domingo, 28 de abril de 2013

Quadrinhos

folha de são paulo

PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE
dik browne

"Mudança", do chinês Mo Yan, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2012

folha de são paulo

IMAGINAÇÃO

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Mudança
O que quero narrar deve ter acontecido depois de 1979, mas o fio do meu pensamento teima em ignorar esse limite e volta àquele outono de 1969, com seu sol radiante, seus crisântemos dourados e seus gansos migrando para o sul. Nesse ponto, já não me distingo de minha lembrança. Meu pensamento, ou aquele eu que fui um dia, um menino solitário expulso da escola, mas ainda atraído pelo vozerio que vinha lá de dentro, esgueira-se tímido pelo portão sem vigia, atravessa um corredor comprido e escuro e alcança um pátio escolar rodeado de construções. À esquerda ergue-se um poste de madeira tendo no topo uma trave amarrada com arame, de onde pende um sino enferrujado. À direita, uma mesa rústica de pingue-pongue, feita de tijolo e cimento. Em torno dela, uma multidão assiste a uma partida entre duas pessoas. O vozerio vem daqui. A Escola Rural está em férias de outono; na torcida que cerca a mesa, os professores são maioria e bem poucas as meninas bonitas. Elas são as competidoras que a escola vem preparando especialmente para o campeonato distrital que vai acontecer no Aniversário da Revolução. Em vez de aproveitar as férias, elas são obrigadas a treinar na escola. Filhas de funcionários da Fazenda Estatal, são meninas bem alimentadas e, por isso mesmo, bem desenvolvidas, donas de uma pele de porcelana. Vêm de famílias ricas, usam roupas coloridas, e só de olhar já dá para saber que não pertencem a nossa ralé. Babávamos por elas, que nem se dignavam a lançar um olhar em nossa direção. Um dos jogadores é o professor de matemática, Liu Tianguang. Ele é baixinho e tem uma boca enorme. Dizem que consegue abocanhar o próprio punho, mas ele nunca demonstrou essa sua especialidade na nossa frente. Volta e meia passa pela minha cabeça a visão dele bocejando em sala de aula. Aquela boca escancarada era um verdadeiro espetáculo. Ele tinha o apelido de "Hema", que quer dizer "hipopótamo". Não fazíamos ideia de que animal era aquele, sabíamos era do sapo, que chamamos hama, também dotado de uma bocarra considerável. Como hema e hama têm pronúncia parecida, Liu Hema obviamente passou a ser chamado de Liu Hama, ou Liu Sapo. Nem tinha sido invenção minha, mas depois de investigarem a torto e a direito, acabaram concluindo que o culpado era eu. Liu Sapo era filho de mártir, e ainda por cima vice-diretor do Comitê Revolucionário Escolar, era óbvio que botar apelido nele consistia ofensa grave. Acabar expulso da escola e enxotado portão afora foram meros desdobramentos inevitáveis.

Desde pequeno sou atrevido, desde pequeno sou desastrado, desde pequeno sou mestre em arranjar sarna para me coçar. Muitas vezes eu só queria puxar o saco do professor, mas ele logo imaginava que ali tinha armadilha. Minha mãe suspirava: "Ai, filho, você é uma coruja de bom agouro, não faz jus à fama". Só que nunca ninguém me relacionou a coisas boas, toda coisa ruim era sempre eu que fazia. Muita gente achava que eu tinha um parafuso a menos, que era um cabeça-dura e que odiava a escola e os professores. Total equívoco. Na verdade eu nutria um sentimento profundo por minha escola, em especial pelo professor Boca Grande. Porque eu também era um menino de boca grande. O menino em meu conto "Boca grande" foi inspirado em mim. O professor Liu Boca Grande e eu estávamos, na verdade, unidos pelo infortúnio. Devíamos ter mais compaixão um pelo outro. Bem diz o ditado: quem sofre a mesma doença, sente a mesma dor. Eu poderia inventar um apelido para qualquer pessoa, menos para nele. Isso era óbvio, só que o professor Liu não se deu conta. Puxou-me pelo cabelo até a sala dele e me deu um chute que me fez cair no chão. Então disse o seguinte:

-- Você"¦ você"¦ nunca se olhou no espelho? Nunca viu essa sua boquinha de cereja, nem mesmo refletida na poça do seu próprio mijo? Tentei me explicar, mas ele não quis saber. E assim um menino que tinha especial afeição pelo professor Liu Boca Grande --eu, Mo Boca Grande-- foi expulso da escola. Só que meu atrevimento era tamanho que, mesmo depois de ter minha expulsão anunciada diante de todo o corpo docente e discente, eu continuava amando a escola como se nada tivesse acontecido. Todo dia andava até lá de mochila nas costas para achar um jeito de entrar sem que ninguém percebesse. No começo o professor Liu me mandava embora; quando eu não obedecia, ele me pegava pela orelha ou pelo cabelo e me arrastava para fora. Mas nem bem ele voltava para sua sala eu já estava outra vez lá dentro. Depois ele encarregou uns alunos grandalhões de me enxotar; quando eu resistia, eles me pegavam pelos braços e pelas pernas e me jogavam na rua. Nem bem eles voltavam para suas carteiras eu já reaparecia do lado de dentro. Colava-me a um canto do muro, o corpo todo encolhido, em parte para não ser notado, em parte para despertar compaixão. Dali eu assistia às brincadeiras das outras crianças durante o recreio e ouvia o burburinho que faziam. O que eu mais gostava de ver era o pingue-pongue, ficava fascinado, muitas vezes meus olhos se enchiam de lágrimas e eu mordia o punho. Depois, eles desistiram de me pôr para fora.

SOBRE O TEXTO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos editoriais do ano traz trecho da novela autobiográfica "Mudança", do chinês Mo Yan, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2012. Ao contar sua história, Mo Yan retrata uma China em plena transformação na segunda metade do século 20. O livro sai em junho, pela Cosac Naify.

