Mito da competência
João Paulo
Estado de Minas: 19/07/2014
Todo mundo defende a competência. Se você tiver que cair na mão de um cirurgião ou construir sua casa, certamente vai querer conhecer as credenciais dos profissionais que vão se encarregar de mantê-lo vivo e com a casa de pé. No entanto, o que deveria ser traduzido como capacidade de realização prática foi sendo substituído ao longo do tempo por uma escala valorativa em que uns são mais competentes que outros. A base de meritocracia está justamente aí: os melhores merecem lugar de destaque e maior confiança da sociedade. Nada mais transparente, nada mais perigoso.
Como toda forma de ideologia – e a competência é uma delas –, o discurso que valida aquelas decisões se faz a partir de verdades universais que são, na realidade, construções sociais. E é a crítica dessa elaboração mítica e ideológica que está na base do livro A ideologia da competência, que reúne textos de Marilena Chauí publicados na imprensa, em revistas especializadas ou como capítulos de livros. O volume é o terceiro da série Escritos de Marilena Chauí, com organização de André Rocha, lançado recentemente pela Editora Autêntica. Os anteriores tratavam da servidão voluntária e do autoritarismo brasileiro.
Marilena Chauí teve carreira acadêmica reconhecida no Brasil e no exterior, com reflexões na área da filosofia moderna e contemporânea. Com vasta obra de caráter mais técnico, dedicada sobretudo a Espinosa (1632-1677) e Merleau-Ponty (1908-1961), escreveu ainda sobre história da filosofia antiga, analisou a repressão sexual da sociedade ocidental (tão orgulhosa de sua liberdade de fachada), coordena trabalhos na área de introdução ao pensamento filosófico, além de participar do debate intelectual e político no Brasil, por meio de intervenções na imprensa, em seminários e congressos. Intelectual pública, teve ainda experiência administrativa, como secretária municipal de Cultura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina.
Com tantas credenciais, Marilena bem que poderia se sentar no trono da própria “competência”. Uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, ela tinha tudo para assumir a postura de guru da esquerda brasileira, com suas análises sempre refinadas e contundentes dos descaminhos do neoliberalismo em política, economia e cultura. Mas é exatamente pelo fato de desconfiar da ideologia da competência que ela escolheu a tarefa mais dura: enfrentar o debate público com as armas dos argumentos. A nova coletânea de textos é a reafirmação desse projeto.
A ideologia da competência é um livro plural, com textos publicados num longo arco de tempo e com temáticas diferentes. Mas que se unifica na tese central: há uma modernização do autoritarismo brasileiro em curso. O que a ideologia da competência tem a ver com isso? Tudo. É por meio da ideia de que há um discurso verdadeiro sobre a dinâmica e gestão da sociedade que se valida a perspectiva antipopular que parece nos definir tão bem. Com isso, as pessoas são isoladas das decisões, como consequência de sua incompetência intrínseca. As grandes questões políticas são sérias demais para ficar na mão do povo. De um lado, os competentes, de outro, os obedientes. Manda quem sabe (tradução malandra do “manda quem pode”).
A ideia da construção de um cenário de competência não é nova. Ela já passou por outros estágios do modo de produção capitalista, que remonta aos processos fordistas de produção científica. O que difere no atual momento é a sofisticação dos instrumentos ideológicos e a construção sutil do consenso em torno dos especialistas. Por isso, em vez de falar de igualdade, é sempre mais “técnico” perguntar pela produtividade; no lugar da democracia política, com seus conflitos necessários, entram em cena os tecnocratas com seus choques de gestão. A metáfora do choque é interessante: ela lembra um remédio que faz mal ao paciente, incapaz de perceber que tudo é feito “para seu bem”. É a mesma lógica que ameaça o tempo todo com “medidas impopulares”. O povo, afinal de contas, não sabe o que é bom para ele.
Em outros termos, há uma atualização das estratégias convencionais de exclusão popular, por meio de ferramentas consideradas mais avançadas. O que Marilena Chauí vai mostrar em seu livro é que o autoritarismo moderninho afronta, entre outros territórios fundamentais da vida da sociedade brasileira, a universidade pública, os meios de comunicação e a política. Para cada um desses terrenos, ela apresenta um conjunto de análises que vão desenhando as peculiaridades do funcionamento da ideologia da competência no neoliberalismo e na pós-modernidade.
