segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Gentílicos - Eduardo Almeida Reis

Em vez de se preocupar com coisas sérias como carnavais e feriados, o Império construía ferrovias

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 09/02/2015 




Mineiro na Academia Brasileira de Letras, paraibano no TCU, cearense ministro da Educação e o noticiário vai dando muita importância ao lugar do nascimento, como se fosse determinante na carreira e nos feitos do cidadão ou da cidadoa. Aqui e ali, o nascimento pode ser acidental e não tem a menor relação com a formação, a carreira e os feitos do cidadão e da cidadoa. Adib Jatene e Jarbas Gonçalves Passarinho nasceram no Acre; Tião Viana, outrossim. Por aí dá para perceber que o mesmo Acre pode produzir um Adib e um Jarbas, ou um Sebastião Afonso Viana Macedo Neves. E o leitor que tire suas conclusões, estabelecido o fato de que o brasileiro pode nascer em Pinheiro, no Maranhão, registrado como José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa, antes de se transformar em José Sarney, como também pode nascer em Gênova, Itália, registrado como Guido Mantega, e continuar Guido Mantega pelo resto dos seus dias.

O genovês meteu os pés pelas mãos porque não me consultou. Se me consultasse, teria caído fora do Ministério da Fazenda há muitos anos. Seus conhecimentos de economia, avaliados pelos profissionais do ramo, sempre foram fraquíssimos. Guido conhece tanto de economia como o leitor de nanotecnia e o philosopho de mecânica quântica. Os resultados foram os que se viram, com o fecho pouco educado de não transmitir o cargo ao seu sucessor.

Estreia 

Engravatado, Rolleiflex em punho, encarei o jardim zoológico do Rio para fazer minha primeira matéria. O negócio era assim: na redação carioca, quando o secretário não sabia o que fazer com o repórter recém-contratado, mandava para o jardim zoológico. Procurei o biólogo Adelmar Coimbra Filho, me apresentei e ele foi logo dizendo que não gostava de jornalista que se referisse aos animais pelos apelidos. Pois é: já naquele tempo não havia bicho sem apelido e o biólogo, empenhado na salvação do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), pedia seriedade no trato do assunto. Acho que gostou da matéria, porque telefonou para o jornal agradecendo e ficamos amigos. No dia em que escrevo, vejo na internet que ele está com 90 anos e é considerado o Pai da Primatologia, ramo da zoologia que estuda os primatas.

Todo santo dia lemos nos jornais sobre as espécies ameaçadas da extinção, que são muitas. É a regra: “Noventa e nove por cento de todas as formas de vida que já existiram na Terra estão hoje extintas”. A constatação não é minha, mas de Isaac Asimov em O livro dos fatos.

O livro é interessantíssimo. Vejamos alguns fatos. Existem cerca de 50 espécies de cobras marinhas, todas venenosas. São abundantes na costa do Golfo Pérsico até o Japão, e na Austrália e Melanésia. Seu veneno é 10 vezes mais virulento que o das serpentes. Os homens picados por elas morrem em duas horas e meia. Foi observada nos estreitos da Malaia uma “massa contínua” de serpentes marinhas, com três metros de largura e 112 quilômetros de comprimento.

O número de espécies de insetos existentes hoje é maior do que todas as outras espécies de animais juntas. Algumas espécies de enguias europeias depositam seus ovos no Mar dos Sargaços, na margem do Golfo do México, a milhares de quilômetros dos rios onde vivem. Para chegar ao local da postura, deixam os regatos da Europa seguindo qualquer via fluvial ou marinha que encontrem, até mesmo atravessando pequenas distâncias por terra quando encontram obstáculos como represas. Ao chegar ao oceano, dirigem-se em linha reta para o seu destino a milhares de quilômetros de distância. A enguia adulta não volta, mas as larvas recém-nascidas são levadas para a Europa pela Corrente do Golfo, numa viagem de quase três anos.

O mundo é uma bola 

Como é do desconhecimento geral, no dia 9 de fevereiro do ano de 474 teve início o reinado do imperador bizantino Zenão I, que se chamava Flavius Zeno e reinou até 491. Chamava-se Tarasis Rousoumbladiõtes até meados do ano 460, quando passou a chamar-se Flavius Zeno, bem melhor do que Rousoumbladiõtes, que tem uma espécie de tracinho por cima do último “e”, como também tem o tracinho em cima do último “o”, que aceitou o til.

Em 9 de fevereiro de 1855, o governo imperial do Brasil assinou contrato com Edward Price para construir o primeiro trecho de uma ferrovia, a Estrada de Ferro Central do Brasil, ligando a Corte, situada no Rio de Janeiro, às províncias de São Paulo e Minas Gerais. Em 1858, inaugurada a segunda ferrovia brasileira, ligando Recife a São Francisco. Em vez de se preocupar com coisas sérias como carnavais e feriados, o Império construía ferrovias. Em 1885, os primeiros japoneses se instalam no Havaí. Se a gente deixar, os japoneses se instalam em toda parte. Alguns já atuam no futebol com alguma competência. Em 1895, nos Estados Unidos, William George Morgan inventa o voleibol, ensejando o aparecimento das meninas (sic) do vôlei, galalaus de dois metros de altura, algumas até apetecíveis. Em 1963, primeiro voo do Boeing 727. Em 1969, primeiro voo comercial do Boeing 747. Hoje é o Dia do Frevo e o Dia do Zelador.

Ruminanças 
“Marinetti goza de uma ausência de talento que lhe permite todas as audácias” (André Gide, 1869-1951).