A fita 36 - Paulo Sacramento

folha de são paulo

ESPECIAL PARA A FOLHA

No final de 2001 me vi diante de imenso desafio: montar o recém-filmado longa "O Prisioneiro da Grade de Ferro". À minha frente estavam mais de 170 horas de um material intenso e selvagem captado na Casa de Detenção de São Paulo por uma equipe mista composta de detentos e profissionais de cinema, sob minha coordenação.
Por conta da limitação de espaço no HD da ilha de edição (mal entrávamos no mundo dos gigabytes), foi necessário seguir uma lógica matemática extremamente rígida no início do trabalho: a cada fita contendo uma hora de material bruto eu deveria dispensar, já na primeira visão, 80% das imagens captadas. Do contrário, o equipamento não comportaria as dimensões do projeto.
Assim trabalhei até me deparar com a fita 36. O curso básico de linguagem audiovisual que fora oferecido por nós aos detentos já havia terminado e eles partiam da fase teórica para a prática, com o intuito de extrair do seu cotidiano uma resposta contundente à superficialidade com que a mídia os retratava.
Reprodução
Cena da fita 36, captada pelo cineasta Aloysio Raulino para o documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro"
Cena da fita 36, captada pelo cineasta Aloysio Raulino para o documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro"
Uma mudança também se operava em nossa equipe técnica. A fotografia do filme estava sendo assumida por Aloysio Raulino, cineasta de grande experiência, responsável por uma inflexão político-poética radical em nossa produção documental nos anos 60 e 70. Ele foi meu professor na ECA/USP, mas será que conseguiríamos trabalhar em sintonia, tal a diferença geracional que havia entre nós?
A resposta começaria a se esboçar desde a primeira fita que Aloysio registrou para o filme, a de número 36. Pedi a ele que filmasse, sem qualquer interferência, um prédio praticamente abandonado a que chamavam de hospital --o pavilhão 4. Após esse dia de trabalho solitário ele integrou-se à nossa equipe e enfrentamos juntos mais seis meses de filmagens, no qual aliás aprendemos muito mais do que ensinamos aos presos.
De volta à ilha de edição e à fita 36, um problema se impunha. Seu conteúdo era tão lindo e triste que eu não tinha como selecionar dez minutos e dispensar o restante. Decidi pular aquela fita, seguir limpando o material para voltar a ela mais à frente, quando o filme estivesse mais estruturado.
O tempo foi passando e a montagem, realizada em íntima parceria com Idê Lacreta, se estendeu por longos 17 meses. Por fim chegamos ao formato final de 123 minutos com o qual o filme foi finalizado.
Durante sua primeira exibição pública, súbito me caiu a ficha: e a fita 36? Aquela que havia se tornado praticamente mítica para mim, em que a crueldade transpirava beleza e poesia, havíamos esquecido de utilizá-la no filme... Então compreendi sua força e seu diferencial.
Muito mais que a revelação de uma intocada e crua realidade, o essencial ali era a visão particular, sensível e não distanciada dessa mesma realidade. E isto também estava registrado em todo o material que fizemos juntos dali em diante. Com seu talento, experiência e mais do que tudo, humanismo, Raulino contaminou a todos, transformando radicalmente o filme a partir de sua chegada. Irmanados, realizamos um filme em que não é possível diferenciar o material filmado pelos presos das imagens captadas por nossa equipe. Enfim, um filme feito com os detentos, e não sobre eles.
Tive muita sorte de encontrar dentro e fora da prisão parceiros que se revelaram inestimáveis para realizar um projeto que muitos julgavam impossível. Para além do filme, sedimentei nesse tempo algumas das minhas mais sólidas amizades. E ganhei um irmão mais velho, do qual nunca mais me afastei.
Aloysio se foi há poucos dias, abraçado à cidade que tanto amava. Mas não deixou indiferentes aqueles que privaram de sua amizade. Com seu particular e constante senso de humor, ensinou-nos a cada dia e de forma definitiva a afinar nosso olhar e não dissociar, em nenhuma hipótese, a emoção do intelecto e da ética.

Para pesquisador, desnível nas notas é preço baixo a se pagar pela inclusão

folha de são paulo

Cotistas têm desempenho inferior entre universitários
Estudos apontam que diferença vai até final dos cursos e é maior em exatas
Foram avaliados mais de 160 mil alunos; para pesquisador, desnível nas notas é preço baixo a se pagar pela inclusão
ÉRICA FRAGADE SÃO PAULOAlunos de graduação beneficiários de políticas de ações afirmativas, como cotas e bônus, têm apresentado desempenho acadêmico pior que os demais estudantes nas universidades públicas do país, mostram estudos recentes.
As pesquisas também concluem que a diferença de notas perdura até o fim dos cursos e costuma ser maior em carreiras de ciências exatas.
Universitários que ingressaram em instituições públicas federais por meio de ação afirmativa tiraram, em média, nota 9,3% menor que a dos demais na prova de conhecimentos específicos do Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), que avalia cursos superiores no país.
No caso das universidades estaduais, cotistas e beneficiários de bônus tiveram nota, em média, 10% menor.
Os dados fazem parte de estudo recente dos pesquisadores Fábio Waltenberg e Márcia de Carvalho, da UFF (Universidade Federal Fluminense), com base no Enade de 2008, que pela primeira vez identificou alunos que ingressaram por políticas de ação afirmativa.
Foram analisados os desempenhos de 167.704 alunos que estavam concluindo a graduação nos 13 cursos avaliados em 2008, como ciências sociais, engenharia, filosofia, história e matemática.
"Encontramos diferenças razoáveis. Não são catastróficas como previam alguns críticos das ações afirmativas, mas é importante registrar que existe uma diferença para não tapar o sol com a peneira", diz Waltenberg.
Para ele, o desnível atual é um preço baixo a se pagar pela maior inclusão. Mas ele ressalta que, com a ampliação da política de cotas (que atingirão 50% das vagas das federais até 2016), é possível que o hiato entre as notas se amplie.
EVASÃO MENOR
Pesquisa recente feita pelo economista Alvaro Mendes Junior, professor da Universidade Cândido Mendes, sobre o resultado de ações afirmativas na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) revela que o nível de evasão entre os cotistas na universidade é menor do que entre outros estudantes.
Mas os dados levantados por ele --que acompanhou o progresso de alunos que ingressaram em 2005 em 43 carreiras-- confirmam as disparidades de desempenho.
O coeficiente de rendimento (média das notas) de alunos não beneficiários de ações afirmativas que se formaram até 2012 foi, em média, 8,5%, maior do que o dos cotistas. Em carreiras como ciência da computação e física essa diferença salta para, respectivamente, 43,2% e 73,2%.

