As palavras e os minutos
João Paulo
Estado de Minas: 07/06/2014
À medida que vão sendo fechados os acordos eleitorais entre os partidos, vai ficando claro o tempo que cada candidato deverá ter no horário eleitoral gratuito. Tudo parece indicar que, quanto mais minutos, mais propaganda e, consequentemente, mais votos. Nessa matemática pouco sincera não entram nem o discurso em si nem a resistência intelectual e moral do eleitor.
De fato tem sido assim. Há uma hipocrisia que faz com que as campanhas se norteiem menos pelos projetos e mais pelas mensagens que podem ser traduzidas operacionalmente em votos. Tanto o que é dito quanto o respeito ao destinatário das mensagens se tornam objetos manipuláveis, que podem ser testados e, se necessário, trocados por outro.
A cada eleição parece haver um tema que se torna tabu. É a pergunta que surge com o propósito de interferir na atmosfera moral e causar impacto pelo impacto. Há alguns anos, se indagava sobre a crença em Deus, em seguida o tema foi o aborto. Hoje parece ser o consumo de drogas. Questionar se um candidato já usou drogas ilícitas se tornou um clássico. Mas é, quase sempre, uma operação de má-fé, no sentido sartriano.
Para o existencialismo de Jean-Paul Sartre, a má-fé era uma posição de inautenticidade, um erro assumido no pleno domínio da liberdade, não apenas um ato calhorda. Não se trata de uma mentira ao outro, mas de uma mentira a si mesmo. De certa forma, as campanhas políticas abusam da má-fé, com certeza de que os resultados garantem a necessidade do gesto. Um maquiavelismo de resultados, que costuma inclusive operar a troca de marqueteiros como se faz com técnicos de futebol frente ao insucesso esportivo.
A pergunta acerca das drogas é sempre posta de forma atravessada. Um dos grandes temas atuais, a questão das drogas é, de acordo com as pesquisas mais avançadas em sociologia e neurociência, um índice do fracasso social, não uma capitulação ou defeito individual. As pessoas consomem drogas, como defende Carl Hart, por falta de melhores opções, ou por livre opção por um prazer potencialmente destrutivo. A miséria não é resultado do crack, é, quase sempre, sua causa. Quem tem escolhas melhores a fazer, com tempo deixa as substâncias estupefacientes de lado.
No entanto, até por razões moralistas, sempre foi melhor apostar todas as fichas na repressão, no uso da violência e na criminalização ostensiva do usuário. A proposta de José Mujica, presidente do Uruguai, de liberar o consumo recreativo da maconha, é a quadratura do círculo dos impasses das campanhas repressivas: ataca o bolso do tráfico e destrói a corrupção do sistema. Por isso assusta tanto e recebe tamanha resistência. Foram décadas vendendo repressão, armas e ideologia higienista.
Mas não é disso que se trata nas campanhas eleitorais brasileiras. O aguilhão da pergunta de má-fé quer apenas emparedar o candidato. E, nesse aspecto, a hipocrisia está dos dois lados. O postulante que se recusa a responder a pergunta, ou foge dela acusando quem o questiona ou o meio que representa, presta um desserviço à democracia. O melhor é responder com sinceridade, positiva ou negativamente, e passar para os temas que interessam.
Por outro lado, quando a oposição, mesmo defendendo posturas mais libertárias, passa a usar o tema a seu favor, dando vazão ao mesmo papel de acusador contumaz e intolerante, reza na mesma cartilha da mentira, reforçando a discriminação. O que deveria estar em jogo, nos dois lados, não é se o candidato fuma, bebe ou cheira, mas se tem propostas coerentes para o debate público e se é capaz de realizá-las .
Nos Estados Unidos, por exemplo, os três últimos presidentes declararam o consumo de drogas ilícitas na juventude. Nem por isso perderam as eleições nem deixaram de cumprir com suas responsabilidades. Os eleitores reconheceram naqueles homens (um deles, Obama, ainda está o poder) qualidades para dirigir o país e tomar decisões fundamentais para suas vidas e, em alguns casos, da segurança de todo o planeta. Mesmo tendo usado drogas ilegais. Devemos ter orgulho das ações, não da folha corrida. Tanto com os candidatos quanto com nossos filhos.
O consumo de drogas numa fase da vida não impossibilita ninguém de exercer qualquer função, nem mesmo a presidência da República. A mentira, no entanto, é um pecado muito grave, que envenena todo o jogo político. É muito melhor um presidente que, como a maioria dos jovens, fumou maconha na juventude, do que um adulto que mente para se preservar dos preconceitos e acusações religiosas regressivas.
Por outro lado, quem condena um candidato por sua vida particular, sobretudo quando exibe os mesmos comportamentos criticáveis do ponto de vista das convenções, padece de grau equivalente de hipocrisia. Está mais do que na hora de deixar de lado pegadinhas e passar para o que realmente interessa. No caso das drogas, que políticas apresenta para a questão; em relação ao aborto, suas reais convicções e disposição de oferecer atendimento público às mulheres que optarem por ele; no caso de Deus, reafirmar o caráter laico do Estado.
Todos precisam aprender com as eleições: a imprensa a fazer as perguntas necessárias e não se deixar intimidar, os candidatos a responder com honestidade porque são pessoas públicas, o eleitor a deixar de lado seus preconceitos para julgar a partir de critérios racionais e intersubjetivos quem quer como representante.
Está na hora de amadurecer. Temos coisas muito importantes para resolver, como saúde, segurança e educação. Sem falar que a Copa vai roubar boa parte do tempo que temos até a eleição.