Há chances de impeachment? - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico  09/02/2015

Um erro, pensar que o impeachment de Dilma seria fácil como o de Collor. O PT tem uma popularidade que lembra Getúlio        

Assistimos agora a uma movimentação oposicionista pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Alguns até comparam seu caso ao de Fernando Collor de Mello, o único presidente brasileiro que foi afastado do poder por esse remédio heroico. Mas recomendo, a quem pensa assim, que lembre outra comparação possível – outro presidente, que também perdeu o cargo, também sendo substituído pelo seu vice, só que com resultados totalmente diferentes: Getúlio Vargas.

Collor não representava nada, nenhum interesse consolidado, fosse econômico, classista ou religioso. Foi um homem de grande virtù – no sentido maquiaveliano – que viu um vazio de poder e correu a ocupá-lo. Percebeu que a direita tradicional não tinha lugar, que o centro peemedebista estava esvaziado pela inflação e que a esquerda, com os nomes de Lula e Brizola, metia medo demais no campo conservador. No meio desse vácuo de poder, que a sorte (ou a fortuna, para usarmos outro termo de Maquiavel) lhe ofereceu, ele soube dominar a bola e marcar gol. Essa, a virtù segundo Maquiavel: nada tem a ver com a moral, mas tudo com a capacidade de um líder inteligente examinar a conjuntura e agir com vistas à vitória.

Mas sua vitória se esgotou na eleição. O plano econômico que teve seu nome, e que pretendia acabar com a inflação, logo fracassou. Ele perdeu o apoio político. Assim, quando o Brasil chegou ao fundo do poço, denúncias bem feitas e bem utilizadas politicamente permitiram que fosse afastado do cargo sem drama. O segundo semestre de 1992 – dividido em três atos: o povo na rua contra ele, a Câmara aceitando a denúncia e afastando-o do cargo, o Senado condenando-o – não foi nenhuma tragédia. O País respirou. Sentiu-se adulto, maduro. E logo voltou a se preocupar por conta da alta inflação, que Collor recebera e deixara de legado. Hoje, Collor é pouco mais do que um nome.

Getúlio é uma história inteiramente diferente. Em agosto de 1954, após o atentado que matou o major Vaz e se originara, sem que o presidente o soubesse, em sua própria guarda pessoal, ele foi rapidamente constituído como o grande vilão nacional. A imprensa conservadora e as Forças Armadas exigiam sua saída. A decisão de se matar mudou totalmente o quadro político. Getúlio, vilão na madrugada de 24 de agosto, ao meio-dia era o grande mártir da nacionalidade. Notem que eu disse mártir, que é mais que herói. Alguém pode ser herói por sua valentia, não importando a causa por que se bate. Nas guerras, ocorre de um exército homenagear os inimigos que se bateram com coragem, os inimigos heroicos. Mártir, não. Para alguém se tornar mártir, não basta expor ou sacrificar a vida. É preciso que ele dê a vida pela causa verdadeira, justa, boa. Suicidar-se podia ser um ato apenas heroico, caso Getúlio com isso mostrasse somente que valorizava mais seus ideais do que a própria vida. Tornou-se martírio porque o povo aplaudiu não só a forma mas também o conteúdo, não só o ato heroico mas o ideal que ele sustentava.

Em palavras mais prosaicas, em seus últimos tempos no poder, nem Getúlio nem Collor tinham apoio da mídia ou da opinião pública. Mas havia uma maioria getulista pobre, excluída socialmente, sem voz na mídia, mais silenciada do que silenciosa. Foi essa maioria que despertou com o suicídio. Já do lado de Collor, não havia ninguém. Os pobres não apoiavam o direitista que piorou suas condições de vida. As classes médias estavam indignadas com a inflação e a corrupção. Collor estava sozinho. Getúlio, não.

Nunca saberemos como ficariam as coisas, se Getúlio não optasse pelo gesto extremo. Muitos pensam que seu suicídio retardou dez anos o golpe da direita (uma vez achei um recorte amarelado de revista em que Flores da Cunha, ex-amigo seu, então deputado pela direitista UDN, dizia: o golpe virá em cinco ou dez anos; sorte que não estarei vivo quando vier). Mas pode ser que a massa tolerasse um governo de direita, no lugar de Getúlio – não fosse o seu suicídio, que tornou a questão literalmente um caso de vida ou morte.

A situação atual lembra mais Getúlio – claro que sem o fantasma do suicídio – do que o impeachment de Collor. Dilma pode estar desprestigiada, mas continua representando uma fração importante da sociedade brasileira. Ela não se compara a Getúlio, mas o PT sim. Hoje Dilma teria menos votos do que em outubro, mas isso não quer dizer muita coisa. Se Aécio tivesse sido eleito, ele também teria perdido votos. Medidas duras, como as que prometeu, custam caro em termos de popularidade. A aposta de todo governante é arrochar no começo, para colher os benefícios perto das eleições.

Deixemos de lado a comparação preguiçosa com Collor. Ele foi fogo de palha, amor de verão. Bem antes do impeachment, já estava politicamente esvaziado. Somente se sustentava na caneta de nomear e demitir. Já Dilma, em que pesem seus erros, sua má comunicação, possivelmente um estresse pessoal, continua representando forças políticas significativas. O fato de seus eleitores terem menos voz do que seus opositores não deve nos enganar. Eles existem, mesmo que calados. Uma eventual tentativa de impeachment não será fácil de vender à sociedade. Pode convir a quem votou contra ela, mas mesmo os sem voz na mídia estão mais presentes na vida social e política do que sessenta anos atrás. Vale a pena todos baixarem a bola. Melhor a oposição construir alternativas do que insistir num impeachment que pode atear fogo ao País, levando a protestos na rua e a uma repressão talvez sangrenta. Enquanto isso, melhor o governo trabalhar e dialogar com a sociedade, como prometeu, mas não está cumprindo.