    Aluno de escola federal leva vantagem
    Na federal de Juiz de Fora, esses estudantes têm rendimento igual ao dos formados em colégios particulares
    Nos cursos de direito e medicina, que são mais concorridos, eles ficam com cerca de 50% das vagas para cotistas
    DE SÃO PAULOAlunos egressos de escolas públicas federais têm desempenho igual ao dos formados em instituições particulares nos cursos de graduação da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).
    Já os estudantes saídos de escolas públicas estaduais e municipais ficam atrás em termos de rendimento.
    É o que revelam dados sobre 14 mil alunos que ingressaram na UFJF entre 2006 --ano de implementação das cotas-- e 2011.
    Nesse período, os alunos das escolas públicas federais, consideradas de melhor qualidade, ficaram com 25% das vagas destinadas a cotistas, embora representem menos de 2% dos concluintes do ensino médio em Minas Gerais.
    Nos cursos de medicina e direito, mais concorridos, os egressos da escolas públicas federais representam cerca de 50% das vagas reservadas para os cotistas.
    Outra parte das cotas da UFJF é destinada especificamente a negros egressos de escolas públicas, cujo desempenho na graduação é mais baixo que o dos não cotistas.
    Segundo Antonio Beraldo, professor de estatística da UFJF que estuda a política de ação afirmativa, a formação mais fraca nas escolas públicas estaduais e municipais tem se refletido na trajetória do desempenho acadêmico dos cotistas.
    "Essa defasagem existe em todas as áreas e é ainda mais evidente nos cursos de exatas", afirma Beraldo.
    O acadêmico escreveu recentemente em coautoria com Eduardo Magrone, pró-reitor de graduação da UFJF, uma avaliação sobre a política de cotas na universidade.

      Rendimento caiu com o passar do tempo
      Segundo pesquisadora, políticas de cotas revelam hoje desempenho de alunos 'mais próximo da realidade'
      Inclusão aumentou enquanto parcela de cotistas com notas mais altas diminuiu nas universidades
      DE SÃO PAULOPesquisa dos acadêmicos Delcele Queiroz e Jocélio Teles dos Santos sobre desempenho dos cotistas em 2005, ano de adoção da política na UFBA (Universidade Federal da Bahia), indicava "resultados bastante animadores".
      Os autores ressaltavam que em alguns cursos como engenharia civil e comunicação social, a fatia de cotistas com coeficiente de rendimento entre 7,6 e 10 era maior do que entre os demais alunos.
      Segundo Delcele, que é pedagoga e professora da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), dados para anos subsequentes mostram um retrato menos favorável em termos da diferença de rendimento entre não cotistas e cotistas, embora confirmem o aumento da diversidade social e racial na universidade.
      Estudo recente de Delceles e de Santos mostra que, entre os que ingressaram na UFBA em 2006 e cursavam o sétimo semestre, a fatia de cotistas com notas médias entre 7 e 10 era menor que a dos demais alunos em 12 cursos muito concorridos, incluindo engenharia civil e comunicação.
      Delcele acredita que, quando foram adotadas, as cotas absorveram um estoque de alunos de escolas públicas com bom rendimento que não tentavam o vestibular ou ficavam muito próximos de serem aprovados.
      "Passado esse efeito, a situação em termos de desempenho que temos visto é mais próxima da realidade", diz.
      O desempenho acadêmico de cotistas ainda é pouco estudado no Brasil. A adoção de ações afirmativas pelas universidades começou a ganhar fôlego a partir de meados da década passada.
      Estudos de casos isolados costumavam indicar desempenho próximo entre beneficiários de ações afirmativas e demais alunos.
      Algumas pesquisas mais recentes têm revelado um quadro diferente, de rendimento pior de cotistas. O desempenho mais fraco é explicado por especialistas pela fragilidade na formação dos alunos de escolas públicas estaduais e municipais.
      BASE MAIS FRACA
      A estudante de Publicidade da UFF Priscylla Barros, 20, sente na graduação dificuldades herdadas de uma base fraca do ensino básico em escola pública estadual.
      "Eu vou bem nas disciplinas técnicas do curso, como desenho e criação gráfica, mas sinto dificuldades ligadas à base fraca em inglês, em conhecimentos gerais".
      A pesquisadora Delcele defende a política de cotas, mas afirma que as universidades têm falhado na adoção de políticas para "acolher os cotistas e contribuir para sua permanência e desempenho nos cursos".
      DIVERSIDADE
      Segundo Maria Eduarda Tannuri-Pianto, da UnB (Universidade de Brasília), a cota racial adotada pela instituição em 2004 atingiu o objetivo de promover a inclusão.
      Autora de um estudo em parceria com o pesquisador Andrew Francis, ela diz que apenas em 50% dos cursos "mais seletivos" da UnB pretos e pardos tinham rendimento "ligeiramente inferior" ao dos não cotistas.
      Ao longo do tempo, segundo ela, porém, o desempenho dos cotistas no vestibular tem piorado em relação ao dos primeiros cotistas beneficiados.

        O sabor da vida - MARTHA MEDEIROS

        ZERO HORA - 28/04/2013


        Dois anos atrás tive o prazer de ser entrevistada pelo chef Claude Troisgros, e lembro de que o encontro foi divertido e ao mesmo tempo inusitado pra mim, já que minha relação com as caçarolas sempre foi de intimidade zero.

