A Índia de hoje escapa aos paradoxos
fáceis, no inquirir-se
pelo mais complexo dos protagonistas
da Idade Moderna.
E, de saída, pela escala de suas contradições.
Deparamos um país líder do
Terceiro Mundo na produção da informática,
de par com o conhecimento da
inovação e da tecnologia, no âmbito
em que entramos na era virtual. Não há
que repetir o peso dos nomes hindus
nos prêmios Nobel contemporâneos.
Aí está, também, o seu papel na produção
dos fármacos, numa indústria ímpar
e monumental. Mas é, também, a
nação que encontra percalços na afirmação
básica da sua própria identidade
nos nossos dias, a partir das dificuldades
de uma língua comum em todo o
subcontinente.
São, pelo menos, 16 idiomas, no contexto
de 1 bilhão e 200 mil habitantes,
mas é só pelo inglês que conseguiram a
sua comunicação básica, língua que,
mesmo assim, só é falada por 40% da
população. O sânscrito, num primeiro
enlace arcaico, garantiria uma convergência
elementar de diálogo, superada
pelos últimos séculos. Mas há que procurar,
para além da língua, o referencial
identitário com que se fez a Índia moderna,
e ela, curiosamente, veio a despontar
no começo do século XIX, com a
sua idiomática indústria cinematográfica,
que antecipou, de décadas, a nossa
novela no cotidiano de um imaginário
popular em que os hindus reconhecem
o seu “Bollywood”.
O Ocidente de
agora não se dá
conta
da permanência
da instabilidade
subcontinente, no
política do
permanente
conflito fronteiriço
e as tensões da
Caxemira, que levam
o orçamento hindu a dedicar 36%
com o Paquistão,
às suas Forças Armadas. É nesses termos,
pois, que praticamente desapareceria
o desempenho de uma política
pública de educação e saúde. Multiplicam-
se, ao contrário, as miniofertas
privadas no ensino, ou das curas num
mercado de ocasião, no anúncio que se
espalha pelas ruas, lado a lado com as
ofertas de leitura de mão, ou da sorte,
ou dos cursos para manter o sorriso.
Em contraste com o nosso país, por
outro lado, a Índia herdou uma extraordinária
rede ferroviária nacional do Raj
inglês, e que é, sem dúvida, responsável
pela coesão do sistema político.
Ampliam-se, vertiginosamente, em
Calcutá, Nova Déli, Mumbai e outras
cidades-chave, os edifícios gigantescos
para a habitação da sua nova classe
média, em contraste com as cidades
velhas, deixadas intactas na enchente
humana de cada rua, nos serviços de
água reduzidos a mangueiras públicas,
esgotos inexistentes e o lixo imemorial,
disputado às vacas, no livre trânsito da
sua sacralidade. A força única da modernidade
indiana nasce da assunção
da sua independência do Império Britânico,
na virtude única das forças simbólicas
de uma sabedoria para além da
violência, em que o carisma de Gandhi
mobilizou o país. E fez do Partido do
Congresso, de Nehru e Indira, a expressão
desse arranco inicial, impossível de
encontrar-se nas outras independências
contemporâneas e garantidor, até
hoje, da democracia e da inviolabilidade
constitucional, da nação da flor de
lótus e da paciência.
Candido Mendes é integrante do Conselho
das Nações Unidas para a Aliança das
Civilizações