sábado, 17 de agosto de 2013

O feminino em Nietzsche e Derrida

O Globo - 17/08/2013


FILOSOFIA



Duas obras mostram o tema como importante ponto de contato entre as reflexões promovidas pelo pensador alemão e pelo autor francês

RODRIGO PETRONIO


“Sou uma nuance”. Esta autodefiniçãode Nietzsche
marca muito bem o caráterradicalmente paradoxal de
sua obra. Como bem acentuaramos brilhantes estudos
de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche é um
pensador que se instala de modo deliberado entre
antagonismos insolúveis. Além disso, mais
do que uma tensão entre Apolo e Dionísio, seu
pensamento inaugura um novo modo de lidar
com a verdade: a interpretação infinita.

A revolução de Nietzsche não tem precedentes.
Esse novo modo de pensar integra a pluralidade
de perspectivas que constroem aquilo que chamamos
de verdade. E vai além: relativiza a própria
condição do sujeito que valida essas mesmas
perspectivas. O desconstrucionismo de Jacques
Derrida e muitas vertentes do pensamento do século
XX e XXI estariam in nuce nas páginas do criador
de Zaratustra.

Mas e se acrescentarmos a esse princípio interpretativo
a hipótese, também sustentada por Nietzsche,
de que a verdade seja uma mulher? Dois
lançamentos da Editora Nau partem da desconstrução
e das teorias de gêneros para reavivar a
agonística alegre existente entre Nietzsche, Derrida
e o tema do feminino.

Um é “Esporas: os estilos de Nietzsche”, livro
originado de uma conferência proferida por Derrida
em 1972, com tradução de Rafael Haddock-
Lobo e Carla Rodrigues. Outro é o ótimo estudo
de Carla Rodrigues, intitulado “Duas palavras para
o feminino: hospitalidade e responsabilidade
— Sobre ética e política em Jacques Derrida”. As
duas obras dialogam entre si justamente a partir
do tema do feminino.


FALA E FALO PATERNOS REVERBERANDO NA ESCRITA

Mas como o pensamento de Derrida e sua leitura
de Nietzsche possibilitam essa abordagem? Como
Derrida deixa claro em suas análises dos conceitos
de phármakon e de khôra, nos diálogos
“Fedro” e “Timeu de Platão”, respectivamente, a
metafísica consiste na tomada de decisão diante
de termos estruturalmente indecidíveis.

Assim, metafísica é toda decisão da linguagem
adotada em relação a alternativas excludentes indemonstráveis:
ser ou não ser, finito ou infinito,
mortal ou imortal. E, como metafísica, incapaz de
pensar a complexidade do mundo contemporâneo.
Uma escrita pós-metafísica seria aquela capaz
de se manter tensionada em uma zona de indecidibilidade
em relação a essas polaridades.

Em outras palavras: seria uma escrita feminina.
O fechamento racional (logos) é o modo pelo
qual a linguagem reatualiza a fala do pai e cria um
liame natural entre voz e verdade, entre a presença
física do falante e a verdade dos enunciados.
Criou-se o que Derrida chama de metafísica da
presença. Portanto, toda metafísica é um fono-falo-
logo-centrismo. Uma lógica fálica apoiada em
um racionalismo fonocêntrico que privilegia a fala
e a presença em detrimento da escrita e do
pensamento in absentia. Nesse jogo, a escrita se
transformou na presença-fantasma de um pai
ausente. Por meio dela, o arquivo humano, em
sua infinita heterogênese e em sua incontornável
disseminação, continuou ao longo de milênios
sendo vivido como ausência, castração, falta de
um dado de consciência presencial. O pensamento
metafísico, que orientou o Ocidente, teria
nascido do recalque de um parricídio simbólico.
A fala e o falo paternos continuaram reverberando
de modo fantasmal na escrita, chancelando-a
com uma negatividade incurável.

O gigante empreendimento de Derrida consiste
em refazer o percurso do pensamento ocidental
não mais a partir dos seus centros emissores
de sentido, mas sim das franjas e bordas de enunciados
indecidíveis. Criou uma odisseia da marginalidade
intelectual que inclui todas as vozes
ausentes do festim masculino da razão e abandonadas
pela paternidade arcaica dos signos.

A racionalidade é o modo de apropriação e quiçá
de expropriação que o pensamento e a linguagem
empreendem sobre o mundo. Apenas uma
escrita que incorpore o devir-mulher em seu caráter
inapreensível será portadora da marca indecidível
da verdade. Derrida detecta em Nietzsche
essa escrita filosófica sui generis. E é dessas premissas
que Carla Rodrigues parte para analisar o
legado de Derrida para refletir sobre os gêneros.