        Pois agora recebi o convite da incrível Neka Menna Barreto para uma entrevista para a tevê que também ocorreria durante o preparativo de alguns quitutes. Minha intimidade com as caçarolas segue a mesma, porém sou amiga da família da Neka há muitos anos, todos gaúchos. Só que meu contato com ela, por ser moradora de São Paulo, era mais restrito. Finalmente, equalizamos essa distância da melhor forma possível: com um bom papo na cozinha.

        Quanto mais me aproximo desse universo que desconheço, mais me dou conta do quanto perco por não saber cozinhar. Conversando com a Neka, percebi a filosofia envolvida no processo – ao menos no processo dela, que usa sua colher de pau como uma espécie de varinha de condão, transformando em mágica cada receita aparentemente prosaica.

        Neka é uma chef que escolheu a vida como principal ingrediente – não a industrializada, mas a vida em sua origem, em sua raiz. Seu talento está não apenas na criteriosa escolha dos ingredientes, mas na maneira de pensar sobre o que está fazendo e de explorar todas as sensações envolvidas.

        Ela perfuma a cozinha com infusões de hortelã, “acorda” as sementes, encontra conexões entre rusticidade e sabor – de tudo Neka extrai um conceito. Cada alimento traz em si um benefício para a memória, para o humor, para a concentração. Ralar uma noz moscada nos ensina a reconhecer limites.

        Triturar um bastão de canela fortalece o bíceps. Dissecar uma vagem seca de baunilha (eu nem sabia que a baunilha vinha de uma orquídea) desperta a sensualidade – se você tem acesso à Neka, peça para ela contar os efeitos de esconder um galhinho de baunilha dentro do sutiã. Segundo ela, a mulher para instantaneamente de falar sobre si mesma e, silenciosa, passa a ser quem é. Viajandona? Pode ser, mas descobri com ela que o tempero que faz viajar é outro.

        Para quem só se interessa pelo concreto da vida, nada disso faz o menor sentido, porém é justamente sobre sentidos que está se falando aqui. Do amor que há em manusear tâmaras e nozes picadas, da energia que as ervas emanam, da estupidez de se consumir velozmente um prato ultracalórico e depois passar uma tarde inteira digerindo-o. “Gastamos muito tempo com digestão, quando poderíamos estar caminhando mais, dançando, flanando, vivendo até os cem anos com leveza”.

        Neka é uma alquimista de personalidade única. Tudo nela é inspirador, desde seus turbantes coloridos até seus pontos de vista. “Estamos nos acostumando com soluções instantâneas, enviando e-mails que chegam a Tóquio em um segundo, comprando comida pronta. Ninguém mais prepara, ninguém mais espera. Se vejo alguém muito agitado, correndo atrás do relógio, recomendo: cozinhe e recupere a noção do tempo real”.

        Não bastasse a delícia de suas criações gastronômicas, a querida Nekinha também é craque em dar receitas para nossas almas desnutridas. 

