o Senado por Nevada--, os especialistas ouvidos dispunham de todo tipo de informação: não só as pesquisas de opinião mas novos relatos sobre a campanha, fofocas ouvidas de amigos ou julgamentos sobre os candidatos ao vê-los na TV. Talvez até conhecessem pessoalmente os candidatos ou pessoas que trabalhassem para eles.
Porcos-espinhos que contam com muitas informações constroem histórias --histórias que são mais nítidas e mais coerentes do que o mundo real, com protagonistas e vilões, vencedores e perdedores, clímax e desfechos e, geralmente, um final feliz para o time pelo qual torcem.
Mesmo com uma desvantagem de dez pontos, minha candidata acabará ganhando, que diabo!, porque conheço ela e os eleitores do Estado e porque talvez eu tenha ouvido algo de sua assessora de imprensa sobre a diminuição da diferença nas pesquisas de opinião --e você já viu o novo anúncio dela na TV?
Ao construirmos essas histórias, podemos perder a capacidade de pensar criticamente a respeito das evidências. Eleições costumam apresentar trajetórias emocionantes. Não importa sua opinião sobre as ideias políticas de Barack Obama, de Sarah Palin, de John McCain ou de Hillary Clinton em 2008: todos tinham histórias de vida carismáticas, e livros-reportagem sobre a campanha, como "Virada no Jogo", de John Heilemann e Mark Halperin, podiam ser lidos como intrincados romances best-sellers.
Os candidatos que concorreram em 2012 eram menos interessantes, mas ofereciam material mais do que suficiente para proporcionar a habitual combinação de clichês dramáticos, da tragédia (Herman Cain?) à farsa (Rick Perry).
É possível se perder nessa narrativa. Pode ser que a política seja um campo especialmente suscetível a previsões infelizes por causa dos elementos humanos envolvidos: uma boa eleição apela para nossas sensibilidades dramáticas.
Você pode ter algum envolvimento emocional com um acontecimento político e, ainda assim, fazer uma boa previsão a respeito, mas uma atitude de raposa --mantendo certo distanciamento-- pode trazer bons resultados.
Notas
* As notas meramente bibliográficas foram suprimidas. O texto tem revisão técnica de Euchério Lerner Rodrigues.
1. Das várias revoluções registradas no Leste Europeu em 1989, apenas a ocorrida na Romênia resultou em algum derramamento substancial de sangue.
2. No entender de Tetlock, um "especialista" é qualquer um que ganhe a vida por meio de sua suposta competência em determinado campo --por exemplo, o correspondente do "Washington Post" em Moscou seria um especialista em URSS da mesma forma que um "sovietólogo" de Berkeley.
3. A estimativa incorreta a respeito do PIB soviético explica-se, em parte, por a CIA ter considerado o impressionante setor militar e deduzido, a partir dele, uma estimativa geral para o tamanho da economia. Porém a União Soviética, em termos per capita, estava destinando aos gastos militares uma porcentagem muito maior do PIB do que faziam as economias capitalistas da Europa e da América do Norte.
4. Segundo uma popular teoria psicológica surgida nos anos 1950, personalidades tipo A seriam mais rígidas, organizadas, impacientes e estressadas. As personalidades de tipo B apresentariam características opostas. [Nota do tradutor]
5. O modelo de previsão do blog "FiveThirtyEight", que não recorre a informações "internas", acertou 9 entre 11 previsões sobre disputas eleitorais -- um resultado melhor do que o obtido pelos democratas (que acertaram uma média de 6,9) e pelos republicanos (8,4).
6. Observe que essas previsões nem sequer são coerentes: se os membros que participavam da campanha democrata esperavam vencer quase todas as disputas menos importantes, por exemplo, deveriam ter previsto que o partido se sairia bem o bastante para manter a Câmara em seu poder.