A partir dos principais aportes epistemológicos
da desconstrução, Carla renomeia o próprio sentido
do vocabulário político que norteia o debate
sobre gêneros. E o faz reendereçando de modo
suplementar palavras amadas por Derrida ao
longo de toda sua vida: alteridade, dom, justiça,
lei, perdão, amizade, soberania e, sobretudo, hospitalidade
e responsabilidade.

Esse é um dos pontos mais fecundos de seu estudo,
pois consegue superar diversas aporias das
definições de feminino quando estas recorrem a
pressupostos biológicos. Ao pensar o gênero como
um processo de pura différance, um infinito
diferimento, também consegue escapar às tentações
de demarcar a singularidade feminina a partir
de contrastes com o masculino, o que a faria
refém de um regime de identidade prévio. Tampouco
se contenta em reservar para o feminino o
lugar vago de uma neutralidade ontológica.

Mas o que seria então o feminino? Um dos pontos
altos do estudo de Carla é a reconstituição do
diálogo de Derrida com um de seus mais assíduos
amigos e interlocutores: Emmanuel Lévinas.
Pensador da diferença ontológica a partir de
uma alteridade radical, apenas o Outro nos singulariza.
Se não há ética sem o confronto com um
primeiro rosto e sem os vestígios de sua epifania
inscritos em nós, não há singularização sem uma
face alheia que desenhe os contornos de nossas
fisionomias, sejamos homens ou mulheres.

Nesses termos, toda teoria de diferenciação
que pressuponha uma identidade substancial
anterior, à qual o movimento de diferenciação se
dirija, será uma teoria metafísica, ainda que a serviço
de causas feministas. Nesse ponto salta aos
olhos a importância do horizonte de reflexão de
Carla. Tanto do ponto de vista político e sociológico
quanto no que diz respeito à demanda de direitos
e à própria legitimação conceitual das mulheres
e do feminino no mundo atual.

A leitura que Derrida faz de Nietzsche e a que
Carla faz de Derrida encenam o próprio princípio
diferencial da escrita como uma apropriação inacabada.
Além disso, brindam-nos com um relâmpago
em comum. Em ambas, podemos entender
o feminino como o movimento centrífugo
que a verdade realiza em direção a zonas de indeterminação.
Esse êxodo ocorre justamente para
que a verdade seja ainda mais verdadeira.

Nesse caso, não se trata de pensar o feminino
de Deus, como o fez a psicologia analítica, eivada
de resquícios metafísicos. Mas sim de pensar
Deus como o modo absoluto do feminino. E o feminino
como um infinito processo de diferenciação,
para sempre em aberto. Ao definir-se como
uma nuance, Nietzsche estaria então se definindo
como uma mulher? Provavelmente não. Embora
nada nos impeça de aventar essa hipótese.

Prefiro, porém, outra interpretação. Ao se definir
assim, Nietzsche estaria se definindo como o
próprio Deus se definiria a si mesmo. O que é
bastante plausível em se tratando de Nietzsche. E
o que é bastante provável em se tratando de um
Deus que hospeda e acolhe todos os seus órfãos.
Ou seja: toda a Humanidade. 



Rodrigo Petronio é autor, organizador e editor de diversas obras; mestre em Teoria da Literatura e em Filosofia da Religião



Quadrinhos

folha de são paulo
LAERTEVISÃO      LAERTE
LAERTE
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

Alexandre Vidal Porto

folha de são paulo
Democratização e política externa
A contribuição de agentes interessados em relações internacionais não deve ser menosprezada
CONHECI Matias Spektor, colunista da Folha, em Washington, faz alguns anos, em um seminário sobre o Brasil. No meio daquela conversa antiga de brasilianistas arcaicos, foi refrescante ouvir alguém cuja visão fugia do estereótipo.
Recentemente, Spektor escreveu sobre a importância de que a sociedade civil possa participar mais ativamente do processo de elaboração da política externa brasileira.
Eu concordo com ele.
A política externa pode parecer um conceito abstrato e distante, mas é política pública como qualquer outra. Lança os objetivos econômicos, políticos e estratégicos que um país quer alcançar no plano internacional. Também defende e promove princípios e valores.
Realiza-se em capitais distantes e é discutida em línguas estrangeiras. Ainda assim, deve projetar a nacionalidade e ser executada em nome dos cidadãos.
Por isso, como convém à boa política pública, seus objetivos têm de se acoplar ao projeto mais amplo de desenvolvimento econômico e social que cada governo formula. A ideia é, tanto quanto possível, conciliar interesses nacionais específicos com a paz e a prosperidade de toda a comunidade global.
Nada mais natural, portanto, que, numa democracia, diferentes setores da sociedade possam participar na identificação desses objetivos.
No Brasil, em diversas ocasiões, a sociedade civil contribuiu para definir linhas da ação diplomática. É reconhecida a participação dos ativistas de direitos humanos e ambientalistas nas Conferências de Durban (2001) e, mais recentemente, na Rio +20 (2012). Muitas vezes, porém, essa participação se dá de maneira informal, mais por boa vontade do agente público do que por obrigação institucional.
Em sua coluna, Matias Spektor mencionou que o Itamaraty resolvera criar em sua estrutura um foro permanente para diálogo com a sociedade civil. A ideia seria democratizar e dar mais legitimidade à política externa.
Na longa história do órgão, é a primeira vez que se estabelece um mecanismo dessa natureza. Trata-se de evolução institucional importante cujo objetivo, em última análise, é aproximar a política externa do cidadão comum.
A consolidação da democracia transforma a ação diplomática. A tecnologia, também. Não há como falar de democratização da política externa sem mencionar as mídias sociais. Tornaram-se um canal de contato direto com a população, pelo qual o formulador mostra seu trabalho e convida a opinião pública, nacional e internacional, a comentar sobre sua atuação.
Com isso, passa a contar com a possibilidade de quantificar e analisar dados de seu Ibope particular.
A contribuição de especialistas e agentes interessados em relações internacionais --seja em foro institucionalizado, debates acadêmicos ou mensagens de Facebook-- não deve ser menosprezada.
O debate tem de ser inclusivo e diverso. O desafio democrático que caberá à política externa --e a seu formulador-- será atingir e expressar o equilíbrio dessa diversidade.

