domingo, 6 de janeiro de 2013

Negro - Francisco Carneiro Barbosa


Temas: NEGRO

Consciência negra

Chega de racismo
De história mal contada
Chega de hipocrisia
De mentira esfarrapada
Esse preconceito infeliz
Que por aí diz
Que negro não vale nada.
O negro também precisa
Ser privilegiado
Chega de arrogância
Branco tenha cuidado
Com o preconceito em alta
Pois quem muito se exalta
É sempre humilhado.
Preto, branco e mulato
Vamos nos unir
O preconceito é horrível
E não é para existir
Já que todos somos irmãos
Essa grande nação
Espalhada por aí.

A consciência negra
Quer exatamente
Provar que somos iguais
E não diferentes
São lutas populares
Como as de Zumbi dos Palmares
Que morreu pela sua gente.

É preciso desde já
Com amor todo gentil
Acabar com o preconceito
E ver em nosso Brasil
O negro sorrindo tanto
Como a Daiane dos Santos,
Pelé e Gilberto Gil.


de Francisco Carneiro Barbosa
Trairi - CE - por carta


achei aqui: http://www.pucrs.br/mj/poema-negro-10.php

Totem - André Vallias [Prosa, Poesia e tradução]

FOLHA DE SÃO PAULO

Somos todos eles: o poema onomatotêmico de André Vallias


EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tudo começou quando uma porção de gente de outros lugares do Brasil incluiu "Guarani Kaiowá" em seu identificador pessoal nas redes sociais, afirmando assim sua solidariedade política e espiritual com este povo indígena do Mato Grosso do Sul.
Os Kaiowá são um dos três subgrupos em que se divide a grande nação Guarani, espalhada entre o Paraguai, o Brasil, a Argentina e a Bolívia. A situação dos Kaiowá, que habitam um estado arrasado pela monocultura de exportação, é uma das mais terríveis por que passam as minorias étnicas do planeta, implacavelmente ignoradas, quando não deliberadamente exterminadas, pelos entes soberanos nacionais e pelos interesses econômicos internacionais.
Os Kaiowá ganharam notoriedade com a divulgação de uma carta indignada, dirigida às autoridades pelos membros de um de seus "acampamentos" de beira de estrada ou fundo de pasto (a isto estão reduzidos).
Cansados de serem perseguidos, escorraçados e assassinados por fazendeiros, políticos e outros próceres de nossa brava nação brasileira, pediam que os matassem todos de uma vez antes que aos pouquinhos. Essa carta furou o muro de silêncio hipócrita que costuma impedir que as vozes indígenas sejam ouvidas pelos demais cidadãos do país, e, graças ao circuito informal das redes sociais da internet, acabou tendo que ser divulgada pela mídia convencional.
Quando todos -todos, isto é, todos aqueles que dizemos "todos" como um grito de raiva e de guerra- passaram a se assinar "Fulano Guarani Kaiowá", era como se o Brasil tivesse descoberto outro Brasil. Um Brasil que sempre esteve lá, que estava e que continua lá. Ou melhor, que está aqui, que é daqui. Os Munduruku são daqui. Os Xavantes são nosso parentes. Os Kaiowá somos nós.
Os índios não são "nossos índios". Eles não são "nossos". Eles são nós. Nós somos eles. Todos nós somos todos eles. Somos outros, como todos. Somos deste outro país, esta terra vasta que se vai devastando, onde ainda ecoam centenas, milhares de gentílicos, etnônimos, nomes de povos, palavras estranhas, gramáticas misteriosas, sons inauditos, sílabas pedregosas mas também ditongos doces, palavras que escondem gentes e línguas de que sequer suspeitávamos os nomes.
Nomes que mal sabemos, nomes que nunca ouvimos, mas vamos descobrindo.
Totemismo
O narrador da "História do Cerco de Lisboa", de José Saramago, observava: "Os homens só conseguem dizer o que são se puderem alegar que são outra coisa". Definição perfeita do que a antropologia chamava de "totemismo", forma de organização dos povos ditos primitivos caracterizada pela associação onomástica entre um subgrupo humano e uma espécie natural, frequentemente considerada como o antepassado mítico do grupo.
Os diferentes coletivos de parentesco ou de residência em que se divide a sociedade são assim distinguidos por nomes, emblemas e práticas ligadas a uma ou mais espécies animais ou vegetais, a astros, elementos da paisagem etc. Sem essas "outras coisas", os homens não conseguiriam dizer "o que são", isto é, como são diferentes uns dos outros, e por isso se ligam uns aos outros.
No fim das contas, todo nome é sempre isso, uma alegação que pede uma ligação, o apelo a uma outra coisa (do) que se é. Nomear é repetir o ser com uma diferença. Este é o método do totem. Não saia ao mato sem um.
Os índios do noroeste da América do Norte, artistas refinadíssimos, esculpiam mastros monumentais de madeira nobre, onde dispunham verticalmente as figuras de seus animais e espíritos totêmicos. Na linguagem corrente, costuma-se usar a palavra "totem" para designar estes mastros, que eram verdadeiras listas icônicas dos nomes do grupo.
O poema de Andre Vallias é isso -um totem. Um poema que diz o que somos, quem somos, nosso nomes, os nomes de nossos "antepassados" míticos que nos distinguem no desconcerto das nações. Uma lista sempre inacabada, nomes que surgem e nomes que desaparecem, nomes inventados, nomes sonhados, nomes equivocados, nomes dados por outrem, nomes de um na língua de outro, às vezes meros garranchos nos livros-registros do Estado, ganchos onde os brancos penduram sua ignorância e sua arrogância. Meros nomes.
Entretanto, como dizem os Walbiri da Nova Guiné (apud Roy Wagner): "Um homem é uma coisa de nada. Mas quando se ouve seu nome, ele se torna algo grande".
Nomes dos povos, nomes dos índios, nomes de nosso tios. Somos todos como Antônio de Jesus, aliás Tonho Tigreiro, aliás Macuncôzo, aliás Bacuriquepa, o onceiro de "Meu Tio, o Iauaretê", o conto espantoso de Guimarães Rosa. O mestiço de branco com índia que, depois de passar a vida perseguindo o animal totêmico de seu povo, o Jaguar, volta para os seus, renega o pai branco, desvira branco e vira onça, isto é, revira índio. Assume assim o nome da mãe, o nome do tio materno.
Estamos no matriarcado antropofágico profetizado por Oswald de Andrade; mas aqui sob a forma de tragédia. A lição do conto de Rosa é sombria: mestiço que volta a ser índio, branco mata. E nem lembra o nome.
Todo povo é um nome. Todo nome é um meme. Uma memória sonora que não vai-se embora. Que este totem de Andre Vallias em forma de onomatopoema possa dar um sentido mais puro às palavras da tribo.
*
Nota do editor
Este texto foi escrito como apresentação do poema "Totem", de André Vallias, para a exposição realizada no Espaço Oi Futuro Ipanema, no Rio de Janeiro


IMAGINAÇÃO
Prosa, poesia e tradução
Totem
ANDRÉ VALLIASPOEMAsou guarani kaiowá
munduruku, kadiwéu
arapium, pankará
xokó, tapuio, xeréu
yanomami, asurini
cinta larga, kayapó
waimiri atroari
tariana, pataxó
kalapalo, nambikwara
jenipapo-kanindé
amondawa, potiguara
kalabaça, araweté
migueleno, karajá
tabajara, bakairi
gavião, tupinambá
anacé, kanamari
deni, xavante, zoró
aranã, pankararé
palikur, ingarikó
makurap, apinayé
matsés, uru eu wau wau
pira-tapuya, akuntsu
kisêdjê, kinikinau
ashaninka, matipu
sou wari', nadöb, terena
puyanawa, paumari,
wassu-cocal, warekena
puroborá, krikati
ka'apor, nahukuá
jiahui, baniwa, tembé
kuikuro, kaxinawá
naruvotu, tremembé
kuntanawa, aikanã
juma, torá, kaxixó
siriano, pipipã
rikbaktsá, karapotó
krepumkateyê, aruá
kaxuyana, arikapu
witoto, pankaiuká
tapeba, karuazu
desana, parakanã
jarawara, kaiabi
fulni-ô, apurinã
charrua, issé, nukini
aweti, nawa, korubo
miranha, kantaruré
karitiana, marubo
yawalapiti, zo'é
parintintin, katukina
wayana, xakriabá
yaminawá, umutina
avá-canoeiro, kwazá
sou enawenê-nawê
chiquitano, apiaká
manchineri, kanoê
pirahã, kamaiurá
jamamadi, guajajara
anambé, tingui-botó,
yudjá, kambeba, arara
aparai, jiripancó
krenak, xerente, ticuna
krahô, tukano, trumai
patamona, karipuna
hixkaryana, waiwai
katuenayana, baré
menky manoki, truká
kapinawá, javaé
karapanã, panará
sakurabiat, kaingang
kotiria, makuxi
maxakali, taurepang
aripuaná, paresi
iranxe, kamba, tuxá
tapirapé, wajuru
mehinako, kambiwá
ariken, pankararu
sou guajá, djeoromitxi
koiupanká, tunayana
ikolen, dow, wajãpi
amawáka, barasana
kubeo, kulina, ikpeng
ofaié, hupda, xipaya
suruí paiter, xokleng
tupiniquim, kuruaya
zuruahã, galibi
tsohom-dyapa, waujá
xukuru, kaxarari
tuyuka, tumbalalá
borari, amanayé
hi-merimã, aikewara
kujubim, arikosé
arapaso, turiwara
kalankó, pitaguary
shanenawa, tapayuna
coripaco, kiriri
kaimbé, kokama, makuna
matis, karo, banawá
chamacoco, tenharim
tupari, krenyê, bará
wapixana, oro win
sateré mawé, guató
xetá, bororo, atikum
ye'kuana, tiriyó
canela, mura, borum
SOBRE O TEXTO "Totem" foi concebido pelo poeta André Vallias para ser reproduzido em 13 metros de comprimento, no chão do centro cultural Oi Futuro Ipanema, no Rio de Janeiro (rua Visconde de Pirajá, 54, de sábado, 12, a 31/3, de terça a domingo, das 13h às 21h. Grátis). Vallias criou uma tipologia especial para apresentar o poema na mostra, além de um totem multimídia e uma vitrine com informações sobre as 223 etnias citadas. Leia apresentação do poema pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em folha.com/ilustrissima.