João Paulo
Estado de Minas: 07/06/2014
José Mujica mostrou que o rei estava nu: as drogas não são violentas. Quem mata é a repressão |
À medida que vão sendo fechados os acordos eleitorais entre os partidos, vai ficando claro o tempo que cada candidato deverá ter no horário eleitoral gratuito. Tudo parece indicar que, quanto mais minutos, mais propaganda e, consequentemente, mais votos. Nessa matemática pouco sincera não entram nem o discurso em si nem a resistência intelectual e moral do eleitor.
De fato tem sido assim. Há uma hipocrisia que faz com que as campanhas se norteiem menos pelos projetos e mais pelas mensagens que podem ser traduzidas operacionalmente em votos. Tanto o que é dito quanto o respeito ao destinatário das mensagens se tornam objetos manipuláveis, que podem ser testados e, se necessário, trocados por outro.
A cada eleição parece haver um tema que se torna tabu. É a pergunta que surge com o propósito de interferir na atmosfera moral e causar impacto pelo impacto. Há alguns anos, se indagava sobre a crença em Deus, em seguida o tema foi o aborto. Hoje parece ser o consumo de drogas. Questionar se um candidato já usou drogas ilícitas se tornou um clássico. Mas é, quase sempre, uma operação de má-fé, no sentido sartriano.
Para o existencialismo de Jean-Paul Sartre, a má-fé era uma posição de inautenticidade, um erro assumido no pleno domínio da liberdade, não apenas um ato calhorda. Não se trata de uma mentira ao outro, mas de uma mentira a si mesmo. De certa forma, as campanhas políticas abusam da má-fé, com certeza de que os resultados garantem a necessidade do gesto. Um maquiavelismo de resultados, que costuma inclusive operar a troca de marqueteiros como se faz com técnicos de futebol frente ao insucesso esportivo.
A pergunta acerca das drogas é sempre posta de forma atravessada. Um dos grandes temas atuais, a questão das drogas é, de acordo com as pesquisas mais avançadas em sociologia e neurociência, um índice do fracasso social, não uma capitulação ou defeito individual. As pessoas consomem drogas, como defende Carl Hart, por falta de melhores opções, ou por livre opção por um prazer potencialmente destrutivo. A miséria não é resultado do crack, é, quase sempre, sua causa. Quem tem escolhas melhores a fazer, com tempo deixa as substâncias estupefacientes de lado.
No entanto, até por razões moralistas, sempre foi melhor apostar todas as fichas na repressão, no uso da violência e na criminalização ostensiva do usuário. A proposta de José Mujica, presidente do Uruguai, de liberar o consumo recreativo da maconha, é a quadratura do círculo dos impasses das campanhas repressivas: ataca o bolso do tráfico e destrói a corrupção do sistema. Por isso assusta tanto e recebe tamanha resistência. Foram décadas vendendo repressão, armas e ideologia higienista.
Mas não é disso que se trata nas campanhas eleitorais brasileiras. O aguilhão da pergunta de má-fé quer apenas emparedar o candidato. E, nesse aspecto, a hipocrisia está dos dois lados. O postulante que se recusa a responder a pergunta, ou foge dela acusando quem o questiona ou o meio que representa, presta um desserviço à democracia. O melhor é responder com sinceridade, positiva ou negativamente, e passar para os temas que interessam.
Por outro lado, quando a oposição, mesmo defendendo posturas mais libertárias, passa a usar o tema a seu favor, dando vazão ao mesmo papel de acusador contumaz e intolerante, reza na mesma cartilha da mentira, reforçando a discriminação. O que deveria estar em jogo, nos dois lados, não é se o candidato fuma, bebe ou cheira, mas se tem propostas coerentes para o debate público e se é capaz de realizá-las .
Nos Estados Unidos, por exemplo, os três últimos presidentes declararam o consumo de drogas ilícitas na juventude. Nem por isso perderam as eleições nem deixaram de cumprir com suas responsabilidades. Os eleitores reconheceram naqueles homens (um deles, Obama, ainda está o poder) qualidades para dirigir o país e tomar decisões fundamentais para suas vidas e, em alguns casos, da segurança de todo o planeta. Mesmo tendo usado drogas ilegais. Devemos ter orgulho das ações, não da folha corrida. Tanto com os candidatos quanto com nossos filhos.
O consumo de drogas numa fase da vida não impossibilita ninguém de exercer qualquer função, nem mesmo a presidência da República. A mentira, no entanto, é um pecado muito grave, que envenena todo o jogo político. É muito melhor um presidente que, como a maioria dos jovens, fumou maconha na juventude, do que um adulto que mente para se preservar dos preconceitos e acusações religiosas regressivas.
Por outro lado, quem condena um candidato por sua vida particular, sobretudo quando exibe os mesmos comportamentos criticáveis do ponto de vista das convenções, padece de grau equivalente de hipocrisia. Está mais do que na hora de deixar de lado pegadinhas e passar para o que realmente interessa. No caso das drogas, que políticas apresenta para a questão; em relação ao aborto, suas reais convicções e disposição de oferecer atendimento público às mulheres que optarem por ele; no caso de Deus, reafirmar o caráter laico do Estado.
Todos precisam aprender com as eleições: a imprensa a fazer as perguntas necessárias e não se deixar intimidar, os candidatos a responder com honestidade porque são pessoas públicas, o eleitor a deixar de lado seus preconceitos para julgar a partir de critérios racionais e intersubjetivos quem quer como representante.
Está na hora de amadurecer. Temos coisas muito importantes para resolver, como saúde, segurança e educação. Sem falar que a Copa vai roubar boa parte do tempo que temos até a eleição.