    'Bolsa anticrack' atende primeiros viciados - Sabine Righetti

    folha de são paulo
    11 dependentes químicos foram selecionados para tratamento em instituição filantrópica de Campinas, interior de SP
    Estado anunciou meta de 300 parcerias, mas só 34 entidades já toparam receber internos por R$ 1.350
    SABINE RIGHETTIENVIADA ESPECIAL A CAMPINAS (SP)A "bolsa anticrack" do Estado para atender viciados começou a sair do papel há duas semanas e meia.
    Os primeiros 11 dependentes químicos selecionados para receber um crédito mensal de R$ 1.350 para tratamento estão sendo atendidos em uma instituição filantrópica de Campinas (a 93 km de SP).
    Sorocaba e Ribeirão Preto devem ser as próximas.
    O Estado, no entanto, ainda patina para conseguir as parcerias com entidades interessadas no programa --batizado de "Recomeço".
    Da meta de 300 anunciada no primeiro semestre, só 34 já toparam receber residentes pelo valor estipulado e deram início ao credenciamento na Secretaria de Justiça.
    A bolsa que ficou conhecida como "anticrack" foi anunciada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB) em maio, com a justificativa de tentar evitar que viciados que passaram por desintoxicação em hospitais e clínicas públicas tenham recaídas.
    Cada beneficiado terá R$ 1.350 mensais, repassados pelo governo às comunidades terapêuticas (entidades que acolhem dependentes químicos), por até seis meses.
    A iniciativa é motivo de divergência entre especialistas.
    As 11 pessoas que já estão em tratamento--nove dependentes de crack e dois de entorpecentes como cocaína-- estão acolhidas na instituição Padre Haroldo.
    Encaminhadas pela Prefeitura de Campinas ao Estado, elas dividem quartos e passam por atividades físicas e acompanhamento psicológico, com tarefas que vão das 5h30 às 22h. No local, há 120 dependentes, dos quais 11 estão incluídos na "bolsa anticrack" do Estado. Os demais pagam R$ 2.400 por mês.
    Na rotina da entidade, além do tratamento, os residentes participam da limpeza e do preparo da comida.
    Apesar de ter sido criada por um padre, a instituição não se define como religiosa.
    Por enquanto, não houve desistência. Mas, segundo Cesar Rosolen Jorge, gestor técnico da Padre Haroldo, cerca de 50% dos residentes costumam desistir do tratamento logo no primeiro mês.
    Os primeiros dependentes estão participando de uma fase para testar principalmente a tecnologia biométrica (de identificação das digitais) para controle do tratamento.
    É como um cartão de ponto: todos os dias, o residente coloca a digital em uma máquina que fica na instituição. Depois disso, o governo faz o pagamento da sua diária.
    Para receber a "bolsa" não é preciso ter baixa renda.
    "Mas quem tem dinheiro acaba pagando", diz Gleuda Apolinário, coordenadora do projeto na Secretaria de Desenvolvimento Social.
    Para dar início ao tratamento é preciso estar com a saúde estável. Essa parte é monitorada pela Secretaria Estadual de Saúde, que, via SUS, atesta tanto a dependência quanto o estado clínico.
    O Estado atribui a adesão de só 34 entidades até agora à quantidade de documentos para credenciamento. Mas mantém a meta de 300.
      Internação de dependentes é controversa
      DE SÃO PAULOO acolhimento de dependentes químicos em comunidades terapêuticas divide opiniões de especialistas em todo o mundo.
      De um lado, há quem seja contra o tratamento fora de casa. Isso porque o dependente químico não estaria "doente" a ponto de precisar de uma internação e precisaria manter laços familiares
      Outros, além de preferir a internação, defendem que ela seja compulsória (que aconteça mesmo contra a vontade do paciente).
      "O primeiro grande engano [do Recomeço] é que já se determina de antemão uma estratégia terapêutica fundamentada na internação", diz Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes).
      De acordo com o professor, que trabalha com dependentes há 24 anos, não existe fundamentação científica para privilegiar o tratamento via internação em detrimento de um tratamento ambulatorial.
      "A eficácia tende a ser maior quando o dependente é atendido ambulatorialmente por uma equipe multidisciplinar", afirma.
      No Recomeço, o acolhimento é voluntário. Se a triagem na prefeitura constatar necessidade de acolhimento, o residente deve escrever uma carta concordando com os termos.
      "E ele pode sair a qualquer momento", explica Cesar Rosolen Jorge, da instituição Padre Haroldo.
      No dia em que a reportagem visitou o espaço, uma senhora de 80 anos pedia a internação compulsória do filho de 40, viciado em crack. "Se eu chegar em casa agora, ele vai me matar", disse.
        ANÁLISE
        Com drogas nas ruas, sociedade pede respostas do poder público
        APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRAESPECIAL PARA A FOLHAHá na atualidade uma intensa mobilização da sociedade em relação ao tratamento de usuários de drogas.
        Esse debate tem sido provocado pelo mal-estar que o consumo abusivo de drogas promove na vida nas cidades, onde as pessoas passam a conviver rotineiramente com vidas degradadas, especialmente na "era do crack". Tal situação tem levado à exigência de respostas do Estado.
        A questão gira em torno da recuperação, da reabilitação ou do tratamento do dependente químico, pautada pelo ideal de superação do uso de drogas na sociedade e pela busca de uma vida saudável sem o uso de entorpecentes.
        É sabido que o uso de drogas ultrapassa culturas e acompanha o ser humano ao longo da sua história.
        Mas não podemos recuar diante da necessidade de tratamento para alguns casos.
        Experiências internacionais apontam duas tendências: um modelo de tratamento que busca remodelar o comportamento dos usuários pela via da abstinência, do isolamento e da tutela e outra abordagem que busca saídas possíveis construídas por cada sujeito em liberdade.
        Há um tensionamento entre as demandas da sociedade, os direitos de cidadania e os sujeitos.
        Políticas públicas precisam ser construídas para dar respostas à sociedade. No entanto, nenhum tratamento é possível sem levar em consideração cada sujeito em sua singularidade, sua história e seus laços sociais.

