domingo, 6 de outubro de 2013

Sem esforço e sem exemplo - Lya Luft

Revista Veja - 06/10/2013

Não creio que a gente ande tão ruim de português por causa das redes sociais, dos torpedos no celular. Essa reclamação tem cheiro de mofo.

O interessante é que, embora digam que se lê pouco, as editoras vendem mais que nunca, bienais e feiras ficam lotadas, e mesmo assim não conseguimos nos expressar direito, nem oralmente nem por escrito. Se lemos mais, por que escrevemos e falamos mal?

Penso que, coisas verificadas há trinta anos em meus tempos de professora universitária, andamos com problema de raciocínio. Não aprendemos a pensar, observar, argumentar (qualquer esforço maior foi banido de muitas escolas), portanto não sabemos organizar nosso pensamento, muito menos expressá-lo por escrito ou mesmo falando. "Eu sei, mas não sei dizer", "Eu sei, mas não consigo escrever isso"" são frases ouvidas há muito tempo, tempo demais.

A exigência aos alunos baixou de nível assustadoramente, e com isso o ensino entrou em queda vertiginosa. Tudo deve parecer brincadeira. Na infância, ensinam a chamar as professoras de tias, coisa com que, pouco simpática, sempre impliquei: tias são parentes. Professoras, ou o carinhoso profes, ou pros, são pessoas que estão ali para cuidar, sim, mas também para educar já os bem pequenos. Modos à mesa, civilidade, dividir brinquedos, não morder nem bater, socializar-se enfim da maneira menos selvagem possível.
Depois, sim, devem educar e ensinar. Sala de aula é para trabalhar: pátio é para brincar. Não precisa ser sacrifício, mas dar uma sensação de coisa séria, produtiva e boa.

Por alguma razão, lá pela década de 60 inventamos - melhor: importamos - a ideia de que ensinar 6 antipático e aprender, ou estudar, é crueldade infligida pelos adultos. Tabuada, nem pensar. Ortografia, longe de nós. Notas, abolidas: agora só os vagos conceitos. Reprovação seria o anátema. É preciso esforçar-se, e caprichar, para ser reprovado.

Resultado: alunos saindo do ensino médio para a faculdade sem saber redigir uma página ou parágrafo coerente e em boa ortografia em seu próprio idioma!

O acesso à universidade, devido a esse baixo nível do ensino médio, reduziu-se a um facilitaris-mo assustador. Hordas de jovens entram na universidade sem o menor preparo. São os futuros bacharéis que não vão passar no exame da Ordem. Na medicina e na engenharia, o resultado pode ser catastrófico: ali se lida com vidas e construções. Em lugar de querer melhorar o nível desse ensino, cogita-se abolir o exame da Ordem. Outras providências desse tipo virão depois. Em vez de elevarmos o nível do ensino básico, vamos adotar o método da não reprovação. Em lugar de exigirmos mais no ensino médio, vamos deixar todos à vontade. pois com tantas cotas e outros recursos vão ingressar na universidade de qualquer jeito.
Além do ensino e do aprendizado, facilitamos incrivelmente as coisas no nível da educação, isto é. comportamento, compostura, postura, respeito, civilidade.

Alunos comem, jogam no celular, conversam, riem na sala de aula - na presença do professor que tenta exercer sua dura profissão - como se estivessem no bar. Tente o professor impor autoridade, e possivelmente ele. não o aluno malcriado. será chamado pela direção e admoestado. Caso tenha sido mais severo, quem sabe será processado pelos pais.

Não estou inventando: nesta coluna não escreve a ficcionista, mas a observadora da realidade.
A continuar esse processo antieducação, e nos altos escalões o desfile de péssimos exemplos, impunidades, negociatas e deboches - além do desastroso resultado do julgamento do mensalão, apesar de firulas jurídicas -, teremos problemas bem interessantes nos próximos anos em matéria de dignidade e honradez. Pois tudo isso contamina o sentimento do povo. que somos todos nós, e pior: desanima os jovens que precisam de liderança positiva.

Resta buscar ânimo em outras pastagens, para não desistir de ser um cidadão produtivo e decente.

Perfil: João Santana - O homem que elegeu seis presidentes

Revista Època - 06/10/2013

 Luiz Maklouf Carvalho

A Dilma vai ganhar no primeiro turno, em 2014, porque ocorrerá uma antropofagia de anões. Eles vão se comer, lá embaixo, e ela sobranceira, vai planar no Olimpo.

A previsão é do marqueteiro João Santana, o número um do PT, do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e da presidente da República, Dilma Rousseff - a "selvagem da motocicleta", como divertidamente a chamou em uma das duas entrevistas que concedeu a ÉPOCA. Os "anões", diz Santana, são os candidatos Marina Silva, Aécio Neves, Eduardo Campos e, pelas contas dele, José Serra. "O que menos crescerá, ao contrário do que ele próprio pensa, é justamente Eduardo Campos", disse.

Santana faz parte, como consultor político informal de Dilma, da meia dúzia de assessores que ela ouve mais, conhecida como "núcleo duro" do governo. Além dele, formam o time os ministros Aloizio Mercadante (Educação), José Eduardo Cardozo (Justiça), Fernando Pimentel (Desenvolvimento), o ex-ministro Franklin Martins e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Deles, o único que não é ou foi ministro nem presidente da República é Santana. Ele compara Lula a Dilma da seguinte forma: "Lula é vulcão. Dilma é raio laser". E se autodefine assim: "Sou um dos últimos socialistas românticos e um dos primeiros socialistas cibernéticos - ao mesmo tempo utópico e descrente; ao mesmo tempo sério e debochado". Faz uma profecia para o Brasil: "Aqui ocorrerão, neste século, as grandes tramas neopolíticas, neoestéticas e ciberétnicas. Gosto muito da definição espiritualista, de que o Brasil é o laboratório do espírito santo".

AUTODEFINIÇÃO O marqueteiro João Santana em seu escritório, em São Paulo. “Sou um dos últimos socialistas românticos e um dos primeiros socialistas cibernéticos” (Foto: Mauricio Lima/The New York Times)

AUTODEFINIÇÃO
O marqueteiro João Santana em seu escritório, em São Paulo. “Sou um dos últimos socialistas românticos e um dos primeiros socialistas cibernéticos” (Foto: Mauricio Lima/The New York Times)


João Santana de Cerqueira Filho, baiano da cidade de Tucano (pois é...), tem 60 anos, é vovô de três netos, com o quarto a caminho, e coleciona feitos e números inusitados. Como marqueteiro, já ajudou a eleger seis presidentes da República: Lula (reeleição, 2006), Mauricio Funes (El Salvador, 2009), Dilma Rousseff (2010), Danilo Medina (República Dominicana, 2012), José Eduardo dos Santos (Angola, 2012) e Hugo Chavez/Nicolás Maduro (Venezuela, 2012). É um recorde mundial. Vale lembrar que Lula foi reeleito depois do escândalo do mensalão. O marqueteiro contou a ÉPOCA que foi ele quem convenceu o PT a lançar a quarta candidatura de Lula, no começo de 2001, momento em que até o próprio Lula não estava animado com a ideia. "Naquela época, o Duda (Mendonça, então sócio majoritário de Santana, com quem ele rompeu depois) defendia os nomes do Suplicy ou do Tarso Genro", afirma. (Mendonça não quis dar entrevista a ÉPOCA.)

Santana pode chegar a sete presidentes eleitos, se confirmadas as pesquisas no Panamá. O candidato José Domingo Arias, seu cliente, está na liderança. As eleições serão em março de 2014. Santana está concentrado nesse trabalho. Viaja com frequência para a Cidade do Panamá, onde mantém uma equipe de 30 pessoas. Sua empresa continua a dar assistência aos presidentes de Angola, El Salvador e República Dominicana.

Quanto Santana fatura com todo esse movimento? "São números confidenciais, que só interessam à empresa", diz. Mas ele próprio já informou, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, que a campanha de Dilma Rousseff custou R$ 42 milhões - sem especificar os percentuais de despesa, a maior parte, e de lucro. Os números disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que a Pólis Propaganda e Marketing, sua empresa, recebeu, do PT nacional, R$ 13,7 milhões em 2006, R$ 9,8 milhões em 2008, R$ 42 milhões em 2010 e R$ 30 milhões em 2012. Um total de R$ 95,6 milhões. É o que há no TSE até 2012. Não existe TSE ou semelhantes para as campanhas internacionais. De vez em quando, sai um número que Santana não confirma nem desmente, como os US$ 65 milhões de faturamento na campanha presidencial de Angola - aí incluídos os custos, a exemplo dos demais números citados. No ano passado, com seis campanhas simultâneas, a Pólis empregou temporariamente um batalhão de 700 funcionários. Seus braços direito e esquerdo, na Pólis, além da sócia e mulher, Mônica Moura, são os marqueteiros Marcelo Kertész e Eduardo Costa.

No caso da presidente Dilma, Santana e a área de comunicação do governo dizem que ele trabalha de graça. Em 9 de fevereiro de 2011, Santana e seu diretor de criação, Kertész, assinaram, com a Presidência da República, um termo de cessão de direitos de uso da marca e do slogan "Brasil - país rico é país sem probreza", criado por ambos. A ministra da Comunicação Social, Helena Chagas, não quis falar sobre Santana. A presidente Dilma também não. O escritor e marqueteiro baiano Marcelo Simões, amigo antigo, admirador e ex-colaborador da Pólis, afirma que Santana ficou milionário. "Bota aí uns US$ 50 milhões, para mais", diz. Santana ouviu esse número duas vezes. Apenas riu, gostosamente, e carimbou Simões com dois ou três palavrões dos que se dizem na baianidade.