No caso da educação, no sentido mais amplo, e da universidade, em particular, a pensadora mostra como o autoritarismo mudou de temperatura com o tempo. Durante a ditadura militar, o projeto era voltado para um modelo de crescimento do qual o homem era mero instrumento. Educação e treinamento se igualavam no âmbito da sociedade administrada. É nesse cenário que a ideologia da competência se torna uma exigência da economia, como formação de mão de obra, e não do desenvolvimento de consciências, como pensamento crítico. O que se viu no país foi a educação a reboque da tecnocracia, a universidade livre tutelada pelos interesses de mercado, o pensamento amortecido pelos padrões de rendimento.
Com o fim da ditadura e o novo modelo econômico, com a hegemonia do neoliberalismo, o autoritarismo puro e simples foi sendo trocado pela ideologia. O saber se instrumentaliza, a universidade passa a ser questionada em seu financiamento público e autonomia. Marilena vai denunciar a relação de classes presente na universidade e detonar a cobrança por produtividade que atende muito mais aos interesses industriais do que propriamente de conhecimento. A filósofa identifica os dois lados pouco livres da universidade: do ponto de vista econômico, voltado para fortalecimento das forças produtivas; e do ponto de vista político, com o encolhimento do espaço público em favor de interesses privados.
A pensadora também volta seus argumentos para os meios de comunicação. Marilena critica a pasteurização do discurso da imprensa (dirigido mais pela emoção que pela razão), aponta seu caráter monopolista e familiar, sua cruzada contra a cultura nacional-popular (em nome do imaginário que atenda ao mercado internacional) e a fragmentação da linguagem que destrói a inteligência. Chauí analisa a criação de simulacros, a destruição da esfera da opinião pública e a instauração da condição pós-moderna, com tudo de dissolvente que ela carrega.
A ideologia da competência é um livro de combate. Ensina que a crítica precisa ser exercitada e que a filosofia, muito além de uma disciplina teórica, é uma forma de pensamento em ação. Curiosamente, num dos textos mais fortes do livro, Marilena Chauí defende o direito de se calar. Ao ser questionada pela mídia, da qual faz um retrato iracundo e desconfiado, teve a coragem de virar as costas e dizer: “Não falo”. Como o torturado que se nega a dar o poder ao torturador, o pensamento sabe usar a liberdade para bradar o seu não. Que ninguém, no entanto, duvide da força das palavras da filósofa. Mas é preciso saber procurá-las nos lugares certos. Essa não é uma lição menor.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
João Paulo
Estado de Minas: 19/07/2014
Marilena Chauí faz da filosofia um instrumento de compreensão e transformação da realidade social |
Todo mundo defende a competência. Se você tiver que cair na mão de um cirurgião ou construir sua casa, certamente vai querer conhecer as credenciais dos profissionais que vão se encarregar de mantê-lo vivo e com a casa de pé. No entanto, o que deveria ser traduzido como capacidade de realização prática foi sendo substituído ao longo do tempo por uma escala valorativa em que uns são mais competentes que outros. A base de meritocracia está justamente aí: os melhores merecem lugar de destaque e maior confiança da sociedade. Nada mais transparente, nada mais perigoso.
Como toda forma de ideologia – e a competência é uma delas –, o discurso que valida aquelas decisões se faz a partir de verdades universais que são, na realidade, construções sociais. E é a crítica dessa elaboração mítica e ideológica que está na base do livro A ideologia da competência, que reúne textos de Marilena Chauí publicados na imprensa, em revistas especializadas ou como capítulos de livros. O volume é o terceiro da série Escritos de Marilena Chauí, com organização de André Rocha, lançado recentemente pela Editora Autêntica. Os anteriores tratavam da servidão voluntária e do autoritarismo brasileiro.
Marilena Chauí teve carreira acadêmica reconhecida no Brasil e no exterior, com reflexões na área da filosofia moderna e contemporânea. Com vasta obra de caráter mais técnico, dedicada sobretudo a Espinosa (1632-1677) e Merleau-Ponty (1908-1961), escreveu ainda sobre história da filosofia antiga, analisou a repressão sexual da sociedade ocidental (tão orgulhosa de sua liberdade de fachada), coordena trabalhos na área de introdução ao pensamento filosófico, além de participar do debate intelectual e político no Brasil, por meio de intervenções na imprensa, em seminários e congressos. Intelectual pública, teve ainda experiência administrativa, como secretária municipal de Cultura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina.
Com tantas credenciais, Marilena bem que poderia se sentar no trono da própria “competência”. Uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, ela tinha tudo para assumir a postura de guru da esquerda brasileira, com suas análises sempre refinadas e contundentes dos descaminhos do neoliberalismo em política, economia e cultura. Mas é exatamente pelo fato de desconfiar da ideologia da competência que ela escolheu a tarefa mais dura: enfrentar o debate público com as armas dos argumentos. A nova coletânea de textos é a reafirmação desse projeto.