          Minha História - V., 27

          folha de são paulo
          MINHA HISTÓRIA - V., 27
          Caminho de volta
          Pretendo ficar o tempo que for preciso, os seis meses de tratamento; e espero que não precise ser internada de novo
          RESUMO V., 27, mãe de uma menina de sete, é dependente de cocaína e de álcool há quatro anos. Já tentou largar a droga sozinha, conta, sem sucesso. Drogada, chegava a passar três dias andando pelas ruas. Isso a levou a uma depressão profunda e a tentativas de suicídio. Hoje, ela é residente da instituição Padre Haroldo, em Campinas, interior de São Paulo, no programa do governo do Estado
          (...)Depoimento a
          SABINE RIGHETTIENVIADA ESPECIAL A CAMPINAS (SP)Começou há uns quatro anos, quando me separei do meu marido. Eu não conseguia fazer nada sem beber. Depois, passei a usar cocaína. Aí perdi o controle.
          Quando eu tinha um trabalho novo, eu passava na padaria de manhã e já colocava duas cervejas no bolso. Eu precisava da bebida para ter estímulo para as coisas. E também usava droga.
          Se eu estava feliz, usava droga. Se estava triste, usava droga. Então eu nem sabia mais do que gostava porque eu estava sempre drogada.
          Tinha vezes que eu saía de casa e ficava andando uns três dias nas ruas. Isso acontecia com frequência. Eu ficava várias noites na favela.
          Quando eu voltava para a casa onde moro com meus pais e minha filha de sete anos, eu ficava com peso na consciência. Depois eu fazia tudo de novo. Acho que tudo o que eu queria era chamar atenção, sabe?
          Já me atirei na frente de ônibus, tentei me matar várias vezes. Tenho muitas marcas no pulso, olha.
          Tive depressão profunda, passei a tomar remédios para conseguir acordar e remédios para conseguir dormir.
          Minha mãe trabalhava em um salão de cabeleireiro, mas parou para cuidar de mim e da minha filha. Meu pai nos sustenta. Jamais poderíamos pagar uma clínica particular.
          Já tentei me tratar sozinha participando do NA [Narcóticos Anônimos]. Mas tenho muita dificuldade de ficar sem a droga e sempre acabo desistindo e voltando.
          Há dois meses fiquei muito assustada porque meu tio, que era alcoólatra, acabou se matando. Foi muito sofrimento para a minha mãe.
          Decidi participar da triagem [da Prefeitura de Campinas] já pensando que eu poderia vir parar aqui [na Fundação Padre Haroldo].
          Estou aqui há 18 dias. Pretendo ficar o tempo que for preciso, os seis meses de tratamento se for necessário. E espero que eu não precise ser internada de novo.
          Eu nunca gostei de esportes, nunca gostei de nada. Mas descobri aqui que gosto de ioga. Estou me descobrindo. Isso é bom porque, se eu encontrar coisas que gosto de fazer, eu paro de usar droga.
          É difícil, sinto falta da família, da minha filha. E tem a questão de conviver com as meninas [que estão no mesmo quarto]. Tem dias que estamos todos injuriadas.
          Mas temos atividades o tempo todo, então nem penso muito nesses detalhes.
          Eu não estou sentindo falta de droga aqui. Isso até me dá medo porque geralmente as pessoas sentem falta, ficam irritadas. Mas eu estou bem tranquila. Talvez eu não precise tanto da cocaína quanto eu pensava.