Já veio a público que Santana tem um bom apartamento num bairro chique de Salvador, uma casa de oito quartos na Praia de Interlagos, Bahia, outra, futurista, na Praia de Trancoso, uma fazenda em Tucano e outra em Barreiras, cidade vizinha. Viaja com frequência para o exterior - principalmente Nova York e Paris, algumas vezes por ano. "Adoro essas duas cidades e já não sou um turista acidental", diz. Em janeiro passado, levou a família - 13 pessoas - para 20 dias de férias em Barbados, uma ilha no Caribe. Ultimamente, mora em São Paulo, onde fica a sede da Pólis, com 20 funcionários fixos (a empresa tem filial em Salvador). Depois de alguns anos morando em bons hotéis, mudou-se com a mulher para um apartamento de 280 metros quadrados, por enquanto alugado, no bairro de Vila Nova Conceição. Em Brasília, aonde vai quando a presidente o chama -não diz com que frequência -, hospeda-se em hotel.
Santana já se casou com sete mulheres. Sua sócia e faz-tudo Mônica Regina Cunha Moura é a sétima. "É a grande mulher da minha vida", diz ele. Antes de Mônica, ou MM, como ela assina os e-mails, os amigos o chamavam de Dom João VI. O casamento-namoro vai para 15 anos. Jantam fora praticamente todos os dias, nos melhores restaurantes, com os melhores vinhos, escolhidos, às vezes, no aplicativo que ela guarda no iPhone. Santana é muito de frutos do mar - com predileção pelo tirashi, da cozinha japonesa, que leva fatias cruas de peixe sobre uma tigela de arroz. MM é ele, para todas as tarefas práticas que possam existir: contatos com imprensa, advogados, clientes, fornecedores, meia dúzia de secretários domésticos, problemas com filhos (e suas mães), netos, sogra, logística. É tudo com ela. Para esta reportagem, Santana só apareceu depois de dois meses, diversos telefonemas, dezenas de e-mails e torpedos - todos com ela.

Mônica já não estranha as muitas excentricidades do marido - entre elas a relação espiritual que Santana tem com Ettore Majorana. A internet informa que Majorana foi um físico italiano. Estudioso da energia nuclear, desapareceu misteriosamente em 1938, com 32 anos. É uma espécie de Dana de Tefé da física, por assim dizer. "Tenho uma relação misteriosa e cotidiana com ele", diz Santana, ao relembrar que o jovem cientista existiu. É o Santana dos espíritos e do candomblé, de confessada forte influência, pé de pato, mangalô, três vezes. Numa entrevista a ÉPOCA, quando achou que falava mais do que pretendia, Santana fez uma pausa, acendeu a luz alta dos grandes olhos verdes, disse "Você tem um omulu..." -e continuou a falar. (Majorana desapareceu, livro do escritor italiano Leonardo Sciascia, está disponível nos sebos virtuais.)

Os números também são superlativos no que tange às (p)referências culturais de Santana, definidas por ele como "maravilhosamente caóticas". Na literatura, citou 56 autores, 14 deles brasileiros, entre aqueles que fazem ou fizeram seu deleite. Na música, relacionou 80 compositores e/ou intérpretes. A maioria faz parte do cânone universal, ou nacional (leia a relação em epoca.com.br). Um ou outro pede um passeio no Google, caso do compositor erudito Arvo Part, de 78 anos, da Estônia (nascido em 11 de setembro, já que Santana é de ver omulus...). No estilo brega, diz que adora Waldick Soriano - de "Eu não sou cachorro não-, sempre querido dos que farrearam em casa de mulher, prostíbulo, cabaré e lupanares. De um deles, em Porto Alegre - tempos em que fazia a campanha do peemebedista Antônio Britto contra o vitorioso bigodudo petista Olívio Dutra -, Santana escorraçou da mesa um colega que desrespeitou uma estonteante profissional.

Há um João Santana romancista - e nessa área os números também falam alto. Ele classificou o órgão sexual feminino em nada menos de 14 tipos, cada qual com sua detalhada e criativa descrição. São eles: "abóbada azulada", "brasa endiabrada", "mamãe eu quero", "de siri", "gaita de fole", "dedo de veludo", "Vênus de Apuleio", "menina fujona", "grota oceânica", "arco-íris", "alicate" "serpente alada", "porta de cadeia" e "rainha". A única descrição possível de citar em ÉPOCA é a arco-íris: "Coberta por uma pequena selva respingada de gotas tímidas, que se abrem suspeitas de segredos, loucas para se revelar". As outras - e muitíssimo mais - estão no romance Aquele sol negro azulado, o único de Santana até aqui, lançado em 2002, disponível on-line.

Santana escolheu, para a primeira entrevista, um estrelado restaurante nos Jardins, área nobre da capital paulistana. Era uma agradável tarde de sábado. Chegou, baianamente, irradiando simpatia. Um blazer azul-marinho com botões dourados rodeava uma barriga que, vá lá, sempre poderia ser maior. Calça jeans, camisa de listras verticais e sapatênis, todos de boas marcas, completavam sua ladina figura (no sentido em que Rubem Braga chamou Vinícius de Moraes, ambos na lista dos 56 autores). Uma das características mais singulares de Santana é que ele não termina todas as frases de forma inteligível. "Tenho um circuito neural rápido, tzzzzwzq, tclixzhchcz, querwtzch, tryzwrrrs (barulhos de circuito neural rápido). Qualquer pessoa que convive ou conviveu comigo sabe disso." Diz que a presidente Dilma brinca com ele devolvendo fins de frases igualmente incompreensíveis, que ambos entendem. "Meu cérebro produz algumas coisas muito rápidas, e essa é a fimção nossa, como marqueteiros, um termo que adoro, um nome simpático. Apesar de toda a carga pejorativa que tentam impor, acho bonito. Parece coisa de sambista. Sinto como se fosse o sambista da política. Me sinto na Lapa de Noel, fazendo política na Lapa..."

No restaurante, Santana relembra a infância em Tucano, no sertão de Canudos, a 250 quilômetros de Salvador, àquela época com 3 mil habitantes. Foi o filho do meio do segundo casamento do fazendeiro, beneficiador de sisal, dono de cartório e depois prefeito João Santana, "muito autoritário". Seu pai já morreu. Sua mãe, dona Helena, que mora em Salvador, abastecia a casa com publicações do "sul", como a revista O Cruzeiro e livros das Edições de Ouro. Santana conta que estudava - "até latim grego" -, lia, dirigia o DKW desde os 9 anos e soprava saxofone alto na Filarmônica São José. O maestro era João Neves, de resto oficial de justiça no cartório paterno. Ele diz que aprendeu hipnotismo em dez lições, e praticou, até com levitação. "Adorava provocar dor de dente nas meninas." Até hoje é adepto da quiromancia - a leitura das mãos. Em 1965, com 12 anos, mudou-se para Salvador. Vida de colégio interno, o marista Vieira, onde ganhou o apelido que até hoje carrega: Patinhas. Não por ser pão-duro - é até mão aberta. Mas por exercer "com tirania fiscal única" o posto de tesoureiro do grêmio estudantil.

Em junho, quando as manifestações de rua abalaram o país, a presidente Dilma convocou Santana. De olho na televisão, almoçaram no dia 17, com Carlos Augusto Montenegro e Márcia Cavallari, do Ibope, que monitorava a movimentação. "Ninguém entendia o que estava acontecendo", diz Santana. Na noite do mesmo dia - quando mais de 100 mil pessoas ocuparam o centro do Rio de Janeiro -, o jantar, com TV, reuniu a presidente, o marqueteiro e o, no momento, mais poderoso integrante da meia dúzia de conselheiros palacianos: o ministro Mercadante, da Educação. "Já ficou claro que a crise seria maior do que a gente tinha imaginado", diz Santana. Ele é muito cioso, quase temeroso, em contar o que Dilma disse ou deixou de dizer nessa e em qualquer outra ocasião. Sabe que ela não suporta leva e traz. Faz um comentário genérico sobre a postura dela na crise junina - quando chegou a cair 27 pontos nas pesquisas: "Ela tem uma capacidade muito forte de resistir a uma situação de crise. A Dilma é f... Ela fica surpresa, sim, mas jamais intimidada".

Santana detectou, em sua cadeia de pesquisas, que junho poderia acontecer? "Não. É impossível", responde. Não é uma falha do marqueteiro político? "Não. Acontecimentos dessa natureza só podem existir porque são imprevisíveis. Pesquisa não pode detectar fatores vulcânicos. É igual um terremoto. Você sabe que pode acontecer, mas nunca saberá o dia, nem a intensidade. Se, uma semana antes, perguntassem, para as 400 mil pessoas que foram às ruas, se elas iriam, a resposta seria não." Em julho, quando uma pesquisa do Datafolha mostrou uma queda de 21 pontos na popularidade de Dilma, apontando segundo turno em 2014, Santana disse à Folha de S.Paulo: "Essa pesquisa tem o valor de uma vaia em estádio. Não passa de catarse temporária. Redobro a aposta: Dilma ganha no primeiro turno".

No sábado de agosto, durante o almoço com ÉPOCA, as pesquisas apontam forte subida de Dilma - 38% de avaliação "ótimo" ou "bom". Santana está feliz. "Nas minhas pesquisas, ela já está com 43 - e subirá mais", afirma. Para explicar seu prognóstico, usa a nomenclatura do neurobiologista português Antônio Damásio, "um dos caras mais geniais que eu já li". Nesse caso, a referência é o livro Em busca de Spinoza: prazer e dor na ciência dos sentimentos, que diz reler pela terceira vez. Damásio trata, filosoficamente, das diferenças entre os sentimentos e as emoções.

- Junho era emoção, espasmo. Não foi modificado o sentimento das pessoas em relação a Dilma. Uma semana antes, minhas pesquisas mostravam que os atributos dela, a maioria, eram extremamente positivos. É honesta? Tem comando? Mais de 70%. O governo está gerindo bem? Está, com problemas aqui e ali, mas está. Confirmava a série histórica, e batia com a pesquisa de 15 dias antes. Então, não poderia ser algo em relação a ela, Dilma, mas à posição no cargo. Há estudos mostrando que, na estrutura republicana federativa, a crise bate mais fortemente lá em cima - mas é lá em cima também que começa a se dissolver. Por isso, ela se recuperou tão rápido.