    O último rango - Memórias que viram histórias

    FOLHA DE SÃO PAULO

    ARQUIVO ABERTO
    Memórias que viram histórias
    O último rango
    Brasília, 1982
    HELOISA JAHNNuma noite de 1982, em Brasília, seria a estreia da peça de Pingo, "O Último Rango". Fazia um bom tempo que o amigo ator e criador de dramaturgias estava fora dos palcos e a expectativa era grande.
    Anos antes, Jota Pingo (1946-2012)-nascido Carlos Augusto de Campos Velho, gaúcho, irmão mais moço do ator Paulo César Pereio- atuara no "Hair", uma espécie de clichê que o acompanhava sempre que se queria dar a ficha do grandão de olhos luminosos que em qualquer situação surpreendia.
    Começo de noite. O local era um teatro, uma espécie de barracão na W2, em Brasília. Poucos carros passavam. Uma fila se formou, à espera da abertura da bilheteria. Apareceram os membros da trupe com canequinhas de alumínio, que foram distribuindo pela fila. A canequinha vinha cheia de cachaça.
    Ao entrar, demos com um recinto inesperado: o público se acomodaria em mesas, como numa tasca rústica. Desde a fila, a bebida criara entre os que chegavam um sentimento eufórico de confraternização e curiosidade: de adesão ao que viria, fosse o que fosse. Haveria mesmo uma peça? Ao fundo, num ponto central, numa boca de gás, havia um panelão fechado. À esquerda, no alto, via-se um balcão onde uma banda tocava um rock descabelado em alto volume. Alguém acendeu o fogo sob o panelão.
    Sentados às mesas, caneca na mão, servidos constantemente pelos garçons-atores, nós, o público, conversávamos, ríamos, já esquecidos de que viéramos assistir a um espetáculo: a sucessão tradicional de fatos -comprar ingresso, entrar, instalar-se, silenciar- estava mais que subvertida: deixara de existir.
    Por isso, quando a música parou e os atores começaram a andar por cima das mesas falando textos, assumindo papéis dramáticos, o público já estava longe e sentiu-se atrapalhado em sua própria atuação. Os pés que passavam à nossa frente enquanto conversávamos com o novíssimo amigo do outro lado da mesa pareciam um tanto acintosos: a partir de certo momento fomos convidados a dançar ao som daquele rock doido, numa clareira entre as mesas. Isso sim, queríamos fazer: dançar, erguer os braços, cantar aos berros. O chato era que os atores não nos largavam: no meio da dança, apareciam e nos instruíam a voltar para as mesas para que a encenação prosseguisse. A banda se calava, o público se sentava, os atores subiam nas mesas e diziam seus textos. A panela havia começado a fumegar.
    Os ciclos mesa-atuação-rock-dança foram se sucedendo. Num dos momentos dança, vi uma nuvem branca avançar sobre nós, vinda da esquerda. Encantou-me o fato de que além de todos os elementos literalmente sensacionais da situação, o grupo tivesse produzido uma névoa de gelo seco. Quando a nuvem chegou aonde estávamos, senti dificuldade para respirar e corri para a mesa, com o resto do público. Apareceram bombeiros aos gritos, instruindo todos a abandonar o local. Ainda ouvi uma mulher dizer preocupada ao acompanhante: "Isto aqui vai acabar em suruba".
    Na calçada, parte de nós ficou à espera dos acontecimentos, mas a maioria foi embora. Dali a 15 minutos apareceram de novo os atores, convidando-nos a voltar.
    Tudo estava coberto por uma camada fina de pó branco, resultado, como logo ficamos sabendo, da aspersão do conteúdo de um extintor de incêndio por um dos membros da banda (em tempo: a banda era Aborto Elétrico, e seu líder, Renato Russo). No ar, um ótimo cheiro de sopa. Nós, o público, éramos, agora, umas 20 pessoas. Não havia como retomar a encenação; vi o Pingo numa mesa ao fundo, sem camisa, de cabeça deitada sobre os braços, imagem da derrota.
    A tampa da panela, coberta de pó branco, trepidava com o vapor que saía. Distribuíram pratos de alumínio e colheres; formou-se uma fila quase burocrática e o último rango foi servido com certa solenidade.

      O mapa da cultura - Diário de Moscou

      FOLHA DE SÃO PAULO

      DIÁRIO DE MOSCOU
      O mapa da cultura
      Paquiderme psicodélico
      Os elefantes brancos da sétima arte russa
      MARINA DARMAROSAleksandr Sokurov já não esperava por esta: seu "Fausto" (2011) acaba de receber o "Elefante Branco 2012". Não, ele não herdou um aeroporto abandonado ou um submarino nuclear de segunda mão. O "Elefante Branco" é um dos principais prêmios cinematográficos do país, organizado pela Associação de Especialistas e Críticos de Cinema da Rússia e tem subsídio do Ministério da Cultura.
      E, apesar de o filme de Sokurov ter saído em 2011 -e ter arrebatado o Leão de Ouro no Festival de Veneza daquele ano-, seu lançamento russo, atrasado para o ano passado, permitiu que o diretor vencesse na categoria de melhor filme russo no Elefante de 2012.
      Além disso, Sokurov levou o prêmio de melhor diretor, o dramaturgo Iúri Arabov o de melhor roteirista e Anton Adassínski, que interpreta Mefistófeles no filme, o de melhor papel masculino.
      Com um inusitado jogo de palavras usando o radical "slon" ("elefante", em russo), "prislonitsya" ("apoiar-se") e "slova" ("palavra"), e rememorando a habilidade ímpar dos elefantes para escutar, ver, lembrar e cheirar, a associação explica de maneira psicodélica em seu site a origem do título da premiação.
      COM TINTA VERMELHA
      Na categoria "Acontecimento do Ano", quem levou o Elefante Branco 2012 foi o filme "Za Marksa" (em tradução livre, "Por Marx", trailer disponível em bit.ly/pormarx), da diretora Svetlana Baskova. Tratando do conflito entre os "novos capitalistas" e a classe trabalhadora russa de mentalidade soviética, o roteiro mostra uma crise econômica que leva donos de fábricas a tentarem resolver seus problemas às custas dos trabalhadores.
      A ficção segue-se a outra produção "vermelha" da diretora, o documentário de 2011 "A Solução é a Oposição", em que ela filmou comícios trabalhistas país afora.
      SENTIMENTAIS
      A mentalidade soviética também aflorou na reação à mostra Fim da Diversão, dos irmãos britânicos Jake e Dinos Chapman, inaugurada em 20/10 no Museu Hermitage, em São Petersburgo.
      A obra homônima, uma colagem tridimensional de minipersonagens de plástico colados em vidro -que, olhados por trás, formam uma suástica-, teria "ferido os sentimentos religiosos" dos visitantes, que enviaram mais de uma centena de reclamações à promotoria de São Petersburgo só na primeira quinzena da exibição.
      Para provar o contrário, o diretor do museu, Mikhail Piotróvski, decidiu encomendar uma pesquisa de opinião pública sobre o evento. "Depois da publicação [da polêmica] na imprensa, pessoas de gerações mais velhas começaram a visitar a exposição. Mas muitas, como se viu, vieram para apoiar o Hermitage. São importantes sobretudo as críticas positivas que recebemos das pessoas, de veteranos, que associam a exibição com a Grande Guerra Patriótica [2ª Guerra Mundial]. Gente que nasceu em São Petersburgo e sobreviveu ao cerco entendeu a ideia de brutalidade transposta pelos artistas à atualidade", declarou Piotróvski.
      A organização "Narôdni Sobor" ("Catedral do Povo"), uma espécie de Tradição, Família e Propriedade russa e inimiga número um de Piotróvski, lançou um comunicado em seu site em nome da "Catedral da Intelligentsia Ortodoxa" exigindo "o fechamento imediato da exposição e posterior impedimento de exposições do gênero nos museus da Rússia".
      DEPARDIEU E RASPUTIN
      Não teve boa repercussão a oferta de cidadania russa que o presidente Vladimir Putin fez a Gérard Depardieu, na última quinta-feira (3). O ator francês goza de enorme fama no país -sua cara gorducha pode ser vista todos os dias nas "sessões da tarde" russas.
      Caiu mal a ideia de que Depardieu escolhesse o país para se refugiar dos altos impostos franceses. "É preciso fazê-lo viver aqui na Rússia pelo menos um ano sem sair do país. Acho que depois disso ele vai concordar até com 75% de imposto só para voltar para a pátria", escreveu um comentarista no site Gazeta.Ru.
      O porta-voz de Putin, Dmítri Peskov, explicou à agência de notícias Interfax que a oferta foi feita pela contribuição de Depardieu à cultura e ao cinema russo. "Depardieu atuou em uma série de projetos de cinema muito grandes, entre eles, fazendo o famoso papel de Rasputin", declarou Peskov.
      Enquanto o destino do ator se decide, ele já recebeu um convite para morar na Rússia. O anfitrião é o ditador da Tchetchênia, Ramzan Kadírov, que propôs via Twitter que Depardieu viva na capital tchetchena, Grózni.