        Palácio Capanema, um marco estético mundial

        folha de são paulo

        EUCANAÃ FERRAZ
        ESPECIAL PARA A FOLHA

        RESUMO Projeto de Lucio Costa, Niemeyer, Reidy e Burle Marx, com base em ideias de Le Corbusier, o Palácio Capanema, no Rio, inaugurou modernismo arquitetônico no país e propiciou notável cruzamento entre arquitetura, artes e literatura. Livro de Roberto Segre conta história do edifício, que aguarda conclusão de restauro.
        *
        Depois de passar por Buenos Aires, Montevidéu e Assunção, em 1929, Le Corbusier (1887-1965) chegou ao Brasil para realizar uma série de conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro.
        Mário de Andrade registrou o fato em crônica no "Diário Nacional", de 21 de novembro de 1929, deplorando que tivéssemos encomendado ao arquiteto "palavras" e não "obras", observando ainda que faltava à arquitetura moderna um grande edifício --com exceção da "tão ignorada Bauhaus, de Gropius"-- que a tornasse definitiva "na consciência social".1
        Mário de Andrade estava certo. Mas sua conclusão imediata --"não será a velha América do Sul que tome uma iniciativa dessas"-- seria surpreendentemente desmentida pela construção do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, marco mundial da estética de Le Corbusier e da arquitetura racionalista.
        O engano de Mário é explicável: ele não poderia antever as mudanças político-econômicas e socioculturais que viriam com a Revolução de 1930, o que tornaria possível o retorno de Le Corbusier, seis anos depois, para trabalhar exatamente no projeto do edifício que faltava à arquitetura moderna.
        GETÚLIO
        As várias medidas modernizadoras do governo de Getúlio Vargas abrangeriam tanto a criação de novos ministérios quanto a elaboração de símbolos capazes de representá-los. O recurso à edificação como monumento seguiria uma tradição que se confunde com a própria história da arquitetura.
        Assim, em julho de 1935, por iniciativa de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública, o governo federal promoveu um concurso de anteprojetos para a construção do edifício-sede da pasta. Do total de 34 inscritos, somente três arquitetos, de linhagem academicista, foram classificados.
        Carla Caffé
        Desenho de Carla Caffé para a edição de 28 de abril da "Ilustríssima"
        Desenho de Carla Caffé para a edição de 28 de abril da "Ilustríssima"
        O trabalho vencedor era decididamente acadêmico. Seu autor, Arquimedes Memória, era um arquiteto de grande prestígio, que projetara edifícios importantes, como o Museu Histórico Nacional, em 1922, em estilo neocolonial, tão em voga naquele momento. Agora, para a sede do ministério de Capanema, seguira um nova inspiração nacionalista, mais "moderna", em que a monumentalidade complementava-se com uma estilização de gosto marajoara.
        Capanema, entretanto, desejava outra imagem para seu ministério. Assim, valendo-se de um dispositivo previsto no edital do concurso, decidiu desconsiderar o resultado e não levou a cabo a proposta vencedora. Para realizar um novo projeto, convidou, em março de 1936, Lucio Costa, nome ligado à arquitetura e à arte modernas. Ironicamente, fora Arquimedes Memória que, unido a outros professores tradicionalistas, conseguira sua expulsão do cargo de diretor da Escola Nacional de Belas Artes em 1931, interrompendo seu processo de modernização.
        Foi justo após essa malograda iniciativa que Lucio Costa passou a se dedicar, com amigos, ao estudo intensivo da arquitetura moderna, destacando-se --entre trabalhos de mestres como Gropius e Mies van der Rohe-- a doutrina e a obra de Le Corbusier. Estas eram apreciadas minuciosa e apaixonadamente, "encaradas já então, não mais como um exemplo entre outros, mas como o Livro Sagrado da Arquitetura".2
        Costa formou uma comissão que contava, inicialmente, com outros dois profissionais que, como ele, haviam sido preteridos no concurso: Carlos Leão e Affonso Eduardo Reidy. Aos poucos, juntaram-se a eles Jorge Machado Moreira, Ernani Vasconcelos e Oscar Niemeyer, este último apenas um jovem com grande talento para o desenho. Após um projeto considerado por todos insatisfatório, decidiram, considerando a importância da obra, trazer Le Corbusier de volta ao Rio, agora como arquiteto consultor.
        É compreensível que, alguns anos antes, a ambição cultural de Mário de Andrade desejasse "obras" e não "palavras", mas também é certo que a pregação corbusiana era sempre impactante. Expressões como "máquina de morar", criada para definir o modelo desejável para a habitação moderna, circulavam com escândalo pelo mundo e geravam grande interesse. Além de arquiteto e pintor, Le Corbusier era teórico, crítico, e suas palavras eram mais conhecidas que seus projetos e edifícios.
        Sua "ação" compunha-se, portanto, de "uma soma de palavras, desenhos, ideias, edifícios, pinturas, guarda-roupa --os óculos, a gravata--, atitudes, frases, gestos, num exemplo acabado do mais intrépido espírito vanguardista".4
        A carta-convite enviada por Lucio Costa a Le Corbusier deixa ver o impacto da palavra corbusiana: "Durante sua visita ao Rio, em 1929, fui ouvir sua conferência: ela estava na metade, a sala cheia --cinco minutos mais tarde eu saía escandalizado, sinceramente convencido de ter conhecido um 'cabotino'".
        Logo adiante, Costa fala brevemente de sua ida para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e emenda: "Nesse meio-tempo, entretanto, uma mudança profunda se produzira --de 'tradicionalista' que eu era, no sentido equívoco da palavra, havia podido pouco a pouco vencer a repugnância que seus livros me inspiravam e de repente, como uma revelação, toda a comovente beleza de seu espírito me ofuscou. Em 'estado de graça' e com a fé intransigente dos recém-convertidos, procurei 'salvar' os jovens da Escola! Nove meses mais tarde --o que é bastante normal, pois se tratava de uma expulsão-- põem-me na rua, cobrindo-me de palavras grosseiras."