A ideologia da competência é um livro plural, com textos publicados num longo arco de tempo e com temáticas diferentes. Mas que se unifica na tese central: há uma modernização do autoritarismo brasileiro em curso. O que a ideologia da competência tem a ver com isso? Tudo. É por meio da ideia de que há um discurso verdadeiro sobre a dinâmica e gestão da sociedade que se valida a perspectiva antipopular que parece nos definir tão bem. Com isso, as pessoas são isoladas das decisões, como consequência de sua incompetência intrínseca. As grandes questões políticas são sérias demais para ficar na mão do povo. De um lado, os competentes, de outro, os obedientes. Manda quem sabe (tradução malandra do “manda quem pode”).
A ideia da construção de um cenário de competência não é nova. Ela já passou por outros estágios do modo de produção capitalista, que remonta aos processos fordistas de produção científica. O que difere no atual momento é a sofisticação dos instrumentos ideológicos e a construção sutil do consenso em torno dos especialistas. Por isso, em vez de falar de igualdade, é sempre mais “técnico” perguntar pela produtividade; no lugar da democracia política, com seus conflitos necessários, entram em cena os tecnocratas com seus choques de gestão. A metáfora do choque é interessante: ela lembra um remédio que faz mal ao paciente, incapaz de perceber que tudo é feito “para seu bem”. É a mesma lógica que ameaça o tempo todo com “medidas impopulares”. O povo, afinal de contas, não sabe o que é bom para ele.
Em outros termos, há uma atualização das estratégias convencionais de exclusão popular, por meio de ferramentas consideradas mais avançadas. O que Marilena Chauí vai mostrar em seu livro é que o autoritarismo moderninho afronta, entre outros territórios fundamentais da vida da sociedade brasileira, a universidade pública, os meios de comunicação e a política. Para cada um desses terrenos, ela apresenta um conjunto de análises que vão desenhando as peculiaridades do funcionamento da ideologia da competência no neoliberalismo e na pós-modernidade.
No caso da educação, no sentido mais amplo, e da universidade, em particular, a pensadora mostra como o autoritarismo mudou de temperatura com o tempo. Durante a ditadura militar, o projeto era voltado para um modelo de crescimento do qual o homem era mero instrumento. Educação e treinamento se igualavam no âmbito da sociedade administrada. É nesse cenário que a ideologia da competência se torna uma exigência da economia, como formação de mão de obra, e não do desenvolvimento de consciências, como pensamento crítico. O que se viu no país foi a educação a reboque da tecnocracia, a universidade livre tutelada pelos interesses de mercado, o pensamento amortecido pelos padrões de rendimento.
Com o fim da ditadura e o novo modelo econômico, com a hegemonia do neoliberalismo, o autoritarismo puro e simples foi sendo trocado pela ideologia. O saber se instrumentaliza, a universidade passa a ser questionada em seu financiamento público e autonomia. Marilena vai denunciar a relação de classes presente na universidade e detonar a cobrança por produtividade que atende muito mais aos interesses industriais do que propriamente de conhecimento. A filósofa identifica os dois lados pouco livres da universidade: do ponto de vista econômico, voltado para fortalecimento das forças produtivas; e do ponto de vista político, com o encolhimento do espaço público em favor de interesses privados.
A pensadora também volta seus argumentos para os meios de comunicação. Marilena critica a pasteurização do discurso da imprensa (dirigido mais pela emoção que pela razão), aponta seu caráter monopolista e familiar, sua cruzada contra a cultura nacional-popular (em nome do imaginário que atenda ao mercado internacional) e a fragmentação da linguagem que destrói a inteligência. Chauí analisa a criação de simulacros, a destruição da esfera da opinião pública e a instauração da condição pós-moderna, com tudo de dissolvente que ela carrega.
A ideologia da competência é um livro de combate. Ensina que a crítica precisa ser exercitada e que a filosofia, muito além de uma disciplina teórica, é uma forma de pensamento em ação. Curiosamente, num dos textos mais fortes do livro, Marilena Chauí defende o direito de se calar. Ao ser questionada pela mídia, da qual faz um retrato iracundo e desconfiado, teve a coragem de virar as costas e dizer: “Não falo”. Como o torturado que se nega a dar o poder ao torturador, o pensamento sabe usar a liberdade para bradar o seu não. Que ninguém, no entanto, duvide da força das palavras da filósofa. Mas é preciso saber procurá-las nos lugares certos. Essa não é uma lição menor.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br