        Entrevista Luc Dardenne

        FOLHA DE SÃO PAULO

        Deus após a morte
        Cineasta belga fala de seu livro filosófico
        BRUNO GHETTIRESUMO Consagrado ao lado de seu irmão Jean-Pierre por filmes como "A Rosetta", Luc Dardenne fez uma incursão na filosofia com ensaio sobre afetividade e existência, marcado por noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro. Livro e obra cinematográfica iluminam-se mutuamente.
        Enquanto concebia o roteiro de "O Garoto da Bicicleta" (2011), o diretor belga Luc Dardenne, 58, teve sua mente invadida por pensamentos filosóficos. O filme (codirigido pelo irmão Jean-Pierre, seu parceiro artístico) mostra o encontro entre um menino abandonado pelo pai e uma cabeleireira que, sem razão explícita, resolve cuidar dele, dando-lhe amor e proteção.
        Intrigado pela natureza dessa relação desinteressada entre uma pessoa e o "outro", por aquilo que faz alguém amá-lo e olhar por ele, Dardenne lançou-se a uma série de questionamentos sobre as relações humanas. Depois de traduzir suas conclusões em imagens (no longa), decidiu ir além: desenvolveu-as em "Sur l'Affaire Humaine" [Seuil, 190 págs., R$ 48], lançado no ano passado na França.
        A partir da noção nietzschiana da "morte de Deus", Dardenne discorre sobre o medo humano de morrer, a necessidade da substituição de Deus e a importância das relações entre as pessoas. A obra apresenta conceitos filosóficos nem sempre claros para um não iniciado, mas a prosa é surpreendentemente fluida e clara.
        O livro é fortemente influenciado pela ética da alteridade proposta pelo franco-lituano Emmanuel Levinas (1906-95), de quem Dardenne foi aluno na faculdade de filosofia em Louvain, em 1980. Para o belga, passado o luto pela "morte de Deus", o ser humano precisa desenvolver uma moral humana, não mais divina.
        A relação com o outro se torna elemento central dessa moral, inspirada no pensamento levinasiano sobre um "eu" ético que aparece sob a injunção de um outro que clama por ser socorrido -uma demanda de não ser deixado abandonado. Como se, na falta de um Deus todo-poderoso, o "eu" (ou o "outro", dependendo do caso) assumisse atribuições "divinas".
        Noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro são examinadas no livro, um excelente complemento aos filmes da dupla -ele esclarece e aprofunda questões só sugeridas nos extraordinários "A Promessa" (1996) e "O Filho" (2002) e nos vencedores da Palma de Ouro "Rosetta" (1999) e "A Criança" (2005).
        Os irmãos Dardenne figuram hoje entre os cineastas mais influentes das últimas duas décadas: seu estilo seco, com sequências longas e a câmera colada no protagonista tem sido imitado ad infinitum (raramente com bons resultados, diga-se). Seus personagens são incansáveis guerreiros que lutam pela sobrevivência em um mundo pouco solidário. Mas, de repente, uma prova de humanidade, um toque de Graça, surge de onde menos se espera, e o ser humano já não se sente tão entregue à própria sorte.
        Sobre o livro e seus pontos de contato com seus filmes, Luc Dardenne falou, por email, à Folha.
        Folha - A ideia de "Sur l'Affaire Humaine" surgiu durante a criação do roteiro de "O Garoto da Bicicleta". Como aquela história o levou a um livro tão sério e filosófico?
        Luc Dardenne - Nos dois anos de desenvolvimento do roteiro, quando estava obcecado por aquele garoto solitário, abandonado e violento, procurava palavras, olhares e gestos para ele projetando-me nele e conversando com frequência com meu irmão. Toda essa atividade me fechou em pensamentos que se ligavam a questões filosóficas que me interessam há muito tempo, como a solidão, a simpatia, a responsabilidade pelo outro, o assassinato -questões suscitadas por minhas leituras da obra de Levinas. Uma das questões que me perseguia era saber: por que o amor da personagem Samantha, uma mulher desconhecida, que surgiu por acaso, seria capaz de abrandar o sofrimento do garoto da bicicleta?
        Logo no início, é evocado o célebre "Deus está morto", de Nietzsche. Mas 130 anos após o filósofo tê-lo "enterrado", Deus segue como uma espécie de obsessão entre os humanos - filósofos, inclusive. A declaração da morte teria tornado Deus ainda mais vivo?
        Meu pequeno livro não é de forma alguma uma discussão sobre a morte ou sobrevivência de Deus. De certo modo, falo somente de mim, para quem Deus está morto; apenas faço ruminações, pensamentos obsessivos sobre a necessidade de consolação que tenho em mim, em minhas inervações, assim como o garoto da bicicleta, meu "alter ego". O que eu posso esperar é que esses pensamentos que me deixam obcecados sejam o sintoma de alguma coisa que ultrapassa a minha pessoa e movimente o pensamento dos outros.
        Você sugere que Deus não está tão morto assim -há uma entidade próxima, mas terrena e humana: uma figura materna. Quem seria?
        Nosso nascimento é indissociável de um pânico do que está de fora [do útero], um medo de morrer. Esse medo é abrandado quando entramos em contato com o amor infinito de um outro -uma mãe, um pai, biológico ou não- capaz de nos fazer sair de uma bolha imaginária e passar a amar o que está de fora. Necessitamos da existência de um "Deus" que nos dê um amor mais forte que a morte, uma segurança absoluta.
        Tento pensar em como podemos conviver com essa necessidade, mas sem Deus -vivendo só com nosso elo com o outro humano que nos ama infinitamente e nos fez amar a vida. Mas, é claro, uma vida que não tem mais nenhuma garantia de eternidade, uma vida de mortal entre mortais.
        Superado Deus, é preciso passar a uma próxima etapa: desenvolver uma moral antes humana que divina. A humanidade está ainda muito longe de chegar lá?
        Questão para um adivinho, o que eu não sou. Podemos, ainda assim, dizer que o crescimento dos particularismos e das identidades religiosas hoje em dia pode nos fazer temer pelo pior. Cabe a nós resistir. O cinema pôde ser no passado uma terrível ferramenta de propaganda, de disseminação de preconceitos assassinos.
        Mas ele pode também mostrar seres humanos complexos, singulares e, ao mesmo tempo, universais, que escapam a todos os preconceitos e que são capazes de sofrer pelas pessoas que também sofrem, que são capazes de ser felizes por pessoas que manifestam sua alegria de viver. O cinema se interessa pelo ser humano, qualquer que ele seja, essa é a humanidade de seu olhar.

          CLÁUDIA LAITANO - O seu futuro eu

          Zero Hora: 05/01/2013

          O cientista político americano Francis Fukuyama ficou famoso no final dos anos 80 desenvolvendo a tese de que o liberalismo havia triunfado. Fukuyama não foi o primeiro nem o mais notável defensor do liberalismo, mas talvez tenha sido o mais engenhoso na hora de bolar um chamariz de leitura altamente manchetável. Boa parte da repercussão que suas ideias alcançaram nos anos seguintes pode ter sido impulsionada pelo título provocativo do artigo que publicou em 1988: “Fim da História?”.

          Dá para entender por que tanta gente ficou incomodada. Imagine que seu time está perdendo por 3 a 0 aos 30 minutos do primeiro tempo, e um gaiato do time adversário decide levantar a placa “Fim do Jogo” (ou mesmo “Fim do Jogo?”). Decretar o final da partida no primeiro tempo não é apenas precipitado, mas soa arrogante e pouco inteligente. Como prever, em 1988, o 11 de Setembro, o Facebook, a Primavera Árabe, o iogurte grego? Olhando para trás, fica óbvio que o mundo deu cambalhotas nos últimos 25 anos.

          E mesmo que o tal “fim da história” fosse apenas uma provocação circunscrita ao campo das grandes ideologias, parece contraintuitivo (até mesmo para os mais ardorosos defensores do liberalismo) imaginar que chegamos a qualquer tipo de desfecho, quando a sensação em relação às mudanças da nossa época talvez seja exatamente a oposta.

          Um curioso estudo publicado há pouco na revista Science, coordenado pelo psicólogo Daniel Gilbert, sugere que todo mundo é um pouco “Fukuyama” em relação ao próprio futuro. Ou seja: tende a acreditar que chegou, se não ao fim, pelo menos ao ápice da própria história.

          O eu do passado pode ter sido inconstante, volúvel e ter o péssimo hábito de chorar ouvindo Abba, mas o eu do presente sabe exatamente quem é e o que quer da vida – já o eu do futuro seria apenas uma versão mais barriguda do eu do presente. É o que os autores do estudo apelidaram de “ilusão do fim da história”.

          Entrevistando voluntários entre 18 e 68 anos, a equipe de Gilbert chegou à conclusão de que as pessoas percebem com muita facilidade que mudaram nos 10 anos anteriores (mesmo os mais velhos), mas não imaginam que vão continuar mudando. Da escolha da carreira à do parceiro amoroso, do planejamento familiar ao financiamento da casa própria, muitas decisões de longo prazo partem da ilusão de que sabemos exatamente quem seremos no futuro. Esperamos que os outros mudem, que o mundo mude, mas temos certa dificuldade para aceitar que nossos valores, preferências e mesmo traços de personalidade também podem se alterar.

          Se todo mundo levasse em conta as possíveis mudanças de opinião do futuro, tatuagens nunca teriam virado moda e casamentos provavelmente seriam mais a exceção do que a regra. Talvez seja preciso depositar alguma esperança no fato improvável de que o futuro não vai nos surpreender tanto assim para não sermos completamente paralisados pela angústia de fazer escolhas erradas.

          Ninguém pode prever o futuro, é verdade, mas todo mundo pode olhar para os lados de vez em quando. “A melhor maneira de fazer previsões sobre o que você vai querer no futuro não é imaginar-se daqui a alguns anos, mas observar os mais velhos”, sugere Daniel Gilbert. “São os outros que vão lhe dar as melhores informações sobre o que você pode esperar do futuro”.

          A grande aventura fotojornalística

          FOLHA DE SÃO PAULO

          A grande aventura fotojornalística
          FLÁVIO DAMMRESUMO A "Ilustríssima" apresenta em primeira mão trecho de depoimento de um pioneiro do fotojornalismo brasileiro sobre sua experiência na revista "O Cruzeiro", que circulou de 1928 a 1975 e é tema de exposição no Instituto Moreira Salles em São Paulo (rua Piauí, 844), até 31/3, e de livro que o IMS lança neste mês.