        Agora, mais que reformar o ensino na ENBA, Lucio Costa iria comandar a modernização da arquitetura brasileira.
        BEIRA-MAR
        Convite aceito, Le Corbusier desembarcou no Rio de Janeiro em 12 de julho de 1936.
        Propôs, de imediato, que trocassem a área destinada à construção --na esplanada do Castelo-- por outro, à beira-mar, na antiga praia de Santa Luzia. 3 Em seguida, tomando por base o programa adotado pela equipe brasileira, mas rejeitando a dura volumetria simétrica da composição inicial, desenhou, para o novo terreno, um edifício predominantemente horizontal, com uma só lâmina sobre pilotis (colunas que formam um pavimento livre de paredes).
        Marcel Gautherot/Acervo IMS
        Foto do Palácio Capanema, no Rio, de Marcel Gautherot
        Foto do Palácio Capanema, no Rio, de Marcel Gautherot
        Como não pôde ser levada a cabo a mudança sugerida, Le Corbusier elaborou um segundo estudo, destinado à quadra que lhe fora proposta de início, no Castelo. Partindo do Rio em 14 de agosto, deixou o "risco original", a partir do qual a equipe conceberia e desenvolveria o projeto definitivo.
        Se o projeto final seguiu, de fato, os princípios norteadores da proposta do mestre franco-suíço, também apresentava consideráveis modificações de partido, funcionamento e concepção plástica. A principal mudança foi a adoção da verticalidade no bloco principal, deslocado agora para um ponto mais central do terreno. Com isso, e a adoção dos pilotis --que passaram de quatro a dez metros de altura--, ganhou-se uma vasta esplanada e continuidade entre os lados do edifício.
        Numa das fachadas, recorreu-se aos "brise-soleil", solução criada por Le Corbusier poucos anos antes, mas, em vez de fixos, tornaram-se móveis, com o que se podia sujeitar a luz solar. Criou-se uma entrada lateral, destituída de qualquer ênfase, mantendo-se, apesar disso, a monumentalidade necessária. O que ressalta, no conjunto, é a leveza, a sintaxe harmoniosa dos volumes limpos e puros.
        Do ponto de vista da crítica de arquitetura, uma das melhores abordagens do edifício coube a Yves Bruand, em seu conhecido "Arquitetura Contemporânea no Brasil" (1973, publicado no Brasil desde 1981, pela editora Perspectiva). O autor julga, com absoluta clareza, que as mudanças efetuadas pela equipe brasileira, sem deixarem de ter por base o plano de Le Corbusier, criaram um projeto inteiramente novo.
        Além do corte com a estética dos prédios institucionais, graves e pesados, o interior também guardava uma série de novidades, como as divisórias móveis e baixas, a iluminação natural e o mobiliário moderno, desenhado especialmente para o local. A visão do edifício surgindo livre no pátio, o passeio dilatado sob os pilotis, o trabalho em ambientes arejados, tão simples quanto elegante, cada detalhe instituía uma mudança de hábitos mentais e físicos, instigados pela imaginação e pela beleza.
        É o que transparece, por exemplo, em uma página do diário do chefe de gabinete do ministro Capanema --Carlos Drummond de Andrade--, que assim descreveu sua chegada ao novo escritório:
        "1944. Abril, 22 -- [...] Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados (antes, obedeciam à fantasia dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos). Novos hábitos são ensaiados. Da falta de conforto durante anos devemos passar a condições ideais de trabalho. [O poeta] Abgar Renault resmunga discretamente: 'Prefiro o antigo"¦' ["¦]
        "Das amplas vidraças do 10° andar descortina-se a baía vencendo a massa cinzenta dos edifícios. Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco da água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte." 5
        Mas seria outro o poeta que dedicaria ao MES um poema-homenagem. Vinicius de Moraes, em "Azul e branco" --publicado no jornal carioca "A Manhã", em 6 de dezembro de 19426--, buscou mais que descrever o edifício, antes buscando para a escrita as qualidades sintáticas da construção, interpretadas como aliança entre visualidade e musicalidade:
        Massas geométricas
        Em pautas de música
        Plástica e silêncio
        Do espaço criado.
        Além de o edifício --seus volumes limpos e a clara articulação de seus corpos transversos-- ressurgir no poema como uma arquitetura musical, outro aspecto, tão marcante quanto sutil, ganha destaque ali, e que poderíamos livremente chamar de plasticidade aquática. Ou, ainda, penso que podemos surpreender no edifício uma espécie de caráter solar e salino.
        A ambiência urbana criada pelo edifício, seu pátio, suas ilhas verdes --projetadas por Burle Marx-- com coqueiros e outras espécies tropicais, seus pilotis, a transparência dos vidros, a rítmica dos brises, enfim, sua leveza e simplicidade, tudo empresta ao caos urbano uma atmosfera decididamente marinha (o mar podia ser visto de suas janelas antes do adensamento do entorno). Voltemos ao poema:
        Concha e cavalo-marinho:
        Os ágeis sinuosos
        Que o raio de luz
        Cortando transforma
        Em claves de sol
        E o amor do infinito
        Retifica em hastes
        Antenas paralelas
        Propícias à eterna
        Incursão da música.
        O verso que abre a estrofe recupera uma presença decisiva para o plasticidade aquática do prédio: os três painéis de azulejos desenhados por Candido Portinari para o térreo. Retornando à azulejaria tradicional, em que sobressaem as composições em azul e branco, o pintor realizou um de seus mais belos trabalhos, em que vemos formas ameboides, peixes, estrelas-do-mar, conchas, sereias, cavalos-marinhos e corpos abstratos que sugerem nuvens e algas ou uma lua em quarto crescente.