            Walter Ceneviva

            folha de são paulo
            Partidos e direito: a confusão
            Costumes mudam com a velocidade do trem bala, enquanto o direito continua como os velhos trens
            Quando se recomeça a pensar em partido político e nas novas iniciativas do momento atual, com os conflitos diários, individuais e coletivos, cresce a curiosidade do profissional do direito quanto aos desencontros políticos.
            Exemplo: um partido tem dificuldades em se registrar. Por quê? Para você registrar um partido político e qualquer outra forma de sociedade civil, o ritual do início é o mesmo.
            Uma distinção constitucional é importante. A Carta Magna diz que os partidos políticos adquirem a personalidade eleitoral depois de registrados no Tribunal Superior Eleitoral (Constituição, art. 17, parágrafo 2º), sob cuidados indicados no Código respectivo.
            Tanto o partido como, por exemplo, uma sociedade esportiva obedecem a chamada Lei dos Registros Públicos --de meu permanente interesse profissional.
            Essa norma regula, entre outros, os registros de associações civis, organizações religiosas, fundações e, neste caso, os partidos políticos.
            Cabe a pergunta do leitor: se a coisa é assim tão formal, com dois tipos de registros especiais, como se explicam tantos "partidinhos" que parecem destinados a composições espúrias, chegando ao que se tem chamado de aluguel de legendas. Embora muito criticada, nem por isso foi abandonada.
            O principal veículo da desmoralização do partido político vem de seu principal instrumento de operação: a liberdade de opção entre políticas, ideais marcados e permanentes, mais diversos, sob a garantia do sistema democrático. Esse se assentou na terra brasileira e vive hoje em inovada realidade histórica. Após a independência, mantida na República, a liberdade democrática foi restrita. Essa é a primeira vez em que se assinala, durante tantos anos seguidos, a persistência do poder democrático e republicano, eleito pelo povo. Menos de 30 anos de democracia, nos pouco mais 190 anos de vida independente.
            Agitação política atual, manifestações populares, reclamações coletivas, hoje predominantes --e necessárias quando afastados os maus elementos infiltrados, que facilitam o retornar à ditadura-- é um preço a ser pago.
            A história do direito, a confirmação do caminho da livre manifestação, mostram que os fatos sociopolíticos não são um conjunto de linhas retas, no mesmo rumo: a preservação democrática é essencial.
            O motor da velocidade na atual transformação nasceu da eletrônica. O direito e a sociedade não se adaptaram, senão lentamente. Costumes e comportamentos se transformaram, no século 20, com a velocidade do trem bala, enquanto o direito, apesar dos esforços de adaptação, continua como os velhos trens de subúrbio. O descompasso das velocidades gera a confusão.
            O leitor reclamará da lentidão que sacrifica as gerações destes decênios. Terá razão. Para quem estuda a história dos direitos, a lentidão é o único fenômeno permanente em episódios sucessivos. Parece com barreiras que resistem muito à água acumulada. No excesso, quando se rompem, é de uma vez. A história também é assim.
            Estas notas nem parecem jornalísticas, das que vivem no dia a dia da vida, mas são as que se pode depreender do curso do tempo. A confusão do direito na sociedade se resolve na história. É dever de todos contribuir para ativar a democracia. Com dignidade.