          No final dos anos 1920, com as limitações da indústria gráfica, os jornais raramente traziam aos leitores notícias ilustradas. A fotografia era praticada sob limitações, como o formato das câmeras, as chapas de vidro e o uso necessário de tripés. Os lentos processos de revelação e copiagem eram seguidos pela transposição da imagem para o clichê e pela impressão nos jornais.
          O fotógrafo, que operava sob condições precárias -chapas de baixa sensibilidade, iluminação gerada pelo pó de magnésio e, frequentemente, com a câmera apoiada-, raramente obtinha um flagrante. As fotos eram posadas, tirando-lhes o encanto do momento, da espontaneidade.
          Na virada da década, o Brasil experimentava um quadro político de transição, às vésperas da Revolução de 1930. A criação de uma publicação com características modernas para a época foi uma sugestão de Getúlio Vargas, ainda presidente do Estado do RS, a José Bertaso. Nascia, assim, em Porto Alegre, em 1929, a "Revista do Globo".
          Alguns anos antes, Getúlio, então ministro da Fazenda, em troca de apoio político, havia financiado a iniciativa de Assis Chateaubriand de criar a revista "O Cruzeiro". A imprensa brasileira ganhava uma nova linguagem gráfica, complementando as reportagens, até então, pobremente ilustradas. Nascia, ao mesmo tempo, o fotojornalismo, ferramenta que daria dinâmica ímpar à informação. O fotojornalismo chegou ao Brasil à sombra de uma aventura política que mudou o país. E a ela permaneceria próxima, tão parte do nosso dia a dia.
          A grande mostra dessa proximidade estava nas imagens -hoje de grande valor histórico- de um grupo de gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco existente na avenida Rio Branco, no Rio. Imagem dinâmica que se seguiu à emblemática fotografia do carro oficial que transportava em seu interior o já ex-presidente Washington Luís para fora do Palácio do Catete, a caminho do exílio.
          Em um dos seus primeiros números, na edição de 10 de novembro de 1928, "O Cruzeiro" publicara um anúncio que instituía um prêmio de 500 mil-réis destinado ao fotógrafo, profissional ou amador, que apresentasse o instantâneo inédito de um acontecimento que pudesse ser considerado sensacional pelo assunto e pela técnica de execução.
          AVENTURA A partir desse espírito, pela objetiva de fotojornalistas da equipe de "O Cruzeiro", começou a ser ilustrada a história dessa grande aventura brasileira. Pautado pelo chefe de reportagem, lá vai ele, mundo afora, o andarilho dotado de coragem e criatividade: não sabe o que lhe aguarda, prefere mesmo não saber.
          Hoje numa cidade moderna, ontem no sertão, antes numa tribo de índios, com os xavantes, por exemplo, fotografados pela primeira vez, frente a frente, por José Medeiros. Ou com os ianomâmis, que hospedaram o fotógrafo por 40 dias, numa aldeia de onde ficou impossível sair pela força das águas numa cheia de um rio.
          Um dia, sem comida, entrou em confronto com o colega Arlindo Silva, velhos amigos, os dois armados, pela disputa de uma coxa de macaco. Fome faz dessas. Depois, riram muito e dividiram a pouca carne. Ou fechado numa camarinha, como nos 15 dias em que Medeiros acompanhou a iniciação de iaôs, as filhas de santo, na Bahia. Ou fotografando estoicamente o colega José Leal ser surrado pela polícia, em Pernambuco, a mando de um chefe de polícia cuja mulher foi delatada pelo jornalista, nas páginas de "O Cruzeiro", por ostentar joias roubadas.
          Na Assembleia Legislativa de Alagoas, José Medeiros estranhou que, numa tarde de sol e imenso calor, vários deputados entrassem na casa com pesadas capas de chuva: as metralhadoras só foram reveladas quando o tiroteio começou. Orlando Villas-Bôas estranhou um grupo de índios xavantes cantando de forma diferente do habitual. Foi na direção da cantoria e se deparou com José Medeiros deitado numa rede, cercado de uns dez índios, a quem ensinava a letra de "Nature Boy".
          Por aí afora, as aventuras de uns e outros foram se sucedendo. Contar todas é impossível. Eugênio Silva, do bureau de MG, exercia suas folgas pescando no rio das Velhas e devolvendo às águas os peixes que fisgava. Acompanhou Guimarães Rosa, a cavalo, para documentar as andanças do escritor pelos "grandes sertões veredas". Ficaram grandes amigos, e Eugênio chorou a morte do acadêmico, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
          Indalécio Wanderley, especialista em concursos de misses, propôs casamento a uma candidata desde que ela abandonasse a disputa. Casaram-se e tiveram filhos.
          Luciano Carneiro veio para o Rio pilotando um teco-teco, tirou brevê de paraquedista com Charles Astor e partiu para o aventureirismo que a fotografia brasileira esperava. Foi procurar, África adentro, o dr. Schweitzer, médico que mantinha uma colônia de leprosos em Lambarene. De lá, trouxe magistral documentário, operado com câmera Leica, em preto e branco, fotos feitas com a luz ambiente.
          Viajou para a Coreia para cobrir a guerra. Para convencer um coronel que poderia saltar com as tropas americanas -por sugestão do militar-, Luciano subiu numa mesa e mostrou como se jogar no espaço. Foi aprovado, saltou, fotografou durante o tempo em que esteve solto no espaço. Foi à frente de batalha e voltou para o Rio, são e salvo. Morreu num acidente como passageiro de voo comercial, voltando de Brasília, onde fora fotografar um desfile de debutantes.
          Henri Ballot, que trabalhava no escritório da revista em São Paulo, fazendo dupla com Jorge Ferreira, era dotado de grande coragem. Acompanhando Orlando Villas-Bôas, legou ao arquivo da revista os melhores momentos de um Brasil central sendo descoberto. Na juventude, foi membro da Força Aérea da França Livre, braço de pilotos franceses da RAF, a Força Aérea Real, da Inglaterra.
          Ballot voava num Spitfire quando foi abatido sobre a Alemanha. Levado para um hospital americano, foi pela mão de uma enfermeira que tomou contato com a sua primeira câmera fotográfica. Saiu da convalescença, meses depois, já fotógrafo. Depois, trouxe para a aventura fotojornalística a mesma coragem de piloto de guerra. [...]
          MEIAS VERDADES A revista trazia em seu trajeto uma série de assuntos nunca bem explicados -Jean Manzon, autor de fotos posadas; verdades somadas a meias verdades, estas assinadas por David Nasser- e que comprometiam o que era esperado de uma publicação que havia conquistado alto grau de credibilidade junto ao público de todo o país.
          Luiz Carlos Barreto, junto com Indalécio Wanderley, jovens cearenses, começaram na redação da revista "A Cigarra", editada pela Empresa Gráfica O Cruzeiro. Tinham a ideia de formar uma dupla, Indalécio, fotógrafo amador, e Barreto, recém-saído das fileiras da Polícia do Exército.
          A convivência nos corredores da redação os levou para as páginas da grande revista. Finalmente integrados na equipe de "O Cruzeiro", cada um foi para o seu lado, amadurecidos para o dia a dia que a pauta da redação determinava.
          Numa viagem à França, Barreto acompanhou Chateaubriand a Cannes para um almoço oferecido a grandes nomes da imprensa internacional pela proprietária do Grupo Life-Time, Clare Boothe Luce. Como Chatô dormia a qualquer momento, em qualquer lugar e a qualquer hora, pediu que o fotógrafo, dispensado de fotografar, sentasse à mesa, à sua frente, para acordá-lo caso fosse tomado pelo infalível sono.
          "Seu Barreto", Chatô nos tratava a todos desta forma cordial, "essa americana é uma chata, fala demais, vou ter que sentar ao lado dela. Se eu dormir, cutuque a minha canela para me acordar." Dito e feito, no decorrer do almoço, Chatô dormiu e acordou várias vezes, resultado da prosaica ação praticada por Barreto.
          No Rio, ao voltar, Leão Gondim ouviu do grande chefe a reclamação de que Barreto poderia ter sido "mais delicado", mostrando a canela marcada pelas cicatrizes deixadas pela boa ação praticada pelo jovem repórter.
          Indalécio ocupou-se em fotografar para capas de "O Cruzeiro", em especial a cantora Dóris Monteiro, à época mais um caso amoroso de Assis Chateaubriand.
          TROTSKY Mário de Moraes teve sua aventura internacional no México, em 1956, ao tentar entrevistar o assassino do ex-comissário soviético Leon Trotsky, o "profeta armado da Revolução Russa de 1917", tarefa até então tida como impossível, já que ele, conhecido como Jacques Monard, nunca havia dado entrevista. Quando um repórter insistia, ele ficava furioso, tendo até agredido alguns jornalistas. Na penitenciária mexicana onde Monard se encontrava, Mário de Moraes conseguiu uma entrevista com o diretor-geral. Disse que estava fazendo uma reportagem para "O Cruzeiro" sobre o sistema penitenciário mexicano, tido como um exemplo mundial em organização:
          "Levou-me a conhecer o estabelecimento, e, na visita, acabamos nas oficinas, onde Monard trabalhava, e fomos apresentados. Não lhe dei a menor importância, já que isso fazia parte do meu plano. Conversamos um pouco, até que, levado por uma vaidade mórbida, o assassino de Trotsky me indagou se eu sabia quem era ele, disse que não, e ele foi contundente:
          "- Sou Jacques Monard, o assassino de Leon Trotsky.
          "Eu chegara aonde queria, fui arrancando-lhe informações, e Monard foi claro, matara Trotsky porque ficara desiludido com ele. A história provou que isso era falso: Monard conseguira aproximar-se de Trotsky por meio de uma secretária do ex-comissário soviético, e, cumprindo ordens (possivelmente de Stálin), matou-o com uma picareta de alpinista, que levara escondida debaixo de seu sobretudo. Quando percebi que já tinha o suficiente para dar um "furo" internacional, contei a Monard que era jornalista. Ele ficou a ponto de me atacar, mas terminou aceitando o fato, afinal reconheceu que revelara para mim o que não havia dito e nenhum outro jornalista. Poucas fotos foram discretamente feitas, a meu pedido, com a minha Leica, por um funcionário da penitenciária."
          Jacques Monard chamava-se realmente Ramón Mercader e era agente da polícia secreta de Stálin. Ele fora condenado a 20 anos de prisão no México. Quando saiu da cadeia, foi para a União Soviética, mas faleceu em Cuba.
          Ubiratan de Lemos era um repórter investigativo e foi dos poucos que nunca se arvorou a fotografar. Mário de Moraes, também redator, fotografava. Numa época em que o bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, era o reduto/destino de retirantes vindos do Nordeste, viajando, penosamente, em caminhões apelidados de pau de arara, os dois voaram para Fortaleza e, de lá, acompanharam uma leva de gente que vinha buscar uma nova oportunidade de vida no sul. A matéria - com fotos de forte dramaticidade - foi publicada com grande destaque em seis páginas. Deu à dupla de repórteres o primeiro Prêmio Esso de Reportagem, instituído naquele ano.

            Minha Turma - MARTHA MEDEIROS

            ZERO HORA  - 06/01/2013



            Ela é uma amiga recente. Tem três filhos, sendo que um deles possui uma síndrome rara. É uma criança especial, como se diz. Acabei de ouvi-la palestrar a respeito de como é o envolvimento de uma mãe com um ser que necessita de tanta atenção. Eu estava preparada para ouvir um chororô, e não a acusaria, ela teria todo o direito se. Mas o “se” não veio.

            O que vi foi uma mulher comovente e leve ao mesmo tempo, recorrendo ao humor para segurar a onda e para não se desconectar de si mesma. Ela deu uma choradinha, sim, mas de pura emoção e gratidão por passar por essa experiência que dá a ela e a esse filho uma cumplicidade também fora do comum. Quando ela terminou de falar, pensei: “Essa é da minha turma”.