Patinhas é o nome com que Santana virou verbete no prestigioso Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira, disponível na internet. Foi fundador e letrista do grupo Bendegó, com os parceiros Winston Geraldo Guimarães Barreto, o Gereba, que segue músico em Salvador, e José Ventura dos Santos, o Kapenga, funcionário de Santana em São Paulo. Nos velhos tempos, Patinhas conviveu com Caetano, Gilberto Gil e muitos outros "bichos-grilos" do que viria a ser o tropicalismo. Patinhas gostava de chocar (ontem como hoje). Contam que uma vez, na casa de Caetano, copinho de cachaça equilibrado no joelho - "nunca deixou cair!", diz Gereba -, quis constranger o grupo perguntando quem se masturbava (com outra palavra, é claro). As respostas foram saindo, tímidas e confrangidas. Até que Caetano fez a mesma pergunta ao próprio Patinhas. "Não abro mão", respondeu, zás-trás, para a gargalhada geral. E virou mais um copinho da bebida que ainda hoje curte (e coleciona). Eram anos de ditadura, década de 1970. Patinhas aderiu aos sentimentos e emoções da guerrilha cultural, em sentido amplo. Deixou crescer o cabelo, à black power. Pelos relatos, fumou toda a maconha que pôde, viciou-se em nicotina (até quatro maços por dia), experimentou muitos cogumelos alucinógenos do sertão, fez viagens místicas e psicodélicas, jogou-se na música e na filosofia eubiótica (ou arte de bem viver) do suíço-baiano Walter Smeták, guru dos tropicalistas. Santana o incensa até hoje: "Foi meu pai espiritual. Ensinou-me a virar os olhos para dentro da cabeça e o ouvido para dentro do silêncio da alma".

Como jornalista, teve "um tremendo lado moleque", expressão do jornalista Antônio Risério, amigo e colaborador. Uma vez, atrapalhou completamente uma visita do então presidente Sarney, hoje presidente do Senado, ao Mercado Modelo, em Salvador. Na hora em que Sarney chegou, um ator comediante localmente bem conhecido comandava uma balbúrdia de fãs pedindo autógrafo. Santana é quem armara tudo, caladinho. Outra vez, na época das Diretas Já, quando Paulo Maluf visitava Salvador, mandou fazer uma camiseta. No aeroporto, pediu a uma fotógrafa (sua namorada, para variar) que entregasse a camiseta a Maluf, como presente dos jornalistas da Bahia. Então candidato ao colégio eleitoral, Maluf a recebeu, dobrada, deu aquele indefectível sorriso e, sem atentar na inscrição, abriu um "Diretas Já" que foi parar na imprensa.

Sua primeira e rápida incursão como publicitário foi na agência Standard, do então rebelde, comunista e ex-exilado Sérgio Amado. O cliente era a cadeia de lojas Tio Correa, um varejista daqueles tempos como as Casas Bahia. "Vá direto no barato", foi o slogan criado por Patinhas. Era um pleonasmo vicioso. "Ele sempre foi talentoso", diz Amado, hoje presidente da Ogilvy Group Brasil.

Do time publicitário que não trabalha para o governo, ele não é o único dos centroavantes a elogiar Santana. "João é um cara que sabe se colocar", afirma Nizan Guanaes, presidente do Grupo ABC, o maior grupo brasileiro de marketing, onde pontifica a agência África. "O Tio Correa dobrou as vendas, mas o barato bom era o outro", diz Santana, com uma espontânea risada de baiano folgado. Conta que parou com os exageros quando nasceu sua primeira filha, Suriá Luirí, hoje com 37 anos. Ela mora com o marido nos Estados Unidos. É mãe de Natália, de 3 anos, e carrega a próxima neta de Santana, que nasce neste outubro. (Aylê Axé, seu outro filho, de 35 anos, mora em Salvador e trabalha com o pai. Ele tem os filhos João Pedro, de 14 anos, e Manuela, de 4, capa do celular de Santana.)

"João é muito de dizer o que pensa, sem ser puxa-saco", diz o radialista Mário Kertész, o MK, dono de um popular programa de rádio da Bahia. MK foi prefeito de Salvador, pelo então MDB, entre 1986 e 1988. A seu convite, Santana largou o jornalismo - era o diretor de redação da sucursal do Jornal do Brasil, em Brasília, subordinado ao jornalista Ricardo Noblat - "Tocávamos de ouvido", diz o hoje blogueiro de O Globo - e assumiu a Secretaria de Comunicação Social da prefeitura. Foi seu batismo no marketing político. Circulava na prefeitura o publicitário Duda Mendonça, que fizera a campanha de Kertész e continuava com a conta, administrada pelo secretário de Comunicação Social. Deram-se bem - mas cada um ficou cuidando da sua vida.

Santana voltou para o jornalismo, saiu e foi estudar um ano em Washington. Na volta, dirigiu a sucursal da revista IstoÉ, em Brasília, onde ganhou o Prêmio Esso de Reportagem em 1992, com os jornalistas Augusto Fonseca e Mino Pedrosa, pela reportagem "Eriberto, testemunha-chave", decisiva para o impeachment do presidente Fernando Collor. Depois da folga sabática, decidiu-se pelo marketing político. "Jornalismo não dá camisa a ninguém", dizia a quem perguntava se não voltaria às redações. Queria ganhar dinheiro. Aceitou um convite de Mendonça. Àquela altura, 1994, ele já conquistara a vitória do prefeito Maluf contra o petista Eduardo Suplicy, nas eleições de 1992, em São Paulo. Santana entrou na agência como contratado, depois virou sócio. Trabalhou, ilustre desconhecido, na campanha que elegeu Celso Pitta e em diversas outras, incluindo a segunda vitória de Antonio Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, em 2000. Santana a dirigiu, venceu e ganhou simpatia e confiança do quadro petista.

Lula já admirava Mendonça. Conheceram-se em 1994, pelas mãos do jornalista Ricardo Kotscho. Desde então, ficara no ar o desejo de trazer Mendonça para a campanha nacional. A preliminar com Palloci foi determinante para que isso acontecesse. No final de 2000, Mendonça e Santana jantaram na casa de Lula - presentes, ainda, Palocci e José Dirceu. "Naquele momento, havia um descrédito absoluto em relação à capacidade de vitória do Lula - até do próprio Lula. O Duda queria que o candidato fosse o Suplicy ou o Tarso Genro. Coordenei as pesquisas, quantis (quantitativas) e qualis (qualitativas), e os números deram Lula, claramente. O Duda não acreditou e pediu para repetir. Repeti, por amostragem, e veio uma onda gigantesca para o Lula. Fiz um diagnóstico, analisando esses números. Duda era visto como malufista, então fui eu que apresentei, primeiro ao Lula e à direção executiva, depois a uma reunião ampliada do Diretório Nacional, com uns 30 caciques do PT. Ficaram fascinados. Foi assim que a candidatura de Lula renasceu."
Lula ficou grato e convidou Santana para um bacalhau de botequim, só os dois, segundo o marqueteiro. "Uns e outros aí queriam me rifar - e você deu a pá de cal", disse Lula, segundo Santana. (Procurado por ÉPOCA, o ex-pre-sidente Lula não quis dar entrevista.) Começaram a trabalhar na pré-campanha de 2001. A estrela (e o patrão) era Duda - e Santana começou a se incomodar. Ozeas Duarte, então integrante do Diretório Nacional e coordenador de comunicação da campanha - há muito afastado do partido -, foi um dos que perceberam a chateação de Santana. Uma vez, quando Mendonça pensava, numa sala de porta fechada, com a luz vermelha acesa, para ninguém entrar, Santana o apontou e disse a Duarte, azedo: "Esse aí, se escrever mais de dez linhas, tem um curto-circuito".

Em 2001, quando a campanha de Lula começava a esquentar, a paciência de Santana transbordou. A última gota foi o livro que Mendonça escreveu, Casos & coisas. O já sócio Santana é citado seis vezes, de passagem, uma delas assim: "Com seu jeito calado e avesso a badalações, João é hoje um dos grandes nomes do marketing político brasileiro". O problema, na ótica de Santana, é que Mendonça chamava para si 99% do trabalho que todos faziam, incluindo as campanhas na Argentina, onde Mendonça mal pusera o pé.
Como já estava no limite, Santana teve outro zás-trás. Foi à casa de Mendonça e disse com todas as letras, sem maior alteração, que pularia fora, porque não aguentava mais trabalhar com ele. Mendonça ofereceu mais 11% de sociedade além dos 9% que o parceiro tinha. Santana ofendeu-se - e não voltou atrás. Disse a Mendonça que iria a São Paulo explicar a situação a Lula, sem criar problemas para a continuidade da campanha. Mendonça não acreditou. Foi exatamente o que Santana fez, sem choro, sem vela e sem retaliação. Mendonça chegou a oferecer até recompensa para quem o trouxesse de volta - US$ 10 mil mas logo desistiu.

Com Mônica de esteio, fundou a Pólis, arrebanhou uma parte dos clientes de Mendonça - principalmente os argentinos - e conseguiu outros, como o petista Delcídio Amaral, de Mato Grosso do Sul (eleito senador em 2002, numa campanha em que começou com 3%). Delcídio lembra uma noite fria, em que os dois tomavam uísque 12 anos e banho de piscina em sua casa de Campo Grande. "Ele nunca duvidou que eu fosse ganhar", diz. "João é um cara de convicções, que faz o marketing do bem, sem bruxaria e dossiês." O primeiro colo que Santana procurou depois do rompimento com Mendonça - tirante o de Mônica, sempiterno - foi do também ex-jornalista, marqueteiro e depois consultor de crises Mario Rosa, então parceiro de Mendonça. "Eram dois machos alfa, que não cabiam no mesmo bando", diz Rosa. "João estava sofrido, mas era um cara de Tucano, de farra, de energia vital." Poderiam ter sido sócios, meio a meio, mas Rosa achou que, tendo dispensado Mendonça, não seria com ele, ainda uma promessa, que Santana compartilharia o mando.