        O rigor construtivo de Vinicius para recriar o edifício no poema pode ser medido na carta que enviou a Manuel Bandeira, de Los Angeles, em 14 de junho de 1949. Ele pede ao amigo:
        "No poema 'Azul e Branco', reconta por favor o número de andares do Ministério, correspondentes aos versos 'Azul e Branco'. As linhas iniciais da 3ª parte: 'Azul... Azul...' correspondem aos reservatórios no topo. Em seguida vêm os andares, se não me engano 14."6
        A passagem referida por Vinicius é a seguinte:
        Azul... Azul...
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Azul e Branco
        Concha...
        e cavalo-marinho.
        Nos versos, a dominância das cores dos azulejos reflete perfeitamente o cromatismo do pátio; repetição e sobreposição sugerem visualmente a verticalidade do edifício e, por fim, a economia restritiva de todo o arranjo recupera a linguagem dos painéis, nos quais a tendência sinfônica de Portinari recua à música de câmara.
        Mas não são apenas as cores e a temática que fazem dos azulejos elementos decisivos para o que chamei de plasticidade aquática. Há, na textura e no brilho, uma qualidade que remete aos corais, às algas, às conchas, à cintilação das escamas dos peixes, ao reflexo do sol nas águas. Os painéis como que umedecem as pedras do pátio varrido pelo vento.
        CONSTRUÇÃO
        A história da construção do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde --que passou a se chamar Palácio Gustavo Capanema-- é bastante conhecida. Pelo seu valor histórico e artístico e por ser um marco divisório na história da arquitetura no Brasil, a obra tornou-se uma referência inevitável. Curiosamente, no entanto, a importância do prédio acabou por empurrá-lo para uma espécie de região ideal em que objetos sublimes descansam intocados.
        Tenhamos em vista a excepcionalidade da obra e estranharemos de imediato que apenas um livro, "Colunas da Educação" (Minc/Iphan; FGV/CPDOC, 1996) --hoje uma raridade bibliográfica--, organizado por Maurício Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá, tenha se dedicado integralmente a ele. Transcreve-se ali um impressionante número de documentos de natureza vária, que, encadeados cronologicamente, remontam a gênese e o processo de construção do edifício, que duraria até 1945.
        Vale observar que seu texto de abertura --"O novo em construção: o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde e a disputa do espaço arquiteturável no anos 30"-- foi publicado pela primeira vez em 1986, numa revista da Universidade Federal Fluminense ("Revista do Rio de Janeiro", nº 3), tornando-se de imediato a leitura mais completa das relações entre política e estética em torno do MES.
        Mas se o volume deixara abertos terrenos generosos para interpretações, estas nunca vieram à luz na forma de um livro senão agora, quando se publica "Ministério da Educação e Saúde: Ícone Urbano da Modernidade Carioca" [Romano Guerra Editora, 544 págs., R$ 160],de Roberto Segre.
        Marcel Gautherot/Acervo IMS
        Foto do Palácio Capanema, no Rio, de Marcel Gautherot
        Foto do Palácio Capanema, no Rio, de Marcel Gautherot
        O autor esquadrinha as condições históricas, culturais e políticas que tornaram possível uma obra tão excepcional e faz uma densa apreciação crítica propriamente arquitetônica, sem esquecer, nesta, sua dimensão estética e simbólica. A densidade e a abrangência do livro de Segre só poderiam ser possíveis porque nasceram de uma "paixão", segundo o próprio autor, cuja origem remonta a pelo menos 50 anos atrás.
        Foi na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Buenos Aires que o jovem milanês --viera para a Argentina com a família em 1939, fugindo do fascismo e do antissemitismo de Mussolini-- descobriu a obra de Le Corbusier. Na "Oeuvre Complète", impressionou-se com o prédio do MES, apresentado ali como um projeto do autor da Villa Savoye, apenas com a colaboração da equipe brasileira.
        Em 1963, numa viagem de um mês pelo Brasil, Segre tomou contato, em São Paulo, com as obras de Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha, e, no Rio, visitou Oscar Niemeyer na Casa das Canoas. Foi quando esteve no MES --"totalmente inesquecível já na primeira experiência direta", como recorda Segre no texto que abre seu livro.
        O volume deixa ver o esforço de uma vida inteira. E, lamentavelmente, tal afirmação é também literal, já que Segre morreu em 10 de março, semanas antes de ver seu livro publicado, vítima de atropelamento em Niterói (RJ), condenado, portanto, pela estupidez urbana que os arquitetos --mas também os artistas, pensadores e intelectuais que reconhecem o destino urbanístico de toda ação empreendida nas cidades-- aspiram poder controlar com suas obras.
        O edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde é um dos nossos mais belos e poderosos sonhos.
        Notas
        1. "Táxi e Crônicas no Diário Nacional", org. Telê Porto Ancona Lopez. Duas Cidades/SCCT, 1976, pp. 161-162.
        2. Lucio Costa, "Sobre Arquitetura", 1° vol. Centro dos Estudantes Universitários de Arquitetura, 1962, p. 192-193.
        3. A área originara-se do aterro de parte da baía com o entulho do desmonte do Morro de Santo Antônio. Décadas mais tarde, próximo dali, seria construído o Museu de Arte Moderna (1954-1967), projeto de Affonso Eduardo Reidy.
        4. Eucanaã Ferraz, "Le Corbusier: Palavras, Obras --- Ação!", in "Nenhum Brasil Existe" (Topbooks, 2003, org. João Cezar de Castro Rocha).
        5. Carlos Drummond de Andrade, "O Observador no Escritório: Páginas de Diário" (Record, 1985), p. 13.
        6. O poema foi recolhido em 1946 no livro "Poemas, Sonetos e Baladas".
        7. Carta inédita, depositada no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