            E silenciosamente a inseri no rol dos meus afetos verdadeiros. Estranhei ter sido essa a expressão que me ocorreu, “minha turma”, e só então percebi que, durante a vida, a gente conhece um mundaréu de pessoas, estabelece variadas trocas de impressões, passeia por outras tribos e tal.

            São homens e mulheres que chegam bem perto do nosso epicentro, nem sempre por escolha, mas porque são parentes de alguém, conhecidos de não sei quem, e que acabam sendo agregados à nossa agenda do celular. Até que o tempo vai mostrando uma dissimulação aqui, uma maldade ali, uma energia pesada, e você se dá conta de que alguns não são da sua turma.

            Da série “Coisas que a gente aprende com o passar dos anos”: abra-se para o novo, mas na hora da intimidade, do papo reto, da confiança, procure sua turma. É fácil reconhecer os integrantes dessa comunidade: são aqueles que falam a sua língua, enxergam o que você vê, entendem o que você nem verbalizou.

            São aqueles que acham graça das mesmas coisas, que saltam juntos para a transcendência, que possuem o mesmo repertório. São aqueles que não necessitam de legendas, que estão na mesma sintonia, e cujo histórico bate com o seu. Sua turma é sua ressonância, sua clonagem, é você acrescida e valorizada. Sua turma não exige nota de rodapé nem resposta na última página. Sua turma equaliza, não é fator de desgaste. Com ela você dança no mesmo compasso, desliza, cresce, se expande. Sua turma é sua outra família, aquela, escolhida.

            Não tenho mais paciência com o que me exige atuação, com quem me obriga a usar palavras em excesso para ser compreendida. Não tenho mais energia para o rapapé, para o rococó, para o servilismo cortês, para o mise-en-scène social. Não tenho motivo para ser quem não sou, para adaptações de última hora, para adequações tiradas da manga. Não quero mais frequentar estranhos, em cujas piadas não vejo a mínima graça.

            Não quero mais ser apresentada, muito prazer, e daí por diante ter que dissecar minha árvore genealógica, me explicar em nome dos meus tataravôs, defender posições que me farão passar por boa moça. Não quero mais ser uma convidada surpresa. Se você mandar eu procurar minha turma, acredite, tomarei como carinho. 