Santana remou seu barco e deu sorte nas pescarias, principalmente em águas platenses. Não fez um só movimento em direção ao presidente eleito, Lula, ou ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Passou 2003, 2004, e chegou 2005, com as CPIs, a denúncia do mensalão e a maior crise política do governo petista. O PT nacional chamara, para abafar o incêndio, o também ex-jornalista baiano e marqueteiro Edson Barbosa, o Edinho, dono da Link Propaganda, que hoje atende o governador Eduardo Campos (pois é...). São de Edinho os primeiros vídeos a estilizar o "nunca antes da história deste país", ladainha do ex-presidente Lula. Várias vezes eles estiveram em vias paralelas, em campanhas, Edinho antes, Santana depois. E assim também seria em 2005. "O João é pensamento crítico, comunicação coordenada", diz Edinho. "Tem um portfólio encantador - e não é um prestidigitador."

Em agosto de 2005, Santana estava em Córdoba, no maior frio. Viu, pela internet, o depoimento franco de Mendonça à CPI dos Correios. "Fiquei estarrecido. "O governo acabou, pensei." Dias depois, recebeu um telefonema do assessor do presidente, Gilberto Carvalho, hoje ministro da Secretaria-Geral da presidente Dilma. "O Lula quer saber se você pode vir a Brasília falar com ele", perguntou Gilberto Carvalho. "Foi o Palocci que falou com o Lula", disse Carvalho a ÉPOCA. "O João veio e provocou um impacto imediato, porque trouxe muita convicção de que era possível reverter a crise. Eu ficava desconfiado, porque confesso que não tinha muita certeza. Mas ele devolveu a confiança, fez o próprio Lula recobrar o ânimo, e acertou a mão." O que Santana trouxe de novidade, na leitura de Carvalho, foi a inclusão das conquistas sociais do governo numa narrativa publicitária audaciosa, com foco nas mídias regionais. Houve um momento difícil, diz ele: "Quando houve o escândalo dos aloprados e o Alckmin acabou indo para o segundo turno, o João ficou muito mal, completamente nocauteado, bem perdido. Aí, já foram o Lula e o Palocci que o reanimaram".
Lula reeleito, Santana levou para o governo o jornalista Franklin Martins. Para prestigiá-lo, pediu que Lula transformasse em Ministério a Secretaria de Comunicação Social. Martins aceitou. Hoje ex-ministro, ele faz parte da meia dúzia que a presidente consulta, e até convida para maiores responsabilidades. "Não somos divergentes, e sim complementares", diz Santana sobre Martins. "O João tem o toque de Midas eleitoral", diz Martins. "Desde o governo Lula, nós tocamos de ouvido."

"A selvagem da motocicleta" foi a primeira expressão de Santana quando entrou na conversa o passeio de moto que Dilma fizera, driblando a segurança, em agosto passado. "Achei sensacional, mas não tive nada a ver com isso. Se eu tivesse dado a ideia, ela não toparia. No íntimo, ela é isso, muito bem-humorada .

Os dois se conheceram quando Dilma era ministra - e Santana foi ao gabinete, com um funcionário da Pólis, ouvir uma explanação sobre um programa do governo que queria divulgar. Simpatizaram. Tiveram um atrito, no começo de 2010, quando a ministra já era o "poste" que ele precisava iluminar. "Aí a relação ficou péssima, tivemos discussões muito fortes. Foi assim durante sete meses, até maio de 2010. O Lula é que ajudava", diz. O pior dia foi durante um almoço na casa de Dilma. Santana leria uma proposta de roteiro para um primeiro programa de TV, em que ela começaria a aparecer mais. Estavam presentes os ex-ministros Palocci, Márcio Thomaz Bastos e José Dirceu, o então presidente do PT, Ricardo Berzoini, o assessor e hoje chefe do gabinete pessoal de Dilma, Giles Azevedo. Feita a leitura, Dilma não gostou. "Ela reclamou. Achou a presença dela muito light, disse que deveria ter maior protagonismo. Eu disse que o protagonismo tinha de ser gradativo, aos poucos. Fui sintético, mas muito deselegante. Tive de ser duro com ela. O Zé Dirceu até tomou um susto com a minha reação", diz Santana.

Ele não é de maiores detalhes sobre seu trabalho com Dilma. O programa Mais Médicos, como foi? "É claro que fui consultado, ajudei, embasado nas pesquisas, mas o Mais Médicos é uma decisão corajosa de Dilma Vana Rousseff, com o apoio fortíssimo do (ministro da Saúde, Alexandre) Padilha." Sobre o discurso de Dilma na ONU, contra a espionagem dos Estados Unidos, ele não quis dizer nada. Respondeu sobre o que ela fez na visita do papa - aquela extensa peroração sobre o governo. "Este não fui eu", diz. "E eu não iria naquela linha."

A segunda entrevista com Santana, no dia 10 de setembro, é no mesmo restaurante agradável, ao cair de uma tarde querendo esfriar. Santana pede um dry martini, seu drinque predileto, no limite de dois. Tem o cuidado de escolher o gim, no caso inglês, embora defenda que o melhor é uma marca russa. Elogia muito Euclides da Cunha e Os sertões, que afirma ter lido aos 12 anos e diz reler até hoje. "Tucano é no sertão de Canudos", diz. Lembra que o avô materno, Jonas, mulato de muita coragem, combateu Lampião na força policial. Comenta o filme Hannah Arendt, que diz tê-lo levado às lágrimas, discorre sobre seus autores prediletos no marketing político, entre eles o russo Serguei Tchakhotine, autor de A mistificação da massa pela propaganda política.

No restaurante, Santana pega uma folha de papel. Desenha um retângulo vertical em toda a metade esquerda, e quatro quadrados sobrepostos na metade direita. "Esse espaço de cá - o do retângulo - é 200% Dilma, preserva-díssimo. O de cá - os quadrados - tem um espaço muito pequeno para os três candidatos da oposição. Se tiver um quarto, porque eu acho que o Serra vai entrar, ainda é melhor para Dilma. Nenhum deles invadirá a área dela - muito menos Eduardo Campos. E acabou, não vou falar mais nada, a minha emoção é não falar.

A BÊNÇÃO, POETA - Toquinho


ROMANCE »Entre duas ilhas

Estado de Minas: 06/10/2013 



Tatiana Salem Levy é ficcionista e especialista em teoria literária contemporânea   (Alexandre Sant%u2019Ana/Divulgação)
Tatiana Salem Levy é ficcionista e especialista em teoria literária contemporânea
Uma francesa e um casal de gêmeos. A partir destes três personagens, a escritora Tatiana Salem Levy criou a história de Dois rios (Editora Record), que ganha debate e noite de lançamento amanhã, na Sala Juvenal Dias. A autora vem a Belo Horizonte participar do programa Nova Literatura Brasileira, do projeto Sempre um papo. Até o fim deste ano, serão 15 encontros com novos escritores, que vão conversar com o público sobre seu processo de criação.

Na obra, seu segundo romance, Tatiana fala do impulso amoroso e da espera romântica através dos personagens Marie-Ange, uma francesa que se envolve com dois irmãos. Joana, que vive no Rio de Janeiro e é refém da culpa, causada pelos laços rompidos com o irmão e pelo comportamento obsessivo da mãe; e Antônio, fotógrafo que, sem destino certo, está em Paris. O romance transita em duas ilhas: a Córsega, na França, e Ilha Grande, no litoral fluminense.

Doutora em estudos de literatura pela PUC-Rio, Tatiana tem um romance publicado, A chave de casa. Quando foi lançado, há seis anos, o livro de estreia, celebrado pela crítica, foi também editado em Portugal, França, Itália, Espanha e Turquia. Além dos livros já citados, ela é autora do ensaio A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze, o infantil Curupira Pirapora e coorganizadora de Primos: histórias da herança árabe e judaica.

Dois Rios
Debate e lançamento do livro de Tatiana Salem Levy. Amanhã, às 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3261-1501. Entrada franca.

O jornal de domingo - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 06/10/2013

Nunca este instante deste domingo, neste jornal de domingo existiu antes ou voltará a existir, ainda que o próximo possa ser bastante parecido


Domingão de sol ou de chuva, não sei, hoje é quinta-feira. Sei é que neste instante deste domingo, neste jornal de domingo sendo lido agora, neste instante, este instante é agora. Todo domingo, gostando-se ou não, é domingo. Nascem Domingas e Domenicos. Inevitável este instante deste domingo, agora. Cada palavra revelando-se nesta página deste jornal, deste domingo, neste instante deste domingo, sendo lida, agora, no instante em que está sendo lida, é esta palavra, neste instante. Nunca antes deste instante houve este instante deste domingo.

Domingo é dia de domingo, não há disfarce para este instante de agora deste domingo. O jornal de domingo não foi feito no domingo, mas é domingo quando, neste instante deste domingo, cada palavra é lida neste instante, nem antes nem depois do instante em que este domingo está sendo este domingo, agora. Domingas e Domenicos sendo velados. Nunca este instante deste domingo, neste jornal de domingo existiu antes ou voltará a existir, ainda que o próximo possa ser bastante parecido.

Enquanto está sendo lido o jornal de domingo deste domingo, neste instante de agora, este instante de agora está sendo este instante de agora. É domingo enquanto este instante de agora neste jornal de domingo está sendo este instante de agora deste domingo, enquanto Domingas e Domenicos estão sendo concebidos.

Cada palavra sendo lida neste jornal de domingo deste domingo, neste instante, agora, é lida enquanto este instante está sendo este instante. No instante de agora, este instante, neste instante, neste jornal de domingo, é o instante, neste instante.

A palavra sendo lida neste jornal de domingo, porque cada palavra só é palavra neste instante de agora em que está sendo lida, cada palavra lida neste jornal de domingo deste domingo, enquanto agora está sendo agora, irrecuperavelmente agora, cada palavra sendo lida agora neste instante, nesta contracapa do Segundo Caderno do jornal de domingo, só é palavra por estar sendo lida, agora.