De como Juvenal se tornou o fenômeno Naná Vasconcelos

folha de são paulo

CARLOS BOZZO JUNIOR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

RESUMO Naná Vasconcelos, 68, pernambucano, negro, oito vezes melhor percussionista do mundo e vencedor de oito Grammy, viveu mais de 30 anos fora do Brasil. Seus fãs vão dos confrades na música ao cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Considerado um fenômeno, Naná diz que a fama só importa em "cabeça de camarão".
*
Ninguém o chama de Juvenal, que oficialmente antecede o "de Holanda Vasconcelos".
O guitarrista Pat Metheny o chama de Doctor, e o percussionista indiano Trilok Gurtu, de Paxá. Por oito vezes, foi chamado pela revista "DownBeat" de o "melhor percussionista do mundo", em votação promovida entre críticos pela publicação norte-americana dedicada ao jazz. O cineasta italiano Bernardo Bertolucci não admite que o chamem de músico, mas sim de "A Música". Quando alguém o chama de "Mestre", rebate, humildemente: "Mestre está no céu".
O apelido pelo qual ele decidiu ser chamado foi dado pela mãe, Petronila, quando ainda moravam juntos no bairro Sítio Novo, em Olinda. "Ela foi encurtando de 'Juvenár' até chegar em Naná."
Diego Nigro/Folhapress
Naná Vasconcelos visita a mostra "Baixio dos Doidos", sobre Gonzagão
Naná Vasconcelos visita a mostra "Baixio dos Doidos", sobre Gonzagão
O pai de Naná Vasconcelos, Pierre, tocava manola --violão tenor de quatro cordas, amplificado-- na boate da sede do bloco Batutas de São José, no Recife. Aos 11 anos, o filho já queria ser percussionista. "Aperreei tanto batendo nas panelas e caçarolas de casa que ele me deu um bongô, umas maracas e um afoxé", recorda o músico, que procurou por trabalho apenas na primeira vez. Depois dela, diz ter sido sempre convidado.
Acatou o pai e, aos 12 anos, obteve autorização do Juizado de Menores para tocar na banda, com a condição de nunca descer do palco. "Tocávamos 45 minutos e parávamos 15, para o pessoal namorar. Eu ficava lá em cima, só olhando", conta Naná, que segue obedecendo à regra imposta pelo pai desde o primeiro dia de trabalho: "O que se via lá se deixava por lá".
O baile foi uma grande escola para o ritmista --nos anos 50 não se usava dizer percussionista--, que terminou o ginásio e saiu tocando para as pessoas dançarem, ao som de muito bolero, mambo e chá-chá-chá. Nunca frequentou escolas de música e, autodidata também para as escolhas literárias, lembra ter lido livros de Hermann Hesse e Carlos Castaneda.
Após a morte do pai, deixou a boate da sede do bloco. Em 1957, entrou para a Banda Municipal de Recife no lugar dele, trabalhando como arquivista e distribuindo partituras para os músicos, mas sem tocar. "Entendia que ritmista vinha depois do baterista, e isso me incomodava." Comprou uma bateria à prestação e começou a estudar, sem professor, de manhã, no camarim do teatro onde, na parte da tarde, a banda ensaiava.
BAMBU
Música ele ouvia basicamente pelo rádio --sintonizado por uma antena sustentada por um bambu no telhado da casa--, e jazz era o que escutava na emissora A Voz da América. Eis que surgiu a bossa nova e, com ela, "Adriana", canção de Roberto Menescal e Lula Freire composta no embalo de "Take Five", de Dave Brubeck. O tema era novidade, um jazz diferente do tradicional, mas soava familiar ao garoto que adaptava para o samba o que ouvia pelo rádio, além de imitar o solo do baterista de Brubeck, Joe Morello.
Quando surgiu o primeiro festival de bossa nova de Pernambuco, Naná foi a um dos dois lugares onde, no Recife, os músicos se congregavam para oferecer e negociar seus serviços --os tradicionais "pontos"-- e ali, na rua do Imperador, foi informado de que precisavam de um baterista que tocasse "Adriana" e soubesse solar. Naná, 17, mostrou que sabia e terminou 1961 com os colegas tendo-o na conta de melhor baterista do ano.