            Uma questão moral - Cristovão Tezza

            FOLHA DE SÃO PAULO

            Um conto de futebol
            CRISTOVÃO TEZZATentou ajeitar o relógio no pulso - ou o cronógrafo, como ele gostava de frisar aos ignorantes -, com uma ansiedade que logo se transformou em tensão muscular, subindo pelo braço até se alojar discreta no lado esquerdo de suas costas, ele até poderia apontar com o dedo se a mão chegasse àquele ponto cego de si mesmo: é aqui, doutor, se eu mexo assim, o corpo torcido no esforço, a pontada exata na alma do nervo.
            Apenas um rosto, praticamente um vulto que ele viu de passagem ao descer ao vestiário para se trocar, depois de cumprimentar os conhecidos com a gentileza contida que seu trabalho exigia, teve esse poder elétrico de acordá-lo no mau sentido: sim, era o Robertson, ou o Bets, apelido de infância, ele conheceu todas as versões do mesmo ser, acompanhou cada passo inicial de sua carreira quase fulgurante, que se estagnou como reserva do Corinthians, para daí cair e desaparecer com a mesma facilidade, o driblador, o pipoqueiro, o malandro, o goleador de lua, o criador de caso.
            Nunca mais ouviu falar. Assim como nunca mais ouviu falar da Maria, que se evaporou mais fulgurante ainda. E agora (estaria com 38 anos, como ele?) reaparece neste fim de mundo e neste campo esburacado, exatamente com o mesmo sorriso, para tentar levar aquele timeco à série B, no penúltimo jogo da rodada, talvez o último da vida dele. Então é aqui que ele veio parar? Enfim conseguiu fechar a pulseira do cronógrafo, brilhante no seu braço, e sorriu cordial para os dois bandeiras, que, disciplinados no banco diante dele, aguardavam o momento de subir, orgulhosos no uniforme preto.
            Um deles era conhecido, o Mauro, bom menino, frequentava a igreja, tinha futuro; o outro nunca tinha visto mais gordo, indicação sabe-se lá de quem, prazer, Edislon, disse o garoto, prazer, João Batista, disse ele, e trocaram algumas palavras, mas ele estava tenso e irritou-se mais por imaginar que talvez pensassem que a tensão viesse do medo do jogo e da torcida, esmagada como um bicho atrás da tela de arame a poucos metros do campo, eu já passei por isso milhares de vezes, teve vontade de dizer, eu seguro esse povo no grito e no apito, comigo não tem conversa: uma vez esmurrou um presidente de clube que chegou a ele num vestiário como esse com um envelope cheio e um sorrisinho sacana, o que lhe valeu uma suspensão interminável, que se fodam, eu não preciso dessa merda, eles é que precisam de mim, como agora, me desenterrando do limbo para esse jogo de vida e morte, isso aqui é o inferno, por isso que me chamaram.
            E quem eu encontro no campo, ele se imaginou justificando-se ao Tribunal Desportivo, para onde com certeza será chamado, quem sabe à própria mulher e aos seus três filhos, não, isso não, que não merecem a culpa. Mas alguém teria de saber realmente o que houve, e ele conferiu a amarração do apito no seu pulso direito para não perdê-lo, a sua arma, é minha arma branca, um dia disse a um amigo com um raro sorriso, ele jamais fazia piada de seu trabalho, uma arma branca no bom sentido, corrigiu, que não pensassem que.
            E lembra do velho amigo com quem rompeu só porque, chegando à sua casa nova no bairro Madalena, erguida com o suor do seu rosto desde o terreno em 60 prestações, e depois tábua a tábua, pintadas por ele mesmo em cada friso, para quem trabalha de segurança a vida é dura, e o cara dá aquele tapinha nas costas diante de sua obra e diz, vejam se isso é coisa que se deve ouvir, e diz, o sujeitinho, "Caramba, quantos pênaltis você teve de apitar pra construir essa casa? Só naquela varanda tem uns cinco impedimentos, ahah!", e o churrasco entre amigos azedou, como se ele de fato tivesse pênaltis nas costas, nenhum, seu vagabundo, nenhum! Calma, João Batista, foi brincadeira, pô, a gente se conhece há quantos anos?!
            Ele olhou o cronógrafo (custou caro esse relógio, esse sim, veio com o travo do supérfluo, uma expressão que ele guardou de um sermão e agora repetia ao delegado, enfim era o orgulho aceitável da profissão bem exercida, mas a casa é sempre trabalho sagrado, ele que fizesse brincadeira com a mãe dele) e sugeriu aos dois novatos uma breve oração antes do jogo, e os três fecharam os olhos (ele não ouviu a voz do Edislon, que talvez nem tivesse mantido os olhos fechados em respeito, quem sabe não fosse católico), Pai Nosso que estais no Céu, e de novo se cumprimentaram, um pouco mais relaxados agora, e o rugido que chegava pelo pequeno túnel deste estádio metido a besta, ele pensou, parece que mais os estimulava que amedrontava, mas ele pressentia o temor dos dois jovens colegas, subir ao campo era descer ao inferno, o grande teste da nossa profissão, pensou em dizer, como o veterano que orienta, já quase esquecido do Bets, mas era o próprio mesmo, nenhuma dúvida, ele ainda tentava se persuadir do contrário para se livrar do que deveria enfrentar.
            Era ele sim, o Bets, bem acabado para a idade, e conferiu ainda a moeda para o sorteio e os cartões no bolso da camisa, o amarelo na frente (uma vez trocou os cartões e não destrocou para não perder autoridade, uma falta ridícula punida com cartão vermelho, o pior erro de sua carreira), e ali estavam quatro policiais militares à espera para que a trinca de árbitros chegasse ao campo em segurança, uns poucos passos sob a torcida ululante, ele nem ouvia mais, conferindo num lado, depois no outro, a perfeita fixação das redes sob o gol (outra vez quase apitou um gol-fantasma, a bola entrando por fora e se aninhando vagabunda no fundo, não fosse o auxiliar erguer a bandeira, ele -).
            Sim, o Robertson, perdeu tudo mas não perdeu a pose, faixa de capitão, mãos na cintura e o sorriso perpetuamente cínico, ele sabe o mal que ele faz, à espera do início no círculo central, desde já conferindo o lado em que o sol se punha para azar do goleiro, deu coroa, ele sempre teve sorte mas nunca soube o que fazer com ela, escolheu o lado e distribuíram-se os times, os cumprimentos de praxe (ele de fato não me reconheceu), e antes de esticar o braço e dar partida, o número 7 deles aguardava o início ostensivamente no campo do adversário; ao ser advertido, agachou-se para amarrar o cordão da chuteira, e ele não teve dúvidas, avançou com o amarelo, o primeiro do jogo, antes mesmo de o jogo começar, vá fazer gracinha na casa da sua mãe, quase disse, mas o tumulto foi breve, alguém empurrou o idiota reclamão de volta ao seu campo e o primeiro apito se perdeu sob a vaia ensurdecedora, e só então ele fez o sinal da cruz, já correndo de olho na bola: hoje ele paga.
            O jogo estava lento mais de nervoso do que de estudo, o que lhe dava tempo para pensar, vendo as coisas de longe, mas que não se enganasse: uma panela de pressão chiando baixo naqueles primeiros dez minutos, e com o rabo do olho percebeu que Robertson só ficava no bem-bom, lá na frente, deitado na banheira, economizando gás, à espera de uma bola solta e perdida que faria sua glória diante do goleiro em pânico, mas o jogo não saía do meio, passes curtos e errados dos dois times, na dúvida o chutão para a frente e para os lados.
            Talvez expulsá-lo logo, mas isso seria pouco para fazer justiça. Percebeu o lateral para o time deles, a bola raspou na canela da defesa antes de sair, mas Edislon, de boa-fé, sem ângulo para ver, deu o contrário, o que ele aceitou, e foi o bandeira que levou a vaia. A paixão que sentia por ela, nos 18 anos, em janeiro de 1992, mas ele não podia dizer agora, porque casou com outra. Não foi covardia. Que homem casaria com ela naquela situação? Eles não eram nem noivos, apenas apaixonados de mãos dadas, o que era melhor ainda, ele sonhou. Um ato de justiça a se fazer, não por dinheiro, que não sou disso, mas por justiça, ele teria de dizer em alto e bom som (na verdade, já livre, cochichou ao padre Zélio quinze dias depois, e ouviu na penumbra do confessionário um longo silêncio que ele imaginou compreensivo), e apitou com prazer o impedimento escancarado de Robertson, voltando dos cinco metros de banheira fazendo o "não" cínico e sorridente com a cabeça, ele é engraçadinho.
            E não está mesmo me reconhecendo, o que facilita as coisas. Inverteu uma falta clara que o idiota do camisa 7 levou, mandou-o levantar-se logo, daqui a pouco ele leva o segundo amarelo, fez a marca no gramado e correu para a área inimiga, contando em passos generosos a distância da barreira, eles que levassem logo um gol nos cornos, mas a bola foi parar no último anel da arquibancada. O goleiro fez cera para cobrar o tiro de meta (o empate classificava o time deles), e ele fez vista grossa, ainda pensando numa estratégia. Talvez devesse odiar Maria, não Robertson, mas não conseguia. Ainda foi perguntar, dois dias depois da tragédia, se ela precisava de alguma coisa, humilde como um tatu, e ela abraçou-o tão carinhosamente, chorando feito criança, se ele tivesse forças para enfrentar a vergonha, mas não teve; ela ainda disse, fique comigo, por favor.
            Humilde até certo ponto, certo? Tem um limite que. O senhor compreende, padre Zélio? Nenhuma resposta -algumas coisas são tão nossas que Deus não se mete. O problema era só meu, como agora: Robertson levou uma sarrafada na meia-lua, a primeira bola que chegou ali, e ele quase manda seguir o jogo, mas o urro da plateia como que apitou por ele. Faça a coisa bem feita, ele se disse, você tem um nome. Não deixe rastro. Ainda mancando, Robertson ajeitou demoradamente a bola no tufo de grama, um trabalho de relojoeiro, e olhou para a frente. Dez minutos de jogo e esse canalha vai fazer um gol, e ele procurou por alguém impedido para apitar já no chute e parar o lance, mas não havia nem com a dádiva da dúvida: um burro deles amarrado no segundo pau, ao lado do goleiro, dava condição escancarada, eles estão brincando, mas o chute bateu na barreira e voltou para ninguém.
            Não se lembra bem do que houve, ele disse ao prestar depoimento, e foi sincero. Deu aquele branco. Mas se lembra de cada segundo da Maria, vinte anos antes, o vazio da revelação, e ele em seguida, meio cego, casou com outra, com quem vive até hoje e de quem tem três filhos, e quer saber de uma coisa? Jamais gostei da minha mulher e nem meus filhos me apaixonaram, um depois do outro, mas a gente vai levando o que é da natureza, pelo amor de Deus, eu nunca disse isso a ninguém, mas é o que eu sinto aqui no peito. E se fosse outra mulher e outros filhos seria tudo a mesma coisa. Só a Maria.
            No intervalo, sob a tensão do zero a zero, voltando ao vestiário, pressentiu que também para ele aquele era um último jogo. Os bandeiras talvez estranhassem a concentração soturna do árbitro, ele não queria falar. Tentou lembrar as quatro situações marcantes do primeiro tempo em que ele poderia ter apitado errado, com fúria e determinação, provocando a reclamação também furiosa que o levaria no ato a puxar o cartão vermelho vingador, ele ensaiava mentalmente o gesto, um final melancólico para Robertson e uma vingança justa para Maria. Sairia desonrado de campo sob a dupla justiça da vaia e da suspensão automática no próximo e último jogo do torneio, enterrando a si mesmo e ao seu time, que só precisava de um único gol. Mas nenhum dos lances foi ambíguo: faltas claras como água e brutas como porretes, que eles sabiam do perigo daquele velho em fim de carreira, e ao apitar o lance o braço se esticava para o lado certo e justo, como se ele fosse pago pelo Robertson, que se erguia abraçando sedento a bola e reclamando cartão ao adversário, o cara nunca está satisfeito.
            Uma hora essa bola vai entrar e ele vai sair carregado de campo, imaginou em pânico, e eu só tenho 45 minutos. Não dizia uma só palavra no vestiário, como se a vida lhe caísse nas costas de uma vez só: Maria confessando que estava grávida. "O Robertson." Como se, dizendo o nome inteiro e não o apelido de rua, as coisas ficassem mais dignas. Ele se afastou sem olhar para trás, subitamente bêbado, passos perdidos, a falta de ar, e quando ela começou a segui-lo suplicante, puxando seu ombro com a mão suada, ele correu três quilômetros até parar e vomitar, como se o filho estivesse na barriga dele. No dia seguinte, por mais que quebrasse a cabeça não conseguia imaginar o desenho de um mundo em que ele tivesse lugar. E eu sou uma pessoa boa. E no terceiro dia foi abraçá-la, mas terminou ali. Robertson há dois meses já estava contratado em Recife, o que prometia muito.
            - Me jogaram uma garrafa de plástico - disse Edislon, sem ênfase. E, para que ninguém se incomodasse: - Nem me acertou. Aquele povo xinga muito.
            - Eu vou anotar na súmula - ele disse enfim, maquinal, pensando em outra coisa: o Edislon poderia ser filho dela, a idade provavelmente bate, assim como Mauro. Todos pardos. E disfarçadamente conferiu mais uma vez a lista de jogadores: 10, Robertson. É ele sim.
            Um jogo horroroso no segundo tempo, e ele continuava incapaz de ser injusto, só apitando errado, covarde, quando os bandeiras erravam, o que foi aumentando a irritação, principalmente com o cinismo daquele que era caçado em campo como um cão sarnento, sempre se levantando sorridente como se não fosse com ele e ajeitando a bola com a mesma determinação inútil. Ele está velho, não vê mais nada, o chute é torto e a partida da vida dele está chegando ao fim. Eu ainda posso apitar por alguns anos, mas ele não pode mais jogar nem meio tempo, e sabe disso. Só a piedade e o desespero o mantêm em campo.
            Trinta minutos de jogo e um único chute a gol, do outro time. Robertson a vida inteira plantado no meio de campo com as mãos na cintura, esperando um milagre. Num momento, sobe a placa de substituição, e João Batista sentiu o frio na alma: vão trocá-lo, e ele vai fugir de novo, como se nada tivesse a ver com ele, nem mesmo este jogo. Mas não, era o grosso do camisa 2 que queriam, antes que levasse o vermelho. Olhou para o cronógrafo: vou dar mais quatro minutos pela cera.
            Então aconteceu, ele se viu contando ao delegado como se fosse essa a questão, e não a outra: numa sequência de chutões desesperados a bola caiu na área exatamente ao longo do peito dele, inclinado caprichosamente para trás, de costas para o gol e braços abertos; e ele deu um chapéu como nunca na vida, levou um empurrão que, agora sim, eu não apitei, e o filho da puta conseguiu dar um segundo chapéu mesmo sem equilíbrio, já entrando na pequena área, e levou um pontapé no tornozelo que eu também não apitei porque uma hora aquilo ia acabar e ninguém conseguia ver nada, era só o que faltava eu apitar um pênalti ali, cinco jogadores erguendo um muro em torno dele, até que ele deu às cegas um toque de calcanhar sem saber o que fazia e o goleiro pego no contrapé caiu de boca na grama como um ganso bêbado, o braço inútil para o outro lado, e a bola devagar cruzou a linha parando mansa três palmos adiante, imóvel como um presente.
            Aquilo me transtornou. Eu deveria ter apitado antes algum perigo de gol assim que a bola subisse em direção da área, mas agora era tarde, o idiota do Edislon correu feliz para o meio do campo como se fosse o filho dele, a torcida urrava e eu fiquei sem álibi. Vi ainda os dez jogadores fazendo uma pirâmide de alegria sobre o corpo magro e ruim de Robertson, que levaram carregado para o meio do campo, como eu previa. Voltei ao círculo central sem nem mesmo apitar o gol, que apitava a si mesmo, dispensando meus serviços. Olhei ainda para o cronógrafo, calculando o que faltava de tempo, que era nada, apitei fraco o recomeço e no segundo passe ergui os dois braços para acabar com a agonia. Quando Robertson veio me cumprimentar com aquele sorriso cínico eu. Não sei. Disseram que eu acertei um soco no nariz e outro na boca, mas quem desmaiou fui eu. Acordei no vestiário, com quatro meganhas, dois dedos quebrados na mão direita e essas algemas, como se o culpado fosse eu. Se foi mesmo isso que dizem, estou com a consciência tranquila, porque o injusto não pode ser recompensado - é apenas uma questão moral.