É agora que este instante está sendo agora. Neste jornal de domingo deste domingo, este instante, no instante em que cada palavra é a palavra lida, e só assim ela é palavra, ela, a palavra é o instante de agora neste jornal de domingo, deste domingo. Amanhã, segunda-feira, o jornal de domingo não deixará de ser o jornal de domingo. Poderá ser o jornal de ontem, mas não escapará de ser jornal de domingo e é nesse escaninho dos acervos em que vai jazer. Os que escrevem para o jornal já vivem normalmente atormentados desde que Rubem Braga disparou “escrever para o jornal é como escrever na areia”. Imagina no domingo. Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite quando o jornal de domingo já está consumado. Como este instante, consumido, neste instante, agora. Há quem leia o jornal de domingo já no sábado, mas será este domingo neste instante, este, de agora, ainda que o jornal já esteja lido, o horóscopo dissecado, as palavras-cruzadas feitas. Nada se sabe do instante seguinte, a não ser que virá. E que já foi.

Nenhuma outra espécie de vida sobre o planeta está neste instante lendo o jornal de domingo porque para nenhuma outra espécie de vida sobre o planeta é domingo, ou deixa de ser. O jornal de domingo, neste instante sendo lido por um espécime da única espécie que lê o jornal de domingo, procurando por alguma coisa que não saberia nomear e que talvez seja por isso mesmo que procura a cada página, instante por instante. Um exemplar da espécie que está destruindo o até então único planeta que conhece bem e do qual necessita para sobreviver. Os golfinhos por exemplo, não leem os classificados do jornal de domingo, as crônicas mal traçadas ou o caderno de esportes, estão muito ocupados em ser golfinhos.

Todo mundo espera alguma coisa do jornal de domingo. Deste jornal de domingo, deste domingo, neste instante, de agora. Neste, este. Este.

MARTHA MEDEIROS - Tão óbvio

Zero Hora - 06/10/2013

Sempre tive mais tendência a simplificar do que complicar, mas agora isso se intensificou a ponto de eu começar a flertar com o budismo. Lendo alguns livros e assistindo palestras, tenho percebido como o caminho para ser feliz é óbvio eu mesma já fui acusada de escrever sobre coisas óbvias, e não tenho como me defender contra isso: escrevo obviedades, sem dúvida. Porém me pergunto, intrigada: por que as obviedades andam tão necessárias?

É que normalmente o óbvio fica soterrado sob camadas e mais camadas de auto boicotes: as pessoas se irritam por besteiras, fazem escolhas idiotas, brigam no trânsito, não se abrem sobre o que sentem, desperdiçam energia à toa, desrespeitam o coletivo e são refratárias a tudo que seja simples e fácil, já que a dor, a culpa e o ódio faz parecer que elas têm uma vida mais profunda.

Felicidade é algo que todos desejam e ao mesmo tempo renegam, já que não saberiam lidar com algo que lhes deixaria tão soltos e leves. Com péssimo ibope junto aos intelectuais, a felicidade (que nada tem a ver com bobice, mas com paz de espírito) ficou associada à superficialidade, enquanto que o sofrimento produz arte e filosofia.

Sob esse aspecto, óbvio que ser um deprimido é mais charmoso.

Pena que isso seja um estereótipo. Ora, filosofia busca a consciência, que é chave para a felicidade, e a arte faz um bem danado a mentes atormentadas, que através dela conseguem realizar catarses e se conectar com um mundo que lhes parece hostil. Ou seja, não importa quem ou de que forma, todos querem viver melhor, sem esquecer que esse “melhor” tem sentidos diversos para uns e para outros. Seja qual for o significado de “melhor” pra você, ele é a sua perseguição. Só que alguns escolhem vias cheias de obstáculos e acabam não aproveitando a viagem.

O bem-estar vem de onde? Óbvio: da convivência com amigos, de relações saudáveis, de não permitir que frustrações e ressentimentos virem a tônica da vida, de não reagir com exagero diante de insignificâncias, da valorização das miudezas grandiosas do cotidiano, de sentir-se disponível para o novo e o diferente a fim de enriquecer a própria existência, mantendo uma espiritualidade básica que envolva a generosidade, a compaixão, a tolerância (não é obrigatório ter religião pra isso). Mais: de aceitar as mudanças, de trocar de perspectiva quando se estiver obcecado com algo, de buscar a evolução da mente.

Inventei a pólvora? Estou dizendo alguma coisa que você já não esteja careca de saber? É tudo tão evidente, tão incontestável, que dá até sono. O que você ainda está fazendo lendo essa página? Acorde e vá pra rua.

Aí você sai e cruza com centenas de outros cidadãos para quem o óbvio é uma teoria sem aplicação prática, e que continuam encrencando-se de forma absurda, a fim de voltarem para casa estressados e sentindo-se vítimas do próprio destino. Charmosos, sem dúvida. Resta saber a que custo pessoal.

A classe média vai ao SUS em busca do paraíso‏

A classe média vai ao SUS em busca do paraíso Para realizar o sonho da maternidade, casais de maior poder aquisitivo têm cada vez mais procurado serviços de reprodução assistida como o do HC/UFMG. Na rede privada, tentativas custam até R$ 20 mil 

Valquiria Lopes

Estado de Minas: 06/10/2013


A unidade pública tem qualidade reconhecida, mas pacientes ainda arcam com custo de medicamentos (Jair Amaral/EM/D.A.Press )
A unidade pública tem qualidade reconhecida, mas pacientes ainda arcam com custo de medicamentos

Três anos de espera e uma tentativa sem sucesso estão sendo substituídos pela expectativa de que a cegonha chegue em breve à casa da médica Fernanda Gomes dos Reis, de 36 anos. Por lá, o clima é de torcida pelo sucesso da próxima fertilização in vitro, marcada para este mês no Hospital das Clínicas da UFMG, em Belo Horizonte. O preparo do quarto do bebê também é aguardado pela fisioterapeuta K.N.F.M, de 35. Ela acabou de ser chamada pelo HC para dar início ao processo de reprodução assistida, após três anos e meio na fila. Unidas a essas mulheres pelo sonho da maternidade, a consultora hospitalar Lisete Beatriz Nunes Bárbara, de 35, e a analista de recursos humanos Poliana Nara Moreira Castro, de 33, passarão por nova tentativa de engravidar. Em comum, Fernanda, K., Lisete e Poliana têm mais do que a vontade de ser mães. As quatro, com dificuldade para engravidar naturalmente, fazem parte de um grupo da classe média que trocou os tratamentos particulares de alto custo pela busca do sonho da maternidade na rede pública. Com os maridos, estão em uma fila de mais de 1,2 mil casais que aguardam o procedimento na única unidade do estado a oferecer a reprodução assistida gratuita. Para lidar com a espera, se apoiam no exemplo de quem percorreu todo o caminho com sucesso, como a assistente administrativa Fernanda Lemos, de 24, que comemora o sétimo mês de gravidez.

A inspiração é importante, principalmente porque as pacientes sabem que o tempo é o maior inimigo no processo, já que as chances de engravidar diminuem com a idade. Mas outro motivo que as encoraja é não se disporem mais a pagar os valores cobrados na rede particular. Nas poucas clínicas em Belo Horizonte que trabalham com reprodução humana assistida, o atendimento é imediato, mas os valores variam de R$ 15 mil a R$ 20 mil por tentativa de fertilização in vitro (veja características das técnicas na página 22), independentemente do sucesso.

O preço inclui gastos com medicação, cerca de 25% do total do tratamento. Mesmo na rede pública, os pacientes precisam arcar com o valor dos remédios, que custam de R$ 3 mil a  R$ 5 mil. “Estamos tentando engravidar há 10 anos. Nesse período, passamos por duas inseminações na rede particular e duas fertilizações in vitro e já investimos cerca de R$ 13 mil”, conta Lisete. A consultora reconhece a comodidade da rapidez nas clínicas privadas, mas diz que continuar o tratamento pago implicaria a venda de bens da família. “Teríamos que abrir mão de algumas conquistas e, por isso, preferimos aguardar na rede pública”, diz Lisete, que tem o aval do marido na decisão.

Antes de buscar o Hospital das Clínicas,  Poliana Castro também já tinha sentido nas finanças da família o custo do tratamento, gastando pelo menos R$ 15 mil na primeira tentativa de fertilização in vitro na rede particular. “Precisamos vender o carro, mas ter um filho é um sonho e, para isso, vale a pena”, diz Poliana. Além do fator financeiro, o marido dela, Rodney Passagli, de 37, lembra o desafio psicológico do processo. “O impacto emocional é muito grande, principalmente para a mulher. Parece que a vida da gente para por um tempo”, diz.

Como eles, há cerca de 2,5 mil casais inscritos para fecundação in vitro no Laboratório de Reprodução Humana Aroldo Fernando Camargos, do HC/UMFG. Destes, 1,3 mil já foram chamados. O restante espera uma vaga. Nesse universo, antes quase todo formado por casais de baixa renda, torna-se cada vez mais frequente a presença de pessoas com maior poder aquisitivo, como informa o subcoordenador da unidade, Francisco de Assis Nunes Pereira. “Há pacientes que relatam terem passado pela iniciativa privada e, diante da impossibilidade de continuar a pagar, se inscrevem na fila da rede pública”, explica. Na lista dessas novas pacientes, segundo ele, há advogadas, médicas, arquitetas, engenheiras, entre outras profissionais.

Uma delas é a fisioterapeuta K., de Itaúna, na Região Central de Minas. Com o marido, o empresário A., de 36 anos, ela já investiu cerca de R$ 10,5 mil na esperança de ouvir o chorinho de bebê em casa. Unidos há sete anos, desde 2008 eles tentam engravidar. Em uma clínica particular da capital, arcaram com os custos de dois procedimentos para reversão de vasectomia e uma inseminação artificial, mas não obtiveram sucesso. Depois de três anos na fila do HC, foram chamados na terça-feira para a primeira reunião sobre a técnica da fertilização in vitro.

O casal pretende fazer apenas uma tentativa no HC, por dois motivos: o estresse do processo e o custo da medicação. Pelo menos terão uma chance, já que não teriam condições de pagar pela fertilização na rede particular. “Se não tivéssemos a rede pública, já teríamos desistido. O tratamento é muito caro”, afirma K. Durante a conversa nos corredores do HC, o marido lembra que a irmã dele já gastou mais de R$ 50 mil com tentativas de engravidar. “Não temos condição de fazer o mesmo.”