Nos bastidores de um dos muitos programas de TV em que se apresentaria naquela época, Naná e outros três músicos conheceram um bailarino brasileiro que radicava em Portugal. No improviso, nasceu o Quarteto Yansã, arrebanhado com a finalidade de tentar a sorte em Lisboa, primeiro destino internacional do jovem músico.
A trupe, porém, deu com a cara na porta --o bailarino, que prometera ajuda, não estava na cidade. Rodavam a esmo por Lisboa quando, de repente, Naná ouviu: "Negão, o que você está fazendo aqui?". Era o cantor paulistano Agostinho dos Santos, o "Rouxinol", que havia gravado a trilha do filme "Orfeu do Carnaval".
Santos, que Naná conhecia de tocar na noite e na TV, também estava na pior: tinha enganado o comandante do navio no qual cantava e deu no pé, dizendo que precisava do passaporte (retido até o fim do cruzeiro) para ir comprar alguns dólares em terra.
Sem dólar nem trabalho, o cantor se uniu ao grupo. Juntos, fizeram vários shows, em que a presença de celebridades como o jogador Eusébio, do Benfica, era uma constante. Aproveitaram o reconhecimento e gravaram o disco "Agostinho dos Santos".
De volta ao Recife, em 1967, Naná foi à casa do compositor Capiba. Queria convencê-lo de que era o único músico capaz de tocar o maracatu por ele composto para representar Pernambuco no festival O Brasil Canta No Rio.
O evento não pagava transporte, alimentação nem hospedagem. Capiba indagou: "Meu filho, você conhece alguém lá no Rio de Janeiro?" "Conheeeeço", mentiu. "Tem lugar para ficar?" "Teeenho", rementiu. Ganhou do compositor as passagens de ida e volta. De madrugada, saindo para pegar o ônibus, ouviu da mãe a profecia: "Você não volta mais. Deus o abençoe", conta, os olhos marejados.
A hospedagem ele também descolou na esperteza. Aproveitando a tumultuada chegada ao hotel dos seis integrantes cegos do grupo Titulares do Ritmo, se fez passar por membro do "entourage" e conseguiu um quarto.
A música de Capiba não ganhou o festival, mas Naná ganhou um amigo e um trabalho. Pelas mãos de Geraldo Azevedo foi a uma festa na casa de Milton Nascimento e, tocando em suas panelas, encantou-o. Foi convidado para gravar com o mineiro. A pegada percussiva africana de "Sentinela" é dele.
Após participar de grupos de MPB como O Som Imaginário, A Tribo e Sagrada Família, foi convidado pelo saxofonista argentino Gato Barbieri para shows em Buenos Aires. Lá se aprimorou no berimbau, que já vinha experimentando. O instrumento, que deu ao grupo de Barbieri uma nota exótica, ganhou, nas mãos de Naná, nova reputação --além de uma sonoridade peculiar, que o percussionista atribui ao LSD.
"Foi bom tomar. Nunca tomei sozinho, mas em companhia de meus instrumentos." Gosta de contar que, nessas ocasiões, deixava a casa limpa e provida de alimentos e esperava o efeito bater, deixando os instrumentos por perto. "Quando a reação vinha, a primeira coisa que eu queria era tocar. Minha sensibilidade aflorava, e eu ficava concentrado só na música." Hoje, aprecia apenas um bom vinho ou uma boa cachaça, mas nunca antes de se apresentar.
Foi com Gato Barbieri que chegou a Nova York. Lá, morou por cerca de um ano com o cineasta Glauber Rocha, que, em tom jocoso, assim resumia o novo som que o pernambucano tirava do berimbau: "Você fodeu com os baianos".
Enquanto no loft convivia com colegas de cinema de Glauber, como Bertolucci e Jean-Luc Godard, fora dele o músico ganhava fama própria, tocando o que seu anfitrião chamava "jazz do Terceiro Mundo", no icônico Village Vanguard. A imprensa referia-se a Naná como "The Jungle Man", por seu exotismo e pela maneira surpreendente de tocar. Seus dois minutos de solo rendiam intermináveis aplausos e assobios.
Naná com Gato Barbieri consolidava, ao lado de Airto Moreira com Miles Davis, o sucesso da percussão brasileira pelo mundo. Em 1970, saiu em turnê com Barbieri pela Europa e resolveu ficar.
Escolheu Paris para fixar residência e gravar o primeiro de seus mais de 30 discos, "Africadeus" (1971), além de inúmeras trilhas sonoras para cinema, teatro e balé. A capital francesa foi a plataforma inicial para inúmeras parcerias que faria com músicos superlativos nas três décadas seguintes.