            LIVROS JURÍDICOS
            O CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS SOCIAIS
            AUTOR Marcos Sampaio
            EDITORA Saraiva (0/xx/11/3613-3344)
            QUANTO R$ 72 (280 págs.)
            Dissertação pela UFBA analisa limites à restrição dos direitos fundamentais prestacionais. São três capítulos de composição encadeada, até atingir o conteúdo essencial dos direitos sociais, com incursões pelo direito estrangeiro. Culmina na composição de sua essencialidade, no constitucionalismo brasileiro.
            EVICÇÃO E PROCESSO
            AUTORA Clarisse Frechiani Lara Leite
            EDITORA Saraiva (0/xx/11/3613-3344),
            QUANTO R$ 70 (314 págs.)
            Tese de doutorado (Fadusp) tem justa composição das duas partes do título, cujo plano de trabalho tem elogio vigoroso de Cândido Rangel Dinamarco. A preocupação científica da autora se uniu à importância prática do tema. Especificou, no percurso, o direito material e processual, antes de consolidar suas sólidas conclusões.
            DIREITO SUCESSÓRIO DOS CONVIVENTES NA UNIÃO ESTÁVEL
            AUTOR Tarlei Lemos Pereira
            EDITORA Letras Jurídicas (0/xx/11/3107-6501)
            QUANTO R$109 (526 págs.)
            Dissertação de mestrado (FADISP) vai do direito constitucional à legislação estrangeira. Discute a função social da família. Sustenta a interpretação jurídica, oferece farto repositório da avaliação jurisprudencial e do percurso da lei civil. Tem apêndice legislativo das páginas 477 a 524.
            TEORIA DO ESTADO
            AUTORA Nina Ranieri
            EDITORA Manole (0/xx/11/4196-6000)
            QUANTO R$ 49 (416 págs.)
            O estado de direito surge, desde a formação, com a síntese integral do tema. Trata-se de obra na qual se mesclaram preocupações pedagógicas da autora. O perfil da análise científica dos princípios essenciais do Estado e de sua visão atual, tem severas disposições teóricas e filosóficas. Ao fim há notas sobre os grandes mestres do tema.
            RESUMOS GRÁFICOS DE LEIS PENAIS ESPECIAIS
            AUTORES Carlos Vinha e Felipe Vieites Novaes
            EDITORA Impetus (0/xx/21/2621-7007)
            QUANTO R$ 69 (295 págs.)
            A obra (série coordenada por Rogério Grecco) tem resumos gráficos de onze leis, preocupada com garantir a facilidade da compreensão.
            PRÁTICA DE RECURSOS NO PROCESSO CIVIL
            AUTOR Gediel Claudino de Araujo Júnior
            EDITORA Atlas (0/xx/11/3357-9144)
            QUANTO R$ 73 (504 págs.)
            São seis partes: o processo e relação com o cliente, peças processuais, súmulas do STJ e do STF, recursos e anotação ao Código de Processo.

              João Paulo-Os jornais são a notícia‏


              Os jornais são a notícia 

              João Paulo

              Estado de Minas: 17/08/2013 


              Jeff Bezos criou um modelo de negócios que passou por cima do mundo real e agora quer vender passagens para voos no espaço. O Post é seu novo brinquedo (Emmanuel Dunand/AFP)
              Jeff Bezos criou um modelo de negócios que passou por cima do mundo real e agora quer vender passagens para voos no espaço. O Post é seu novo brinquedo

              De pedra a vidraça. Responsável numa sociedade democrática por garantir o espaço de debate, informação e desenvolvimento da opinião pública, o jornalismo se tornou ele mesmo um elemento de disputa política. Nas últimas semanas, fatos relativos à produção, circulação e economia da notícia puseram os jornais e revistas na linha de frente das discussões públicas. Da venda do Washington Post ao dono da Amazon, Jeff Bezos, à emergência da comunicação em rede colaborativa proposta por coletivos como o Mídia Ninja, passando pela reformulação do leque de publicações de revistas no Brasil, com o sintomático fim da publicação cultural Bravo!, da Abril, muita tinta e pixels rolaram por papéis e telas do país.

              Não se pode falar propriamente de uma revolução, já que se trata de eventos que vêm sendo preparados numa linha de tempo já nem tão nova assim. Por isso o entendimento das transformações pelas quais passa o ecossistema da informação exige não apenas abertura ao novo, mas atenção direcionada ao contexto histórico, político e econômico no qual se dá a produção, distribuição e aproveitamento das informações na sociedade contemporânea. Mais que uma mudança essencialmente técnica, o que se desenha é uma transformação social, com efeitos políticos importantes.

              Frente a qualquer processo da mesma natureza, que altera padrões e paradigmas, a tendência tem sido forçar uma falsa divisão entre partidários da mudança, que se alinhariam entre os progressistas, e os resistentes às transformações, que comporiam o grupo dos tradicionalistas. A dicotomia, que não é boa em política, é pior ainda em matéria de dinâmica social.