No caso da médica Fernanda Gomes dos Reis, de 36, foi a certeza da qualidade do serviço na rede pública que pesou na decisão de entrar na fila do HC. Durante os três anos de espera, ela e o marido tentaram sem sucesso a gravidez natural. A médica já passou por uma fertilização in vitro no HC, que não foi bem-sucedida. Agora, prepara-se para implantar embriões que foram congelados na época da primeira intervenção. “Se não der certo, ainda tenho mais duas tentativas. Trabalho na saúde pública e conhecia um pouco do serviço e da qualidade. O fator financeiro também pesou na hora de fazer a escolha pelo HC, pois os valores cobrados nas clínicas particulares são muito elevados”, afirma a médica.
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Onde pousa a cegonha

Confira o passo a passo para ter acesso aos serviços de fertilização

NA REDE PÚBLICA DE BH

>> O casal que tem dificuldade para engravidar deve procurar o serviço público de saúde para se consultar. O primeiro passo é se dirigir ao posto de saúde de sua região
>> Constatada a infertilidade, é feito encaminhamento ao PAM Sagrada Família, onde o casal passa por exames e avaliação
>> No Laboratório de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas (HC) os candidatos fazem novos exames e dão início aos tratamentos
>> O protocolo de atendimento exige que seja cumpridas todas essas etapas. Não é possível recorrer diretamente ao HC
>> Apesar de o tratamento ser gratuito, os pacientes precisam bancar o custo da medicação, em torno de R$ 5 mil, por tentativa
>> A espera no HC dura até três anos

NA REDE PARTICULAR
>> A marcação é feita diretamente nas clínicas. O atendimento é pago e imediato

REPRODUÇÃO ASSISTIDA GRATUITA NO BRASIL

>> Hospital das Clínicas da UFMG, em Belo Horizonte
>> Hospital das Clínicas de São Paulo
>> Hospital Pérola Byington, em São Paulo
>> Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP)
>> Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre
>> Hospital das Clínicas de Porto Alegre
>> Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, em Recife
>> Maternidade Escola Januário Cicco, em Natal
>> Hospital Regional da Asa Sul (HRAS), em Brasília


O sonho não está na tabela 
Médico explica que filas enfrentadas no setor público pelos casais que querem engravidar se devem à falta de remuneração pelo SUS para procedimentos de reprodução assistidas

Valquiria Lopes




Reserva de recursos garante o trabalho da equipe do Laboratório do Hospital das Clínicas, mas escassez limita o atendimento (Jair Amaral/EM/D.A.Press )
Reserva de recursos garante o trabalho da equipe do Laboratório do Hospital das Clínicas, mas escassez limita o atendimento

É grande o abismo que separa o número de atendimentos de reprodução assistida nas redes pública e particular. Mesmo com cobrança de valores elevados, as cerca de 3 mil fertilizações in vitro pagas anualmente nas clínicas privadas superam em até 1.400% os 200 procedimentos feitos em média no serviço público a cada ano. A dificuldade de ampliar o atendimento gratuito ou de oferecer a medicação às pacientes vem da falta de recursos específicos para o programa, como explica o subcoordenador do Laboratório de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas, Francisco de Assis. Segundo ele, o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem em sua tabela a previsão de verbas para reprodução assistida. Todos o trabalho feito em nove hospitais universitários e maternidades no Brasil é custeado por uma reserva de recursos globais que são destinados às unidades pelo Ministério da Saúde.

“Se houvesse um código de pagamento para reprodução humana, assim como há para cirurgias, consultas e outros procedimentos, seria possível ampliar a oferta. Como o SUS não tem essa destinação específica, o serviço fica limitado”, explica o subcoordenador. Em 2011, a direção do HC encaminhou um projeto ao Ministério da Saúde pedindo a inclusão do tratamento na remuneração do setor púbico, mas ainda aguarda atendimento.

INVESTIMENTO Mesmo com a oferta do procedimento no serviço público, quem se submete ao período de dois a três anos de espera no HC precisa ter dinheiro em caixa. Para custear as injeções de hormônios que estimulam a ovulação e outros medicamentos, os casais precisam reservar entre R$ 3 mil e R$ 5 mil. “O valor é alto e afasta do tratamento quem não tem esse recurso”, diz a analista de recursos humanos Poliana Nara Moreira Castro, de 33 anos, que deixou a rede particular para tentar engravidar com o tratamento na rede pública.

O procedimento ainda mais caro no setor privado também afastou a assistente administrativa Fernanda Lemos das unidades particulares. Ela e o marido aguardaram por dois anos na fila do HC e hoje se preparam para receber o fruto da espera e do esforço. “Foram seis meses de tratamento e graças a Deus conseguimos na primeira tentativa”, diz o marido de Fernanda, Cláudio Lemos, de 48. Ela celebra a gravidez e diz que a filha é um presente muito esperado. Sobre a fertilização no HC, o casal só tem elogios. “Fomos muito bem tratados e toda a equipe é muito profissional”, atestam.

CUSTOS Apesar de serem considerados caros pela população, os preços da reprodução assistida na rede particular não são abusivos, de acordo com o médico Francisco de Assis, do HC. Ele explica que a rede pública é uma saída para quem não tem condições para arcar com todo o tratamento, mas que os valores nas clínicas privadas são justos.

A ginecologista Érica Becker, da clínica Pró-Criar Medicina Reprodutiva, explica as razões do custo elevado. “A reprodução assistida requer tecnologia de ponta, insumos e materiais caros e quase sempre importados, além de mão de obra especializada”, diz. Segundo ela, embora a formação de profissionais em reprodução humana esteja crescendo, a oferta de funcionários, incluindo médicos, biólogos e enfermeiros, entre outros, ainda é pequena.

Da experiência do dia a dia, a médica diz observar dois fluxos no atendimento. Um deles é o de casais que se cansam de esperar na fila do serviço público e, pela ansiedade em engravidar, pagam pelo tratamento particular. “Mas há também quem esgota as fontes de recurso e parte para o tratamento no serviço público.”

Uma alternativa encontrada pela clínica para ampliar o acesso ao tratamento foi a criação de um programa de descontos que leva em consideração a renda do casal. De acordo com o rendimento, eles podem ter até 50% de desconto no serviço de fertilização in vitro, que chega a custar R$ 15 mil. “O casal passa por uma avaliação socioeconômica detalhada e pode fazer o tratamento em até três meses”, afirma a médica. Atualmente, cerca de 13% dos atendimentos realizados pela clínica são feitos pelo programa, que teve início em 2007. Segundo ela, as taxas de sucesso de gravidez nos procedimentos chegam a 60% na faixa etária em torno dos 35 anos.

SEM PREVISÃO O Ministério da Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que em alguns serviços da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, o tratamento é totalmente oferecido pelo SUS, via financiamento das secretarias estaduais e municipais de Saúde, recursos de pesquisas e emendas parlamentares. O financiamento também pode vir do próprio recurso repassado aos hospitais.

Em outros serviços, somente parte do tratamento é oferecido pelo SUS. O ministério informou também que tem feito estudos sobre técnicas, insumos e medicamentos que devem ser incorporados ao sistema público, a fim de atender casos de infertilidade ou de doenças infectocontagiosas e genéticas. Mas ainda não há previsão de implantação.


HISTÓRIA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

25 de Julho – 1978 - Nasce em Manchester, na Inglaterra, Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo
1983 - Nasce o primeiro bebê de proveta no Brasil. Foi o primeiro nascimento usando óvulos doados
1984 - Nasce, na Austrália, o primeiro bebê após descongelamento de embrião
1987- Primeiro nascimento após o uso de óvulo congelado
1989 - Nasce o primeiro bebê de proveta de Minas Gerais
1993 - Primeira fertilização pela técnica de  injeção intracitoplasmática de espermatozóides
2003 - Nasce o primeiro bebê pela técnica de útero de substituição (popularmente conhecida como barriga de aluguel) em Minas Gerais
2004/Maio - Avó dá à luz pela técnica de útero de substituição em Minas Gerais
2008/Maio - Primeiro nascimento (gêmeos) com óvulos congelados em Minas Gerais
Fonte: Clínica Pró-Criare Reprodução Assistida

TIRA-DÚVIDAS
O que é infertilidade?
>> Incapacidade de engravidar após pelo menos um ano de tentativas, sem o uso de métodos contraceptivos e com atividade sexual regular (pelo menos duas relações sexuais por semana com intervalo de 2 a 3 dias). Há casais que não têm dificuldades em engravidar, mas apresentam perdas recorrentes do bebê.

Qual é a taxa de infertilidade entre a população brasileira?
>> Normalmente, 85% dos casais alcançam uma gravidez após um ano e meio de tentativa (12 a 18 meses) sem uso de métodos contraceptivos. Após esse período, 15% dos casais precisam de assistência médica especializada.

Qual é a parcela dos fatores masculino e feminino para infertilidade?
>> A mulher contribui com 40% das causas e o homem é responsável por outros 40%. Os 20% restantes têm origens mistas. 

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Amadurecendo com as pedras‏

Estado de MInas: 06/10/2013 



Do lado de fora da casa, umas pedras. Muitas pedras. E de muitos tamanhos. Estamos chegando à casa-ateliê de um escultor. Há também flores. Pedras e flores. E o amor-perfeito, que floresce bem no inverno aqui em Bento Gonçalves. Entramos nessa casa (fora da cidade) e damos de cara com um estúdio onde estão expostas obras de Bez Batti. Os amigos o chamam de João, seu primeiro nome.

Cabelos brancos, simples. Dizem que foi carteiro. Conheciam-no apenas como o carteiro João. Mas era um condenado à arte. As pedras o olhavam. Ele olhava as pedras. Havia uma tensão amorosa entre eles. Um dia se encontrariam como a pedra e a água que se moldam na correnteza do rio.