Com os multi-instrumentistas Don Cherry ("um dos maiores músicos que conheci, um conservatório ambulante") e Collin Walcott, formou um dos grupos pioneiros da "world music", o Codona, que existiu entre 1978 e 1982. Ao lado de Egberto Gismonti, gravou, em Oslo, em 1976, o mítico disco "Dança das Cabeças".
No Japão, para onde tinha ido em turnê com Gismonti, conheceu Pat Metheny, com quem tocou e gravou e que introduziu à MPB de Milton Nascimento e Toninho Horta. Fez três apresentações com Miles Davis, mas não quis participar do trabalho seguinte do trompetista --o disco era "Tutu" (1986). Optou por continuar tocando com Jack DeJohnette --que, diz, justificando a escolha, não é baterista: "É um músico que toca bateria".
Após viver fora do Brasil por quase metade de sua vida --além de cinco anos em Paris, passou 27 nos EUA--, há 13 anos voltou a fixar-se no Recife. Sua produtora e atual mulher, Patrícia, é também sua sobrinha. Com ela, teve sua segunda filha, Luz Morena, 13 --Jasmim Azul, 18, nasceu de outro relacionamento--, que conhece o parentesco entre os pais. Naná não vê nada disso como problema.
"Sou muito aberto", diz, frisando que, por isso, "muita gente" pensa que ele é gay ou bissexual. "Sou casado e nunca dei meu 'alterador de fava', mas não tenho nada contra. Adoro meu lado feminino e gosto muito de mulher."
Em 2007, um susto o fez passar a tocar, a cada show, com mais rigor e intensidade. Rogério Holanda, cirurgião cardiovascular e torácico, estava de plantão no hospital onde Naná deu entrada, com falta de ar. "Identificamos um quadro chamado pneumotórax hipertensivo. Uma bolha de ar preenche o espaço que é do pulmão, causando um mal-estar muito grande e podendo levar à morte em pouco tempo", diz o médico, que o salvou retirando um pedaço do pulmão lesionado.
Sua recuperação foi excelente: dois meses depois estava regendo, como tem feito nos últimos 12 Carnavais, o enorme grupo com mais de 500 batuqueiros oriundos de diferentes nações de maracatu.
Unir as nações, além de um trabalho diplomático, é muito técnico. Cada um desses grupos tem seu "baque" (batida), seu jeito de afinar o tambor e de levar o ritmo. Algumas nações são mais lentas, outras, mais aceleradas e, quando se misturam, e a emoção bate forte, o som, no dizer dos músicos, "asfra", dá errado. Naná sabe disso e dá o ajuste. É algo como reunir as escolas de samba e fazer com que toquem juntas, respeitando suas rixas e rivalidades. Ele assim faz.
A carreira consistente, pontuada por premiações estrangeiras --só Grammy, foram oito--, aplicou ao nome de Naná o epíteto "fenômeno". Ele recusa, dizendo que fama "é besteira". " Ela está só na cabeça, na cabeça de camarão".
A humildade é marca notória do músico; a ela o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), soma outra: "Naná é uma referência não só pelo seu talento mas pela sua generosidade". No último Carnaval, o músico recebeu das mãos de Campos a mais importante comenda estadual, a Medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes, no grau Grã-Cruz. "Ele mudou a vida de muitos jovens pobres da periferia, que viram nele a oportunidade de crescer e desenvolver seus talentos."
Os adjetivos parecem não grudar em Naná. Sua receita de criatividade, diz, é pensar que nada sabe. E explica com o que chama de "as quatro sabedorias africanas".
"A primeira diz que a pessoa sabe, mas não sabe que sabe. Para essa pessoa, damos uma força. A segunda é a da pessoa que não sabe, mas sabe que não sabe. Ela é consciente, então não atrapalha. Essa nós abraçamos. A terceira sabedoria refere-se àquele que não sabe, mas acha e diz que sabe. Esse tipo se evita. A quarta sabedoria é a daquele que sabe, sabe que sabe, e nós o seguimos. Não concordo muito com isso; acho que cada vez mais, a gente sabe menos."
É hora de o Brasil saber de Naná Vasconcelos.
Nota
O jornalista Carlos Bozzo Junior viajou a PE a convite da Prefeitura do Recife.