              O que se acompanha hoje não é a vitória de uma alternativa técnica que tem tradução econômica – a hegemonia do digital –, mas a criação de um novo ambiente, no qual categorias clássicas têm pouco a contribuir. O jornalismo, que se aperfeiçoou durante décadas para entender a realidade das democracias complexas, talvez não seja o melhor instrumento para compreender sua própria virada histórica. Por isso estão em crise. Por isso estão perplexos. A avaliação do novo cenário pode ser perpassada de pessimismo paralisante ou de otimismo eufórico. Para uns, adentramos no pior dos mundos possíveis, para outros, no limiar do novo tempo.

              Inferno A primeira reação tem sido sempre a recusa da novidade e a tendência a criticar o novo em favor de práticas históricas. O argumento não é apenas reativo, já que traz em si alguns elementos que merecem ser destacados. No caso da venda do Post, tem sido percebido um preconceito que se dirige mais para o modelo de negócio que para o jornalismo em si. O fato de o jornal americano que derrubou Nixon ter sido comprado por um comerciante que mudou a ecologia dos negócios na rede empurra a questão mais para o campo do dinheiro que da informação. Assim, Bezos seria o executor e acelerador de uma profecia, que vem se arrastando nos últimos anos, sobre o fim anunciado do jornal impresso. O que parece ser uma opção de mercado se revelaria, no entanto, para os críticos, com o fim de uma era em que o jornalismo se balizava mais pelo interesse público que pelos resultados financeiros. Além disso, segundo ainda os críticos do empresário, o jornal serviria de trampolim para suas pretensões políticas, sobretudo no terreno da economia, em direção a certo ultraliberalismo, já que Bezos tem alergia a impostos e regulações.

              No caso da Bravo!, o pessimismo assume outra cara. Com o fim da publicação – e a manutenção de títulos ligados à fofocas e à forma física no cardápio da editora – o que estaria se estabelecendo é um cenário de superficialidade. Sai a alta cultura e entra em seu lugar o entretenimento. A perda da substância cultural propriamente dita, no caso do jornalismo, estaria na troca de certo papel formador e filosófico pela lógica do espetáculo. Assim, como se percebem em grande parte da imprensa no mundo, os temas da cultura estariam sendo substituídos por assuntos que responderiam pela chancela de “gente”, “celebridades” ou “diversão”, com seus conteúdos reforçadores da relação não mediada entre desejo e prazer. O signo por excelência da importância de um produto cultural seria dado por sua capacidade de atrair atenção em termos de mercado. Cai fora a profundidade estética com seu potencial crítico e assume o trono a lógica da coluna dos “mais vendidos”. Nos dois sentidos. Mais que a capitulação de uma revista, trata-se de uma tendência que alcançaria quase todos os produtos jornalísticos, que apequenam suas seções culturais e incensam marcadores de mercado e celebridades vazias.

              Já no caso das redes colaborativas de informação, no padrão da Mídia Ninja, a avaliação negativa se dá sempre de forma comparativa. Os novos atores informativos não seriam capazes de produzir uma visão ordenada de mundo, criando com sua sede de imediaticidade uma balbúrdia cognitiva. O papel até então ocupado pela chamada grande mídia sempre foi o de ordenar, com responsabilidade, os vários discursos emanados da sociedade, que ganhariam um tratamento que, na falta de melhor nome, poderia ser chamado de “inteligência jornalística”. Na mão e na cabeça de profissionais preparados, a realidade ganharia uma leitura que daria ao cidadão a possibilidade de se localizar no jogo de interesses que caracteriza cada momento. Um instrumento para a tomada de decisões. Há, por trás dessa crítica, certa concepção iluminista de verdade, herdeira do projeto da modernidade, que daria ao jornalismo sério o papel de mediador informado. As redes colaborativas, com sua novidade e capacidade de arregimentar novos discursos, seria incapaz do momento da síntese. Para os críticos, que representam um certo modelo solar de informação (no qual a verdade é uma luz absoluta que irradia a espera do ordenamento racional), nem todo fato é informação; nem toda informação é notícia; nem toda notícia é verdade.

              Paraíso No campo oposto estão aqueles que veem no momento atual a saudável quebra de expectativas e o apontamento de novas formas de jornalismo, muito mais capazes de responder às provocações da realidade. Assim, a configuração empresarial que se antevê para o Post passaria necessariamente por um novo modelo de negócios. Desde que a internet se tornou a mídia mais poderosa do mundo que a questão de como tornar os jornais rentáveis se coloca como uma esfinge devoradora. O que é fato é que hoje a maior parte da informação circula em meios digitais, e não em papel. O que falta não é fazer a transição de uma mídia para outra – o que é inevitável e mera questão de tempo –, mas descobrir como sustentar um bem público valiosíssimo, a informação livre, num meio ainda arredio aos elementos basilares do capitalismo de mercado. Bezos inventou uma nova relação entre mercado e consumidor de bens materiais, eliminando parte da cadeia. Levar esse impulso ao mundo dos bens simbólicos, sem se deixar submeter pela lógica da quantidade e do prazer imediato, é o desafio que deveria unir homens de negócios e jornalistas. Enquanto uns forem os vendidos e os demais os puros, os dois perdem.