Ontem ele esteve ao meu lado, calado, assistindo à abertura do Festival Internacional de Poesia (em que homenagearam Marina Colasanti). As coisas sucediam no palco, poetas, atores e mímicos se apresentavam e ele estava ali ao meu lado, mas eu não conhecia suas obras. Erro meu. Tenho errado muito com meus desconhecimentos.

Agora em sua casa/ateliê, constato: é um escultor visceral. E modesto. Trabalha no duro, sobre o dificílimo, nesta pedra chamada basalto de cor escura, na verdade quase intrabalhável. Ele diz que os egípcios esculpiam essa pedra enquanto os gregos preferiam o mármore. Mas o mármore é frágil, as esculturas gregas têm marcas dessa destruição temporal.

Andando por seu ateliê vendo a transformação que opera sobre a matéria bruta, falamos sobre arte. Surpreendo-me: vejo sobre a mesa o exemplar do O enigma vazio, que furtivamente autografo para ele. Guimarães Rosa dizia aquela frase (que o Israel Vargas colocou em sua tese sobre física nuclear: “Quem mói no aspr’o não fantaseia”). A frase tem sabedoria, mas, tirada do contexto, pode ser contestada: o escultor que trabalha no “aspr’ o” também “ fantaseia” que nem o poeta.

E Bez Batti, desanimado diante do que apresentam como arte nas galerias e bienais, me pergunta:

– Você acha que ainda pode haver um novo Renascimento?

Questão prenhe de dilacerações. Como seria bom que as artes conhecessem novo florescimento! Como seria bom que saíssemos desse “nonada” em que as artes se meteram no século 20 e redescobríssemos o passado, como fizeram os mestres do Renascimento!

Bez Batti ama Matisse. Também acha que Picasso pilhava obras alheias. Lembrei-me daquela frase de Picasso: “Não procuro, acho”. Claro, ele via o que Matisse, Juan Griz e Cézanne estavam fazendo e fazia sua “releitura”. Com talento, claro.

O que um poeta pode aprender com um escultor? Quais as lições da pedra?

Um dia, junto com Rubem Braga, visitei o ateliê do escultor gaúcho Francisco Stockinger. E esse disse uma coisa que gravei: as pedras amadurecem. Há pedras verdes e maduras. O problema é que temos pouco tempo de vida para ver as transformações milenares da pedra. Uma vez, no Deserto do Atacama, no Chile, contemplei abismado as pedras que ali estavam amadurecendo há milhões de anos. Quando eu desaparecer, elas continuarão sua intemporal trajetória.

Bez Batti nos mostra algo assombroso. Uma pedra de milhões de anos que tem dentro de si uma poça d’água. Exatamente. Por sortilégios vários a água filtrou-se pedra adentro e ficou ali retida. Assombroso: uma pedra com água dentro. A água se move atrás da superfície polida da pedra. Há milhões e milhões de anos. O líquido e o sólido num só corpo.

Olho aquilo. Tomo a pedra com água dentro em minhas mãos. É metáfora viva, a convivência dos opostos e dos elementos complementares. A pedra tem lições a dar mesmo nos desertos. A água nos dá sempre lições de vida, com seus ventos e tormentos. E prossegue nos esculpindo.

Novos brasilianistas‏ - Ana Clara Brant

Muda o perfil dos especialistas no exterior. Em lugar dos típicos gringos, surgem brasileiros que se dedicam a temas variados, de Machado de Assis ao tropicalismo, passando pelo MST



Ana Clara Brant


Estado de Minas: 06/10/2013 



João Cezar de Castro Rocha fez mapeamento inédito dos brasilianistas brasileiros que estudam a literatura nacional (Rogério B. Huss/FLIP)
João Cezar de Castro Rocha fez mapeamento inédito dos brasilianistas brasileiros que estudam a literatura nacional


O termo brasilianista costumava se referir ao estrangeiro que estuda o Brasil ou é especializado no país. De uns anos para cá, o perfil desse profissional mudou, o que torna necessário rever a expressão. “Foi-se o tempo em que o estudioso/historiador era aquele típico gringo, a grande maioria norte-americanos, sem domínio total da nossa língua. Nos anos 1970 e 1980, a proporção de estrangeiros que estudavam nosso país era de 95%. Justamente por isso, implicava um olhar até exótico sobre o Brasil. Hoje, há uma novidade: o crescimento considerável de brasileiros radicados no exterior que se interessam pela terra de origem”, avisa o professor associado de literatura comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha.

Ele realizou diagnóstico atual da pesquisa em literatura brasileira produzida em universidades no exterior e conseguiu um mapeamento inédito dos chamados brasilianistas brasileiros que estudam nossa literatura.

Boa parte desses pesquisadores se constitui naqueles que foram fazer mestrado ou doutorado fora e por lá ficaram, sobretudo nos Estados Unidos, país com extenso número de universidades, bibliotecas e melhores condições financeiras. “Os laços entre instituições norte-americanas e a academia brasileira se estreitaram muito nos últimos anos. Há uma noção melhor no estrangeiro sobre a qualidade do pensamento e da pesquisa no Brasil. Por um lado, isso é reflexo da maior circulação de brasileiros no exterior. Por outro, cria-se círculo virtuoso: mais conhecimento sobre o Brasil produz mais curiosidade e interesse também”, opina o carioca Bruno Carvalho, professor assistente no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton. Ele está escrevendo livro que relaciona as Minas Gerais de Cláudio Manuel da Costa e a Virginia de Thomas Jefferson.

Autocentrado

Há anos em território norte-americano, onde é professora de literatura brasileira na Universidade de Stanford, na Califórnia, a paulista Marilia Librandi Rocha nota que há sim um crescimento da presença brasileira no câmpus onde trabalha, seja de colegas professores visitantes, de alunos de pós-graduação ou da graduação. No entanto, segundo ela, a maioria fica curto período de tempo. “E o Brasil pode ser tema de seus estudos ou não. Só o fato de sair do Brasil e desenvolver sua pesquisa (sobre qualquer tema, nacional ou não) faz muito bem para a internacionalização do país, em geral muito autocentrado”, diz. Marilia, que no momento prepara o livro Escritas de ouvido, sobre a prosa de ficção moderna brasileira, de Machado de Assis a Hilda Hilst, revela que não se vê necessariamente como brasilianista.

“Fora do Brasil, é útil ser reconhecida assim, pois na função de professores nativos somos chamados a representar o país, um pouco como embaixadores culturais. Ao mesmo tempo, somos levados também a vincular os estudos sobre o Brasil ao mundo exterior, sobretudo a América hispânica, aos países lusófonos e também, claro, aos Estados Unidos, Europa e outros continentes”, acrescenta.

Esforço enriquecedor

Mineiro de Belo Horizonte, Gustavo Furtado é professor de estudos luso-brasileiros na Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA). Foi para lá como imigrante, em 1994, e só depois de legalizado formou-se e conseguiu bolsas de estudo. Gustavo, que se interessa bastante pela produção audiovisual brasileira, admite que, a princípio, o termo brasilianista o incomodou. Mas de qualquer forma, segundo o professor, na prática, o termo designa um papel pedagógico na universidade americana.

 “O fato é que, como pesquisadores, temos áreas de conhecimento e interesse bem específicas, assim como os professores universitários no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Mas como professores temos que fazer uma performance mais ampla e complexa – até porque, se não o fizéssemos, não teríamos alunos. Um especialista na narrativa contemporânea acaba tendo que ensinar cursos sobre Machado de Assis ou sobre o cinema novo, por exemplo. Isso reflete o fato de que muitos departamentos de romance languages and literatures ou romance studies (que combinam estudos de literatura e cultura nas línguas latinas) têm só um ou dois brasilianistas, que naturalmente têm que oferecer ampla grade de cursos”, analisa. Gustavo acrescenta que isso acaba implicando grande esforço, especialmente no começo da carreira acadêmica, mas é também experiência enriquecedora. “Enfim, ainda que eu veja o termo com certa distância irônica, o brasilianismo é a realidade da distribuição de trabalho na universidade norte-americana”, conclui.

Outro brasileiro radicado nos EUA é o carioca Pedro Rabelo Erber. Professor assistente de estudos brasileiros na Universidade de Cornell, em Ithaca, Nova York, ele também vê um aumento de compatriotas lecionando temas relacionados ao Brasil em universidades norte-americanas. Com relação ao termo brasilianista, acredita que, no contexto institucional em que está inserido, desempenha sim este papel, o que, de acordo com o professor, inclui não só o ensino de literatura, história, arte e política brasileiras, como a administração do currículo universitário relacionado ao Brasil no nível interdepartamental.

Armadilha

Curioso é que o escopo de interesses desses pesquisadores é bem diversificado. Passa por Machado de Assis, literatura indígena, cinema marginal, arte contemporânea, MST, tropicalismo, cinema novo e até poesia concreta. “Acho que o traço comum mais forte entre nós é termos um pé em cada hemisfério do continente intelectual americano, participarmos ao mesmo tempo do debate acadêmico no Brasil e nos Estados Unidos”, acrescenta Pedro Erber. Para ele, há vantagens e desvantagens em ser brasilianista brasileiro e elas se equilibram. Se por um lado a facilidade com o português ajuda, em contrapartida o pesquisador brasileiro tem que chegar a um nível de proficiência na língua estrangeira em que trabalha que também requer muito esforço.

“Um dos desafios é não sucumbir à tentação de se colocar no papel de informante nativo, de ‘explicar o Brasil’ aos estrangeiros. É uma expectativa recorrente na universidade americana, que é preciso frustrar. Pois é também uma armadilha. É importante se posicionar em relação a temas brasileiros como pesquisador e não como brasileiro. Nesse sentido, o próprio aspecto contraditório da ideia do brasilianista brasileiro torna-se produtivo, pois recorda essa tensão entre o sujeito e o objeto da pesquisa”, explica.