Lei contra trabalho degradante ganha regra

folha de são paulo

Regulamentação será assinada em SP no dia dos 125 anos da Lei Áurea
Para cassar inscrição estadual de empresa, decreto prevê decisão de mais de um juiz e não só na esfera criminal
CLAUDIA ROLLIDE SÃO PAULOO governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, assina amanhã, dia em que a Lei Áurea (abolição da escravidão no país) completa 125 anos, o decreto que regulamenta a lei que pune empresas paulistas que utilizarem trabalho análogo à escravidão em seu processo produtivo.
A informação é do autor da lei, deputado Carlos Bezerra Jr., líder do PSDB na Assembleia Legislativa de São Paulo e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Sancionada pelo governador no dia 28 de janeiro deste ano, a lei 14.946 prevê a cassação da inscrição estadual no cadastro de contribuintes do ICMS de estabelecimentos envolvidos direta ou indiretamente na exploração de trabalhadores.
Sem a inscrição estadual, a empresa não pode emitir nota fiscal, o que inviabiliza sua operação comercial no Estado. Os autuados também ficarão impedidos por dez anos de exercer o mesmo ramo de atividade econômica ou abrir nova firma no setor.
Apesar de a lei representar um avanço no combate a essa prática no Estado de São Paulo, uma portaria editada em fevereiro pela Secretaria estadual da Fazenda dificultava a punição às empresas.
Ela previa que o processo de cassação só poderia ser iniciado após condenação penal sem possibilidade de recurso (transitada em julgado) de pessoa vinculada à empresa que tenha feito exploração de trabalho escravo.
Segundo especialistas, auditores e procuradores do Trabalho, ainda não há condenação criminal no Brasil pela prática desse crime.
Após três meses de discussão técnica, o governo anuncia amanhã as novas regras.
"O decreto agirá com a mesma lógica da ficha limpa. Para iniciar o processo de cassação da inscrição estadual, é preciso ter uma decisão de um colegiado da Justiça (mais de um juiz), e não somente na esfera criminal, mas pode ser também na trabalhista. Outro ponto é que isso pode ocorrer mesmo que ainda exista a possibilidade de recurso", diz o deputado.
Com a lei aprovada em São Paulo, o que se pretende é atingir economicamente quem usar essa prática. "O objetivo é evitar obter lucro com o uso dessa mão de obra", afirma Bezerra Jr.
Cálculo do Ministério Público do Trabalho mostra que um funcionário contratado em condições análogas à escravidão em uma confecção custa, ao mês, R$ 2.348,17 menos do que outro empregado regularmente registrado.
Desde 1995, já foram resgatados pela fiscalização 44 mil trabalhadores em condições e ambiente de trabalho considerados degradantes em atividades de desmatamento, criação de bovinos, produção de carvão para siderúrgicas, lavoura, construção civil e produção de roupas.