              Com relação ao jornalismo cultural, o que parece voltar à cena é a antiga díade entre cultura e indústria cultural. Em defesa do primeiro termo estão criadores e especialistas formados no campo da chamada alta cultura, que defendem o potencial criativo e crítico das produções artísticas. Do outro lado, sem cair, é claro, no populismo que nivela por baixo, os defensores da arte que dialoga com as expectativas de seu tempo e com um mercado livre. O modelo da cultura tradicional, além de potencialmente elitista – o que em si não é um mal – se manteria como certa reserva ecológica em meio a várias possibilidades democráticas de expressão estética. Com isso, o fim de publicações especializadas talvez apontasse para necessidade de incorporar as pautas culturais no meio de outras demandas informativas. Além disso, argumentam os defensores da cultura de mercado, é mais saudável a explosão do cânone, ainda que pulverizando as atenções, do que a manutenção de certa política judicativa que o tempo todo aponte o dedo para o que é e o que não é cultura. O próprio modelo de financiamento público ganharia mais eficiência se voltasse sua atenção para a diversidade em vez de apenas sublinhar, com mais ou menos ênfase, a tradição dos barões da alta cultura, cegas e surdas aos desejos estéticos de uma sociedade plural e em transformação.

              No que diz respeito à informação em rede, em sua guerrilha contra o jornalismo tradicional, o cenário seria igualmente promissor. A revolução digital não mudou apenas a técnica de produção e distribuição de informação, mas a própria sociedade. Modelos fundamentados em antíteses como centro/periferia perderam a razão de ser. Não há mais periferia, tudo é centro. Essa revolução criou ainda a possibilidade de vocalização direta dos sujeitos sociais, sem que tudo tenha que passar pelo crivo da lógica empresarial e política das instituições jornalísticas. O poder de informação se mostrou, além de tudo, como gêmeo da força convocatória do protagonismo social. Com isso, mais que o espaço de veiculação, o tempo se tornou a variável mais importante. Com a pulverização e instantaneidade da informação, o ambiente informativo mudou em quantidade e qualidade. Em números, os agentes de informação foram multiplicados aos milhões, bem como os receptores, que estavam excluídos pela lógica geracional e de classe dos grandes meios. Em essência, deixa de valer a teoria solar para entrar em cena a lógica fractal do espaço infinito, em que cada informação interfere na outra e convoca a participação do receptor. O diálogo deixa de ser uma conseqüência para ser um operador social. A cobertura recente das mobilizações sociais no Brasil deixou nítida a força do novo modelo e seu potencial de não apenas reportar a realidade, mas interferir nos seus rumos.

              Mundo real
              Os dois lados apresentados acima, possivelmente, têm sua cota de razão. No entanto, mais que desfiar argumentos – que podem ainda incorporar elementos como queda de circulação, o papel do jornalista, a tendência ao amadorismo, a censura, a vigilância tecnológica, a invasão de privacidade, os modelos de rentabilidade, a superficialidade, a perda de referencial público etc. – cabe ao cidadão perceber seu papel nesse jogo. A imprensa não é mais mesma e o consumidor de informações não pode mais ser passivo. Cada escolha ajuda a moldar o futuro que se desenha no presente.

              Mas há elementos que fazem parte do mundo real e dos quais não vamos nos livrar nunca mais, seja pelo mergulho gozoso no paraíso ou nas antecâmaras do inferno. Os jornais não se sustentam mais no antigo modelo de negócios; a cultura é território de disputas filosóficas, políticas e econômicas; as mídias colaborativas podem não tomar o poder, mas não vão sair da praça.

              A isso se somam ainda outros paradoxos poderosos. Nem sempre, por exemplo, mais informação significa informação melhor. Por outro lado, a antiga garantia que vinha carimbada pelos grandes meios de comunicação perdeu o prazo de validade. A imprensa, na última década, mostrou que é capaz de ultrapassar qualquer limite em nome de interesses do mercado e do Estado. E o limite intransponível da imprensa deveria ser a verdade. Em matéria de imprensa valeria tudo, menos mentir.

              No entanto, os grandes jornais, revistas e redes de TV mentiram em relação à economia (criando um consenso que quase quebrou o mundo) e à política, compactuando com a chamada guerra ao terror, repercutindo falsidades (como a existência de armas de destruição em massa no Iraque), além de censurar conteúdos de interesse público (como a afronta aos direitos humanos em Guantánamo). Quando a “grande imprensa” mente e censura, deixou de ser grande e de ser imprensa.

              O deserto do real, no entanto, precisa ser noticiado. Como fazê-lo de forma livre e democrática – e que dê um dinheirinho no fim do mês – é o desafio. Quem souber a resposta está rico. Quem não se importar com a pergunta está fora do jogo.