        Arte de despejo - Sergio Miceli

        folha de são paulo

        CRÍTICA
        Lições de Brasil na pintura acadêmica
        SERGIO MICELIRESUMO Tachada de retrógrada e colonizada pela opinião modernista, a arte acadêmica nacional e sua incipiente crítica são foco de estudos recém-lançados, em especial a mostra Escola Brasileira (1879). O pioneiro Félix Ferreira se mostra um observador afiado; Letícia Squeff, uma historiadora atenta às questões políticas da arte.
        A hegemonia acachapante lograda pelo movimento modernista reconfigurou a história intelectual do país. O barroco mineiro foi alçado à condição de época áurea da nascente cultura brasileira. O reverso desse rearranjo consistiu em depreciar as fontes visuais legadas por quase um século de prática artística consistente, cuja gênese remonta à missão francesa (1816), à criação da Academia Imperial de Belas Artes (1826) e às Exposições de Belas Artes (1840-89), iniciativas que teriam continuidade no regime republicano.
        Esse ciclo prolongado de produção e circulação de obras plásticas obedeceu às convenções do neoclassicismo francês, firmando uma tradição de cultura figurativa com modelos autóctones de excelência, nutrida por gerações de artistas dependentes de encomendas oficiais e particulares. O mecenato exercido pelo poder imperial, pelas repartições públicas, pelas famílias de elite e pelos colecionadores fez as vezes de arremedo de mercado de arte.
        Até anteontem, o esplêndido acervo artístico e documental desse experimento singular, quiçá único na América Latina (talvez com a exceção do México), fora de fato relegado ao quarto de despejo da memória nacional. O interesse crítico por parte de escassos intelectuais de prestígio --Alexandre Eulalio e Gilda de Mello e Souza, por exemplo-- atiçou a curiosidade sem estancar o embargo.
        Nas últimas décadas, a pós-graduação em história da arte, a fornada de especialistas competentes e o êxito de exposições retrospectivas, em especial a Mostra do Redescobrimento (2000), suscitaram teses, monografias, catálogos, virando o jogo e contestando o estigma de inferioridade.
        A doxa modernista também se traduziu no privilégio heurístico conferido à literatura em detrimento da cultura figurativa. O rechaço da arte acadêmica mutilou a visada da nossa formação cultural, ao esgarçar as mediações que esclarecem as condições sociais de gênese e transformação nas regras da arte. Tamanho descalabro tem muito a ver com a falta de uma história social e intelectual do império em favor de certa anedótica história política.
        Por detrás desse embaço prosperou a vigência da cartilha de juízos discutíveis. Arte acadêmica virou sinônimo de cópia, de imitação servil de modelos estrangeiros, de importação amaneirada, atestado flagrante de sujeição cultural, de atraso formal, emblema de conservadorismo estético e de nacionalismo retrógrado. Em surdina, foi concedida a primazia às fontes literárias em detrimento das artes plásticas. O desmonte invocou critérios universalistas do ideário estético derivado das vanguardas do século 20, ótica anacrônica adotada por nossa inteligência.
        CÂNON Não obstante, o revide de alguns estudiosos interessados em virar a partida adotou por vezes a postura de vezo antiquário, indefesos ao se contrapor à legitimidade desfrutada pelos ideólogos do cânon modernista.
        O introito se justifica ao examinar dois livros indispensáveis sobre o assunto: de Félix Ferreira, "Belas Artes, Estudos e Apreciações" [org. Tadeu Chiarelli, Zouk, 308 págs., R$ 49]; e de Leticia Squeff, "Uma Galeria para o Império -- A Coleção Escola Brasileira e as Origens do Museu Nacional de Belas Artes" [Edusp/Fapesp, 200 págs., R$ 85].
        O tema central de ambos é a Escola Brasileira, mostra paralela à Exposição Geral de Belas-Artes em 1879, em momento efervescente de crise do regime imperial. Embora a obra de Félix Ferreira (1841-98), publicada em 1885, comporte uma súmula da história da arte, passável, mas algo datada, os textos instigantes cobrem mostras e visitas a ateliês, a cobertura sagaz da Escola Brasileira e um estudo dos edifícios projetados pelo arquiteto Bethencourt da Silva.
        No espelho de Gonzaga Duque, outro crítico de renome no período, autor do clássico "Arte Brasileira" (1888), Félix Ferreira era um polígrafo veterano. Atuou como editor e exerceu o ofício de letrado em variados gêneros e suportes, desde o romance até o teatro, em jornais e revistas, além de textos por encomenda.
        A despeito da linguagem empolada, da empáfia, dos preconceitos esquisitos, possui talento invulgar para descrever pinturas, de paisagens sobretudo, seu gênero predileto --um frasista de primeira, com repiques de estranhamento, como que insuflando tração em câmera lenta aos ligamentos entre as figuras e os demais elementos da composição. O vulto desses escritos se explica em parte pela carência nestas paragens de repertórios biográficos congêneres aos do italiano Vasari (1511-74) ou do espanhol Palomino (1655-1726).
        Após reconstruir o contexto da produção artística oficial na capital do império, Letícia Squeff esquadrinha a exposição geral de 1879 e as circunstâncias de formação da seleta Escola Brasileira, embrião do acervo do atual Museu Nacional de Belas-Artes, qualificando as credenciais institucionais e artísticas dos nomes escolhidos.
        As 83 obras nesse espaço incluíam 51 trabalhos de ex-pensionistas do prêmio de viagem à Europa, obras de ex-diretores e de mestres da Academia, quadros laureados em concursos internos, encomendas do governo monárquico e algumas aquisições. Afora os 40 estudos representativos do modelo de aprendizagem aí prezado, a coleção reunia o que era considerado o suprassumo da produção acadêmica.
        POLÍTICA Vale a pena frisar os critérios de política cultural desse panteão. O empenho em evidenciar os padrões de excelência alcançados pelo ensino acadêmico se aliava aos intentos de propaganda do regime monárquico e de seus dignitários.
        As telas evocam momentos-chave da história da nação que se viabilizou sob tutela da monarquia portuguesa --a "Primeira Missa no Brasil" (Vítor Meireles, 1860) conforme o script da carta de Caminha, um incidente da luta contra os holandeses no Nordeste ("Magnanimidade de Vieira", José Correia de Lima, 1841), o proselitismo dos jesuítas contra a antropofagia praticada pelos indígenas ("Nóbrega e seus Companheiros", Manoel Joaquim de Melo Corte Real, 1843), a penetração dos paulistas' no território ("O Caçador e a Onça"; "Descoberta das Águas Termais de Piratininga", Felix-Émile Taunay, 1841), a "Passagem de Humaitá" (Vítor Meireles, 1872) na Guerra do Paraguai, contratada pelo ministro da Marinha Afonso Celso, futuro Visconde de Ouro Preto.
        Episódios alusivos à colonização se misturam aos feitos da coroa, o pretérito e o presente enlaçados pela série de retratos da dinastia reinante. D. João 6º, d. Pedro 1º e d. Pedro 2º, benfeitores da Academia, são objeto de imagens áulicas, todos de pé, diante do trono, em roupagem de gala, ostentando as insígnias da dinastia dos Bragança, ladeados ao fundo por nesgas da paisagem tropical.
        O rosto corado de d. João 6º, espremido entre o anjo, a figura feminina com o escudo dinástico e a virgem de branco com manto azul, esmagando a serpente, infundem à tela "Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do Reino" (Manuel Dias de Oliveira, 1813) o lembrete do pacto entre o trono e o altar.
        As paisagens se enquadram, pela tangente, no registro da pintura histórica: as de Taunay ("Vista da Mãe d'Água", 1841; "Vista de um Mato Virgem que se está Reduzindo a Carvão", 1843) incluem figuras diminutas de escravos ou evidenciam a destruição da mata para o comércio de madeira. E o mesmo se pode dizer das "Frutas do Brasil" (Agostinho José da Mota, 1860), quase uma quitanda de frutos da terra: mamão, melancia, cajus, pitangas e bananas.
        O quadrinho "Vista da Fábrica do Conselheiro Capanema, junto à Estrada de Petrópolis" (35,2 x 52 cm., 1859), desse artista, é a única tela que remete ao universo de interesses e de sociabilidade da elite civil. No estudo, bem diverso das paisagens luxuriantes da baía carioca ou da floresta da Tijuca, o pequeno galpão da fábrica de papel pertencia ao barão Guilherme Schuch de Capanema, homem culto ligado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cunhado de Araújo Porto-Alegre e, ao que parece, o destinatário da encomenda.
        Eis uma figura típica da elite enobrecida de proprietários e empresários, cujas demandas de decorações, de retratos, de cenas de gênero, aguardam ser rastreadas para propiciar inteligibilidade a nossa história social e intelectual. A reedição de "Belas Artes" traz como bônus a introdução de Tadeu Chiarelli; o livro de Leticia Squeff é fruto de pesquisa caprichada, de escrita fluente e enxuta, que apostou com acerto na interpretação balanceada entre as injunções artísticas inerentes à prática acadêmica e as razões políticas de feitio estrutural.