    COMBATE À ESCRAVIDÃO LEI ESTADUAL 14.946
    O que prevê
    -Empresas envolvidas com trabalho análogo à escravidão vão perder a inscrição estadual no cadastro do ICMS
    -Sem ela, as empresas não podem emitir nota fiscal, o que inviabiliza qualquer operação comercial
    -Se cassada a inscrição, elas serão impedidas de atuar no Estado de SP por dez anos
    Como era
    Pela portaria publicada em fevereiro pela Secretaria da Fazenda, o processo de cassação seria iniciado assim que o Fisco paulista recebesse comunicado da condenação penal (sem possibilidade de recurso) de pessoa vinculada à empresa que tenha feito exploração de trabalho escravo
    Como fica agora
    O processo de cassação da inscrição será iniciado após o Fisco receber comunicado de decisão de mais de um juiz da esfera criminal, trabalhista, civil, mesmo que ainda exista a possibilidade de recurso

      Clovis Rossi

      folha de são paulo

      Balão de oxigênio para Maduro
      Governo brasileiro trata de ajudar o contestado presidente a superar os grandes gargalos
      Pouco antes da recente eleição venezuelana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que Nicolás Maduro, então candidato, hoje presidente, "deveria industrializar a Venezuela e torná-la autossuficiente na produção de alimentos", tarefas nas quais o Brasil deveria ajudar.
      Vê-se agora que Lula ou é um profeta ou manda um bocado no governo de Dilma Rousseff: Maduro voltou a Caracas, depois de visitar Brasília na quinta, com promessas de ajuda, tanto na área de energia como de produção de alimentos, que lhe permitiram exagerar e declarar que, com apoio brasileiro, a Venezuela vai-se transformar em "potência exportadora de alimentos".
      Para um país que só exporta petróleo e importa quase todos os alimentos que consome, seria de fato "uma revolução agroalimentar", outra expressão usada por Maduro.
      O apoio brasileiro representa uma tremenda infusão de oxigênio para um presidente e um modelo de governo que passam pelos seus piores momentos desde que o mentor de Maduro, Hugo Chávez, foi brevemente deposto por um golpe de Estado em 2002.
      Ao prometer suporte nas áreas de energia e de alimentos, o governo brasileiro tenta ajudar a enfrentar dois dos três mais graves problemas do cotidiano na Venezuela, o desabastecimento de gêneros e os "apagões" (o terceiro é a criminalidade).
      Basta lembrar que, em abril, o índice de desabastecimento alcançou 21,3%, o mais alto desde que o governo começou a divulgar esse indicador, em 2009.
      Em parte por causa desse fenômeno, a inflação acelerou-se em abril para 4,3%, com o que o índice chega a 29,4% nos 12 meses encerrados em abril.
      É razoável deduzir que esses números influíram decisivamente para que a vitória de Maduro sobre Henrique Capriles na eleição de abril fosse muito magra (menos de dois pontos percentuais), o que deu margem a contestações ainda não resolvidas.
      Pior, para Maduro, é o fato de que pesquisas mais recentes indicam que a maioria dos venezuelanos está, agora, tendendo mais para a oposição do que para o governo. Primeiro, 58% dos consultados pelo respeitado instituto Datanálisis reprovam o fato de o Conselho Nacional Eleitoral ter-se recusado a fazer a checagem dos votos que a urna eletrônica emite em papel, limitando-se a conferir apenas se o resultado eletrônico estava correto.
      Segundo -e mais complicado ainda para Maduro- um outro instituto, o Ivad, informa que mais venezuelanos (44%) respaldam a oposição do que os 40,7% que apoiam o governo. E, se uma nova eleição fosse realizada agora, 45,8% votariam por Capriles, ante 40,8% que ficariam com Maduro.
      Significa que a polarização evidente na eleição se mantém, mas a oposição avançou mais do que o governo desde então.
      O governo brasileiro está, pois, estendendo uma rede de proteção para Maduro, que só pode se consolidar no poder se mostrar resultados na gestão, já que tocar o país com base apenas em retórica revolucionária, sem o carisma de Chávez, parece não ser mais suficiente.