              Ilustríssimos da semana, da edição e o melhor da cultura em 7 indicações

              FOLHA DE SÃO PAULO

              ILUSTRÍSSIMA SEMANA
              O MELHOR DA CULTURA EM 7 INDICAÇÕES
              BRASILEIRO
              REVISTA | CADERNOS PAGU
              Entre os artigos do dossiê "Gênero e Alimentação", da revista do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, da Unicamp, Carole M. Counihan fornece uma visão antropológica sobre "o jejum das mulheres ocidentais" e põe em perspectiva cultural problemas como a anorexia; e o sociólogo Carlos Alberto Dória investiga a masculinização do trabalho na cozinha a partir de leituras de Jorge Amado, Marcel Mauss e Auguste Escoffier.
              480 págs. | R$ 50 (assinatura anual, duas edições)
              LIVRO | VOCÊ ESTÁ FELIZ?
              Jogos, comida, rituais e água -muita água- são alguns dos motivos e panos de fundo para situações de felicidade capturadas por Miguel Rio Branco. Em quase 400 páginas só de imagens, sem outras palavras além do título que lhes dá unidade temática, o fotógrafo e artista plástico nascido nas Canárias (Espanha) em 1946 sugere que há muitas respostas para a pergunta que propõe.
              Cosac Naify |384 págs. | R$ 198
              ERUDITO
              MILHARES DE NOITES
              Diogo Bercito faz três perguntas a Mamede Mustafa Jarouche, professor de língua árabe da USP e tradutor do "Livro das Mil e Uma Noites" (Biblioteca Azul, 4 vols., 1.684 págs., R$ 159,90)
              Folha - Sherazade teve 1.001 noites para narrar seus contos. Sua tradução levou quase dez anos. Qual foi o incentivo?
              Jarouche - O livro por si só, por paradoxal que seja, é a história das traduções dele. É uma obra que pede tradução, devido à pluralidade, à diversidade de manuscritos e de histórias. Isso é estimulante para o tradutor.
              Como está a tradução da literatura árabe para o português, hoje?
              As editoras têm interesse, até porque o mundo árabe está na ordem do dia. Mas os tradutores são poucos, o que abre um campo de possibilidades.
              Quais são seus projetos de tradução em andamento?
              Estou com três projetos simultâneos. "O Colar da Pomba" (Ibn Hazm), um tratado do século 11 sobre o amor. Além disso, um tratado erótico e um tratado político em forma de fábula.
              LIVRO | O BOI NO TELHADO
              O francês Darius Milhaud (1892-1974) tinha 25 anos quando chegou ao Rio como secretário da embaixada francesa comandada pelo poeta Paul Claudel (1868-1955). Era o Carnaval de 1917, e "Pelo Telefone", primeiro samba gravado, invadia as ruas. Milhaud, influente compositor do século 20, deixou-se marcar pela experiência carioca em obras como o balé sinfônico "O Boi no Telhado" (1919), que é analisado em seis ensaios, um deles de Jean Cocteau. O livro traz ainda um CD com duas versões da obra. Org. Manoel Aranha Corrêa do Lago
              IMS |304 págs. | R$ 60
              ESTRANGEIRO
              LIVRO | FRED VARGAS
              Assassinatos em série num vilarejo medieval da Normandia são o motor de "O Exército Furioso", novo livro da historiadora e arqueóloga parisiense que se celebrizou ao se tornar uma best-seller do "polar", o romance policial francês -e, mais tarde, como defensora ferrenha de Cesare Battisti, condenado na Itália por terrorismo e asilado no Brasil.
              Trad. Dorothée de Bruchard | Companhia das Letras | 408 págs. | R$ 49,50
              LIVRO | LIU XIAOBO
              Em dezembro de 2010, o ativista chinês recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua luta em favor dos direitos humanos em seu país. Dois anos antes, havia sido condenado a 11 anos de prisão por ter escrito uma carta que, segundo a acusação, "incita à desmoralização do poder estatal". "Não Tenho Inimigos, Desconheço o Ódio" reúne escritos sobre política, cultura e sociedade, além de poemas. Prefácio do ex-presidente tcheco e Václav Havel (1936-2011).
              trad. Petê Rissatti | L&PM 360 págs. | R$ 59
              POP
              LIVRO | COLEÇÃO DE MÃO EM MÃO
              A série coeditada pela Prefeitura de SP, Imprensa Oficial do Estado de SP e Editora Unesp lança "Ninguém Morre Duas Vezes", livro de contos de Luiz Lopes Coelho (1911-75), pioneiro da literatura policial no Brasil, e "São Paulo em Guerra - 1924", história em quadrinhos inédita do gaúcho Eloar Guazelli, baseada em "A Coluna da Morte", de João Cabanas. Os livros da coleção são distribuídos gratuitamente em terminais de transporte da capital paulista e podem ser baixados no siteprojetodemaoemmao.com.br
              160 págs. (Coelho) | 126 págs. (Guazzelli) | grátis

                ILUSTRÍSSIMOS DESTA EDIÇÃO
                ANDRÉ VALLIAS, 49, é poeta, designer gráfico e editor da revista online Errática (www.erratica.com.br). Publicou "Heine, Hein? - Poeta dos Contrários" (Perspectiva), antologia do poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856). Pág. 8
                BRUNO GHETTI, 33, é crítico de cinema. Pág. 6
                CRISTOVÃO TEZZA, 60, é autor da autobiografia literária "O Espírito da Prosa" (2012) e do premiado romance "O Filho Eterno" (2007). Ambos pela Record. Pág. 4
                FLÁVIO DAMM, 84, é fotógrafo. Trabalhou por uma década e meia na revista "O Cruzeiro" e fundou, com José Medeiros, a agência Image. Uma seleção de seu trabalho pode ser conhecida no livro "Flávio Damm" (ed. Senac). Pág. 3
                HELOISA JAHN, 65, é tradutora e editora. Pág. 7
                MARCELO COMPARINI, 32, é pintor. Pág. 4
                MARINA DARMAROS, 29, é jornalista. Pág. 7

                Minha história: Vovô aviador

                FOLHA DE SÃO PAULO

                Vovô aviador
                O tcheco Zdenek Volf, 82, pilota desde os 15; ele saiu da então Tchecoslováquia num avião do Exército, fugindo da Guerra Fria
                JULIANA COISSIDE RIBEIRÃO PRETORESUMO O tcheco Zdenek Peter Vaclav Volf, 82, é o mais idoso piloto a voar sozinho no Brasil com um planador -avião sem motor-, segundo a Federação Brasileira de Voo a Vela. Ele fugiu da então Tchecoslováquia em 1953, com um avião roubado do Exército. No Brasil, participa de campeonatos em planadores.
                Vi um planador pela primeira vez aos quatro anos, em Klatovy, na então Tchecoslováquia [atual República Tcheca].
                Quando os alemães ocuparam meu país [na Segunda Guerra (1939-45)], eles ampliaram o aeroporto, construíram hangares e colocaram uns 50 planadores de treinamento. Pegavam meninos de 15 anos e botavam dentro. Hitler precisava de milhares de pilotos.
                Quando eu tinha 15 anos, com o fim da Segunda Guerra, eram os soviéticos que estavam no meu país. Eles chamavam os jovens: "Quem quer voar?" Todo mundo queria.
                Como piloto, fiz quatro recordes tchecos em distância percorrida. Ganhava um campeonato atrás do outro. Voava todos os dias. Quando não, ficava triste no chão.
                Para mim, política tanto fazia. Eu queria era voar. Se eu tivesse continuado lá, ia morrer. Eu não me conformava. Por que, diabos, se o cara não gostava de política, deveria ser perseguido? Tinha de fugir daquela opressão [do regime comunista na Tchecoslováquia] para um país livre.
                Decidimos fugir, eu e meu colega Jorge. Roubamos um avião do Exército Tcheco. Era dezembro de 1953, um dia com muitas nuvens, temperatura de zero grau. Péssimo tempo para voar. E, justamente por isso, ótimo tempo para fugir.
                Eu era o oficial do dia. Mandei abastecer o avião. O mecânico estranhou, porque não havia voo programado.
                Ordenei: "Tira os calços". Eu acelerei com toda a força e fui raspando o chão. Quando eu decolei, saíram caças atrás.
                Voamos baixíssimo, entre as árvores. Olhei para a frente e vi uma montanha, bem na nossa cara. Aí o motor congelou. Ele pipocava. O avião começou a subir até o topo.
                Quando cheguei lá, apareceu uma tora de madeira com dois ou três homens com submetralhadora. Vi um apontando para a minha cara.
                A tora era uma das colunas da cortina de ferro [que separava os comunistas do Ocidente]. Voamos bordeando o arame farpado. Quando vi a torre do lado direito, pensei: "Já estou na Bavária [Alemanha Ocidental]. Estou livre!".
                Pouco depois de passarmos a fronteira, o motor fez: pla-la-la-...Pof. Parou. Fim da gasolina. "Pronto, agora virou planador", pensei. Mas eu sou piloto de planador, tanto faz. Só deu tempo de puxar o manche. Quando íamos parar, capotamos.
                Pousamos em Pfarrkirchen, na Alemanha Ocidental. Quando perguntaram para qual país queríamos ir, escolhi o Brasil, porque tinha um tio em São Paulo. Desembarcamos em Santos, em 1954.
                Foi uma fase triste, porque passei longos anos sem voar. Foi só quando me mudei para Ribeirão Preto, com tráfego aéreo mais limpo, que voltei a competir com planador.
                Eu tenho 82 anos. Ninguém acredita que voo na minha idade. Você me pergunta qual é a sensação de voar? Façamos o seguinte. Estou agora me recuperando de saúde, mas daqui a três meses, quer fazer um voo comigo?

                  Danuza Leão

                  FOLHA DE SÃO PAULO

                  A repetição
                  Dureza é chegar e abrir as malas: tirar as botas, os casacos de lã, e o pior: a readaptação à vida real
                  Uma viagem costuma ser assim: primeiro você inventa, depois se programa, acerta o roteiro, as datas, reserva o hotel e fica contando os dias para a partida. Ela chega, enfim.
                  O avião costuma sair à noite, e como já está tudo resolvido -malas fechadas, quem vai cuidar do gato etc. etc.-, você passa o dia inteiro sem fazer nada, pensando seriamente na razão pela qual vai viajar; a casa está tão boa, os amigos por perto, não faz sentido atravessar um oceano para se instalar num quarto que é a metade do seu e curtir.
                  Mas ficou combinado que não se pode desistir de uma viagem por nada, então, vai; se arrastando, com dor na coluna, mas vai.
                  Realidade, seu nome é aeroporto. Não é preciso falar das horas passadas no avião cheio de crianças barulhentas, da chegada arrasada, arrastando uma mala de rodinhas com o laptop que levou para poder ler os jornais do Brasil e saber como vai a política; vamos fazer de conta que foi tudo uma maravilha.
                  Até foi, se formos simplistas e acharmos que o fato de o avião ter chegado e as malas não terem sumido faz com que uma viagem seja uma maravilha.
                  Aí você toma um táxi, o motorista por acaso é simpático, e você vai indo para o hotel de sempre, com o qual sonha há meses, e durante o percurso pensa, como aliás em todas as viagens: "o que é que estou fazendo aqui?" e não encontra resposta satisfatória. É bem recebida, o pessoal do concierge te conhece há anos, larga as malas no quarto e sai para dar uma volta e se sentir na cidade. Afinal, Paris é Paris.
                  Percebe que não está com aquela coceira de comprar alguma coisa, seja o que for, só assim, para nada. Como está com fome, para num bistrot e pede uma coisa que adora: ostras com um copo de Chablis. Tá bom, não tá? Devia estar, mas não está. Enquanto toma o vinho, percebe o quanto já conhece esse filme, que é sempre o mesmo.
                  Amanhã vai estar melhor, no fim da semana melhor ainda, adorando tudo e pensando seriamente em se mudar de país para sempre. Digamos que não para sempre, mas por uns três meses. Pretende até ir ver uns studios para alugar, mas tem consciência de que não quer fundar um lar, gosta mesmo é de um hotel, e é isso que procura em uma viagem.
                  Ainda tendo pela frente três semanas para curtir sua querida Paris, curte, mas já sabendo como esse episódio vai terminar. Quando chegar de volta ao Rio, e vir seis sambistas no aeroporto às 4h da manhã (é véspera de Carnaval), com um calor de 38ºC, vai ter vontade de dar meia volta e ser moradora de rua em qualquer lugar onde não tenha tanto samba, tanta alegria, tanta animação, tanto sol.
                  Dureza é chegar em casa e abrir as malas: tirar as botas, os casacos de lã, mandar para o tintureiro, e o pior de tudo: a readaptação à vida real.
                  Para que isso aconteça, são necessárias de duas a três semanas, mas um dia acontece. Como felizmente temos o dom de esquecer, é exatamente nessa hora que se começa a pensar na próxima viagem, que vai ser, provavelmente, igual a essa e a todas as outras, e assim a vida continua.
                  De Paris: eu já sabia que a livraria La Hune, entre o Café de Flore e o Deux Magots ia se mudar. Mas saber é uma coisa; ver, outra. Quando me instalei na terrasse do Flore e olhei à esquerda, no lugar da antiga livraria, vi um espaço vazio, em obras; uma tristeza.
                  E quando vi os toldos já no lugar, com a marca Louis Vuitton, quase chorei. La Hune, símbolo de St. Germain des Près, cedeu seu lugar para que ali seja instalada uma loja LV? É o fim do mundo.
                  No dia 29 de dezembro, nas três lojas Hermès de Paris havia pouquíssimas agendas para vender, e só alguns poucos modelos; um verdadeiro choque, para quem não vive sem elas. As lojas Hermès sem agendas no final do ano? É o fim do mundo.
                  E enfim uma boa notícia: as coleções primavera/verão já chegam às vitrines, e tenho o prazer de anunciar que aqueles sapatos que parecem botas e sobem pelas pernas feito polvos, deixando as pernas das mulheres com cinco centímetros, já eram.