Dimensão plural


A maioria dos especialistas está nos Estados Unidos, mas a Europa também concentra parte significativa deles, principalmente França, Alemanha e Inglaterra. Professor de literatura brasileira no Departamento de Estudos Lusófonos da Universidade Paris-Sorbonne, o paulistano Leonardo Tonus revela que não há uma semana em que não se fale do Brasil na França, e que, além do boom econômico dos últimos anos, os grandes eventos culturais, esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e o trabalho que a Embaixada Brasileira vem promovendo no país contribuíram para toda essa visibilidade e interesse.

Leonardo lembra também que a facilidade de intercâmbios e o encurtamento das distâncias ampliaram o fluxo de pesquisadores tupiniquins na Europa. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, a coisa por lá é mais complexa. “A chegada de um brasileiro a uma universidade europeia não é simples. Ele precisa dominar perfeitamente o idioma, tem que se integrar na comunidade; há vários crivos. As exigências são maiores. Em todo caso, acho muito interessante ser esse brasileiro com olhar externo. Acho que o deslocamento geográfico ajuda a ter outra percepção. Talvez seja até o nosso diferencial”, frisa Leonardo, responsável também pelo blog de estudos lusófonos etudeslusophonesparis4.blogspot.com.br.

Vivendo na Dinamarca há cinco anos, onde a comunidade brasileira não é grande mas significativa, o professor associado de estudos brasileiros na Universidade de Aarhus, o carioca (de família de mineira) Vinicius de Carvalho considera desafiador e ao mesmo tempo motivador ser brasilianista naquele país. “O que acho interessante é que, de uma perspectiva das ciências sociais, vamos alargando os horizontes de estudar o Brasil para outras áreas das ciências humanas. Com isso, a definição do termo brasilianista também vem se alargando e dando dimensão muito plural a esse grupo de estudiosos”, pontua Vinicius, que é diretor e coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Aarhus, que foca na formação de profissionais que sejam mediadores entre o Brasil e a Dinamarca.

Palavra de especialista

Joâo Cezar de castro Rocha
Professor associado de literatura comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Evasão de cérebros

“Pela primeira vez, foi feito levantamento de estudos da literatura brasileira no exterior e conseguimos mapear quem são esses estudiosos. Chamou a atenção que a maioria deles nasceu no Brasil. Além da formação e da perspectiva brasileira, por circunstâncias de vida, eles foram morar no exterior. Boa parte também está frequentemente no Brasil e tem controle absoluto do nosso cotidiano. Até porque hoje há facilidade maior nesse sentido. Não há mais essa imensa distância, essa nostalgia. Essa evasão de cérebros sempre existiu. Muitos dos principais intelectuais europeus foram para os Estados Unidos. Mas, no passado, eram os grandes nomes, aqueles com carreira já feita, como Adorno, Hannah Arendt e Horkheimer. Nos últimos 20 anos, surgiu uma possibilidade nova e aumentou significativamente o número de pesquisadores que começam a carreira justamente no exterior.

E isso não ocorre só com os brasileiros; é um fenômeno global. Hoje, temos completa solidez das instituições acadêmicas, a facilidade para viagens, pessoas que transitam com grande fluência em vários idiomas. E isso implica um outro tipo de relacionamento. Mais do que um olhar exótico, esses estudiosos permitem reatar um elo inesperado de continuidade com a lírica do exílio. Boa parte da cultura brasileira foi pensada no exterior, seja com Gonçalves Dias, seja com Gilberto Freyre, seja com Sérgio Buarque de Hollanda, que estavam todos fora. Há uma longa tradição de se pensar o Brasil à distância. E esses novos ‘brasilianistas’ são uma força importante de renovação do nosso pensamento sobre a literatura. Não estão presos a grupos, panelinhas e, justamente por conta da distância, têm maior independência e autonomia.”

Crise alérgica domada - Bruna Sensêve

Técnica aperfeiçoada em hospital da USP cura 90% dos casos de alergia alimentar com doses graduais dos produtos que provocam o sistema imunológico. Isso é feito até que se crie resistência total a eles


Bruna Sensêve

Estado de Minas: 06/10/2013 



A analista Andrea Fernanda não optou por fazer tratamento. Ela preferiu tirar o camarão de sua dieta (Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press    )
A analista Andrea Fernanda não optou por fazer tratamento. Ela preferiu tirar o camarão de sua dieta


No início dos anos 2000, Márcia* era o caso que mais intrigava a alergologista Ariana Campos Yang, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Quase que semanalmente, a paciente sofria um choque anafilático que a levava para a unidade de tratamento intensivo (UTI). Bastava o cheiro do agente causador da alergia: o ovo. Márcia não saía de casa. E onde morava ninguém podia ingerir o alimento tão comum nas receitas brasileiras. Ariana Yang pesquisou bibliografia especializada e encontrou um trabalho italiano que poderia ajudar sua paciente. “Na época, ela tinha 25 anos. Hoje, perto dos 40, come tudo, inclusive ovos”, comemora. O sucesso da dessensibilização alimentar levou a terapia a outros cantos do país e rende uma lista de espera de cerca de um ano e meio.

A primeira tentativa de “curar” pessoas com alergias alimentares severas se deu há cerca de 100 anos e seguia o princípio das vacinas: aplicar doses menores e intravenosas do agente causador do problema. A reação no organismo dos voluntários foi dramática e a ideia, abandonada pela comunidade médica por um longo período. A questão virou quase um tabu. Ninguém mais falava em fazer vacina para rinite ou asma e nem sequer era cogitada a busca por terapias para a alergia alimentar. “Até que surgiu esse novo trabalho em 1984 de um grupo de pesquisadores italianos com uma eficácia de 73% nos pacientes tratados”, conta Ariana.

A alergologista pondera que a metodologia não era a mais confiável pelo fato de não usar um grupo controle, isto é, um número de pacientes não submetidos ao tratamento para que resultados fossem comparados. “Cientificamente, ainda era preciso comprovar que o resultado animador não era aleatório.” A técnica evoluiu. A principal mudança é que o paciente não precisa de internação e pode seguir a vida normalmente depois das sessões terapêuticas. “Temos outras alterações com relação à sequência e o número de doses. Hoje, são vários grupos que fazem o procedimento, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Bauru (SP). A técnica ainda não está disseminada, mas está sendo difundida pelo Brasil”, comemora a médica. 

O tratamento consiste em 12 a 15 sessões de imunoterapia oral, quando são ministradas doses crescentes de um extrato do agente causador da alergia. Inicialmente, é pesquisado um histórico clínico com exames que possam garantir que o paciente permanece alérgico. “Alguns alérgicos estão sob restrição há tanto tempo, às vezes desde bebê, que a alergia até sarou e a pessoa não percebeu”, explica Ariana. Com a confirmação, um teste alérgico cutâneo busca a concentração tolerada do alimento. A partir desse limiar, é produzido o extrato diluído do alérgeno e a concentração dele vai aumentando a cada sessão até que o paciente aceite a quantidade total.

“A maioria tem reação durante o tratamento mesmo quando, de tão diluído o alérgeno, a pessoa está quase tomando água. Por isso é muito importante não fazer esse processo sem o acompanhamento médico”, alerta a alergologista, ressaltando que o tratamento somente é indicado para pacientes com mais de 5 anos de idade e que tiveram o diagnóstico da alergia persistente, chamada de IgE. Esse tipo mais grave refere-se a reações danosas, algumas vezes fatais, causadas pelo sistema imunológico. O critério é extremamente importante porque alergias a alimentos comuns tendem a ser predominantes no primeiros meses de vida. Com o passar dos meses, no máximo anos, o próprio corpo desenvolve a tolerância necessária.

Esse foi o caso da filha da servidora pública Vanessa de Almeida, 29 anos. A pequena Júlia, hoje com 2 anos e 9 meses, teve severas reações gastrointestinais a partir do quarto dia de vida. A busca foi grande em torno do agente causador do sangramento nas fezes da recém-nascida, mas a descoberta da alergia à proteína do leite de vaca (APLV) se deu aos 4 meses de idade. O gastropediatra indicou um leite específico e suspendeu todos os alimentos que tivessem qualquer traço de leite tanto para a mãe quanto para o bebê.

“Toda vez que ela era exposta, passava mal. Até o arroz com qualquer ingrediente que fosse passado na manteiga. No caso da Júlia, ela associou o ato de mamar com a dor e, como a alimentação dela era basicamente de leite materno, quis parar de comer”, relata Vanessa. As restrições foram mantidas até 1 ano e meio, quando o alimento voltou à dieta da criança. “Percebemos que ela continuou com a sensibilidade de uma forma mais leve. Hoje, ela está ótima e come de tudo.”
De adulto Diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia – seção Distrito Federal, Fernanda Marcelino afirma que esse tipo de sensibilidade não é comum em adultos. Normalmente, as alergias nos mais velhos estão ligadas a alimentos fáceis de serem evitados, como o camarão, amendoim, castanhas e frutos do mar. “A pessoa que tem alergia alimentar recebe orientação de exclusão do produto da dieta. Fazemos uma orientação e um plano de ação para o paciente no caso de uma exposição acidental”, detalha. 

Essa é a rotina da analista de relações internacionais Andrea Fernanda Britto, de 25 anos. Desde que teve a primeira crise alérgica ao camarão, aos 8 anos, ela quer distância do crustáceo. “Minha voz começou a sumir, a garganta fechou e meus pais se desesperaram. Não deu tempo nem de ir ao hospital. Fomos à farmácia mais próxima onde tomei um antialérgico”, conta. Outra ingestão acidental foi aos 10 anos e nunca mais. Andrea preferiu excluir o camarão do cardápio. “Não tentei fazer tratamento, aprendi a conviver bem com isso, mas lembro que o gosto era muito bom.”

Os alérgenos passíveis à terapia de dessensibilização precisam estar presentes no dia a dia do paciente. No caso do brasileiro, são basicamente o leite, os ovos, o trigo e a soja. Isso porque é preciso que o organismo mantenha uma memória imunológica. O sistema imune é regulado pela presença do antígeno, da molécula causadora da alergia no corpo. Se o paciente não tem contato com ela, é como se perdesse o aprendizado de tolerância ao antígeno, o que pode fazer com que a alergia volte.


* Nome fictício a pedido da médica