                    Pedra lunar presente dos EUA está 'esquecida' em universidade gaúcha

                    FOLHA DE SÃO PAULO

                    Da lua para o cofre
                    Cidade gaúcha de Bagé é o lar de uma relíquia inusitada: uma pedra lunar trazida à Terra pelo projeto Apollo e presenteada ao governo militar
                    FELIPE BÄCHTOLDENVIADO ESPECIAL A BAGÉ (RS)Em Bagé, cidade gaúcha próxima ao Uruguai, a reverência à personalidade local mais conhecida, o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), está por toda parte: nomes de prédios, placas e uma exposição de objetos pessoais.
                    A principal fortuna que o presidente entre 1969 e 1974 deixou para a cidade, porém, está escondida em um cofre de uma universidade local.
                    Em 1973, o militar, que comandou o país no auge da ditadura, recebeu um presente inusitado do então presidente americano Richard Nixon (1913-1994): uma pedra trazida da Lua por astronautas.
                    O fragmento foi doado anos depois pelo general ao museu de sua cidade, mantido pela universidade privada local Urcamp (Universidade da Região da Campanha).
                    Apesar do aspecto de pedaço de carvão e de seu peso de pouco mais de um grama, o valor da pedra pode alcançar milhões de dólares no mercado negro.
                    O fragmento foi exposto por anos no Museu Dom Diogo de Souza sem ser muito notado. Até o dia em que reportagem em uma revista abordou o caso de uma outra pedra similar, furtada do governo de Honduras e avaliada à época em US$ 5 milhões.
                    A direção da universidade decidiu retirar a relíquia de exposição e, há mais de dez anos, nenhum visitante pode observar o objeto histórico.
                    SEM PATROCÍNIO
                    Em 2012, a gestão do museu tentou organizar uma exposição sobre o espaço na qual a pedra seria a grande atração. Não conseguiu levantar R$ 80 mil necessários para o patrocínio, e o objeto de origem espacial continua guardado a sete chaves, em local não revelado.
                    A pedra fica acomodada em uma esfera de acrílico pouco menor do que uma laranja. A redoma está fixada em uma placa de madeira, com inscrições em inglês falando em "símbolo do esforço humano".
                    Um trauma na história do local contribui para o temor de furto: em 1989, o museu foi arrombado e teve objetos levados. Atualmente, um zelador durante o dia e outro à noite cuidam do acervo.
                    A universidade não pretende deixar a pedra em exposição permanente. Em uma mostra temporária, a ideia é pedir auxílio ao Exército, que iria atuar na vigilância.
                    A reitora, Lia Quintana, afirma que não há como arcar com os custos de uma exibição ininterrupta. "É como um quadro valioso", diz.
                    Para piorar a situação, a Urcamp enfrenta uma crise financeira e esteve ameaçada de ter seu principal prédio levado a leilão neste ano. O orçamento anual da instituição é de R$ 45 milhões.
                    Folha foi autorizada a fotografar a pedra. Mas teve de esperar 40 minutos até que a direção da universidade retirasse a pedra do esconderijo.
                    Em Bagé, cidade de 117 mil habitantes, há quem desconheça a existência do objeto.
                    CASUALIDADE
                    O advogado Fernando Sérgio Lobato, 66, diz que o fragmento foi parar no acervo do museu de maneira quase casual. Nos anos 1970, após Médici deixar a Presidência, Lobato era advogado dele e o ajudava com processos sobre escrituras de fazendas. Não cobrava honorários.
                    Ele conta que certa vez visitou uma sala onde o presidente expunha objetos pessoais. "Tinha camisas de futebol autografadas. Ele perguntou se eu tinha uma escolha ali para fazer como presente. Eu disse que tinha escolhido a pedra da Lua: 'Quero que o senhor dê para o museu de Bagé'."
                    E assim foi feito. Por pouco a pedra não ficou esquecida na coleção particular do presidente.

                      Felipe Bächtold/FolhapressPedra lunar, acomodada em cilindro de acrílico, está em universidade em bagé (RS) Pedra lunar, acomodada em cilindro de acrílico, está em universidade em Bagé (RS)

                      Grupo dos EUA rastreia rochas mundo afora
                      DO ENVIADO A BAGÉEstudantes americanos liderados por um ex-investigador da Nasa (agência espacial dos EUA) tentam há anos descobrir o paradeiro de pedras lunares como a que foi doada ao Brasil nos anos 1970.
                      Os Estados Unidos distribuíram naquela década fragmentos de uma pedra conhecida como "rocha da boa vontade" para 130 países e para os 50 governadores americanos.
                      Os alunos do ex-investigador Joseph Gutheinz afirmam que já conseguiram rastrear, desde 1998, 79 dos fragmentos dados como presentes.
                      Se parte dos souvenires está exposta em locais de prestígio, como o Museu Alemão de Munique, dezenas ainda têm o destino desconhecido.
                      À Folha, questionado sobre a situação da pedra de Bagé, Gutheinz, que é professor de direito, diz que a peça pode ser exposta e protegida ao mesmo tempo. "A Nasa faz isso o tempo todo. Todas deveriam estar em exibição para o maior número possível de crianças."

                        Marcelo Gleiser

                        folha de são paulo

                        Universos em colisão
                        Imagine que outras porções do espaço, vizinhas da nossa, também sejam universos, como ilhas
                        Talvez alguns dos leitores se lembrem do best-seller de Immanuel Velikovsky, "Mundos em Colisão", publicado em 1950. Nele, Velikovsky tenta demonstrar a veracidade de várias catástrofes registradas nos mitos de culturas antigas usando supostos eventos astrofísicos.
                        Velikovsky imaginou que Vênus foi ejetada de Júpiter como um cometa no século 15 a.C., tal como, na mitologia grega, Atena é ejetada da cabeça de Zeus. A passagem do "cometa Vênus" perto da Terra em diversas ocasiões teria gerado uma série de catástrofes.
                        As ideias de Velikovsky foram sumariamente refutadas pela comunidade astronômica. Mas seu catastrofismo continua a tradição de várias religiões, como mostro no livro "O Fim da Terra e do Céu".
                        Embora dramáticos, os eventos imaginados por Velikovsky não se comparam ao que a cosmologia moderna anda propondo. Não falo dos efeitos da aproximação de cometas, mas de colisões de universos inteiros, inclusive o nosso. Bem-vindos ao catastrofismo cósmico.
                        O Universo surgiu 13,7 bilhões de anos atrás e vem se expandindo desde então. Porém, observações atuais indicam que essa expansão não foi sempre regular. Logo no início, o Cosmo aparentemente passou por um período de expansão acelerada, chamado de inflação.
                        Segundo essa teoria, o Universo inteiro teria se originado de uma pequena porção de espaço que foi estirada como uma tira de borracha por um fator de cem trilhões de trilhões em uma fração de segundo.
                        Nosso Universo cabe nessa região inflada, como uma ilha no oceano. Imagine que outras porções de espaço, vizinhas da nossa, tenham também sido estiradas, mas de maneiras diferentes. Teríamos, então, uma espécie de oceano repleto de universos-ilhas, cada qual com a sua origem, tipos de matéria etc. -é o chamado Multiverso.
                        Como a física é uma ciência empírica, qualquer hipótese precisa ser testada. Isso é tanto verdade para uma bola que rola ladeira abaixo quanto para o Universo todo.
                        No caso da bola, basta descrever como a gravidade e a fricção do solo agem sobre ela; no caso da inflação, ela prevê que nosso Universo seja geometricamente plano e repleto de radiação com a mesma temperatura em todas as direções -ambas previsões confirmadas.
                        Se não podemos receber informação de fora do nosso Universo (ou além do "horizonte", a esfera que delimita o quanto a luz pôde viajar em 13,7 bilhões de anos de expansão), como provar a existência de outros universos?
                        Tal como bolhas de sabão, que vibram quando colidem sem se destruir, se outro universo colidiu com o nosso no passado distante, a radiação dentro do nosso Universo teria vibrado devido às perturbações criadas pela colisão.
                        Essas perturbações estariam registradas na radiação que permeia o Cosmos e podem, em princípio, ser observadas: seriam anéis concêntricos onde a radiação teria temperatura um pouco mais alta ou baixa. A notícia ruim é que a probabilidade de colisão com outro universo aumenta com o tempo: podemos desaparecer a qualquer instante!
                        A boa é que os anéis ainda não foram encontrados. Mas sua possível existência demonstra a diferença entre ciência e especulação.