FILOSOFIA
Duas obras mostram o tema como importante ponto de contato entre as reflexões promovidas pelo pensador alemão e pelo autor francês
RODRIGO PETRONIO
“Sou uma nuance”. Esta autodefiniçãode Nietzsche
marca muito bem o caráterradicalmente paradoxal de
sua obra. Como bem acentuaramos brilhantes estudos
de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche é um
pensador que se instala de modo deliberado entre
antagonismos insolúveis. Além disso, mais
do que uma tensão entre Apolo e Dionísio, seu
pensamento inaugura um novo modo de lidar
com a verdade: a interpretação infinita.
A revolução de Nietzsche não tem precedentes.
Esse novo modo de pensar integra a pluralidade
de perspectivas que constroem aquilo que chamamos
de verdade. E vai além: relativiza a própria
condição do sujeito que valida essas mesmas
perspectivas. O desconstrucionismo de Jacques
Derrida e muitas vertentes do pensamento do século
XX e XXI estariam in nuce nas páginas do criador
de Zaratustra.
Mas e se acrescentarmos a esse princípio interpretativo
a hipótese, também sustentada por Nietzsche,
de que a verdade seja uma mulher? Dois
lançamentos da Editora Nau partem da desconstrução
e das teorias de gêneros para reavivar a
agonística alegre existente entre Nietzsche, Derrida
e o tema do feminino.
Um é “Esporas: os estilos de Nietzsche”, livro
originado de uma conferência proferida por Derrida
em 1972, com tradução de Rafael Haddock-
Lobo e Carla Rodrigues. Outro é o ótimo estudo
de Carla Rodrigues, intitulado “Duas palavras para
o feminino: hospitalidade e responsabilidade
— Sobre ética e política em Jacques Derrida”. As
duas obras dialogam entre si justamente a partir
do tema do feminino.
FALA E FALO PATERNOS REVERBERANDO NA ESCRITA
Mas como o pensamento de Derrida e sua leitura
de Nietzsche possibilitam essa abordagem? Como
Derrida deixa claro em suas análises dos conceitos
de phármakon e de khôra, nos diálogos
“Fedro” e “Timeu de Platão”, respectivamente, a
metafísica consiste na tomada de decisão diante
de termos estruturalmente indecidíveis.
Assim, metafísica é toda decisão da linguagem
adotada em relação a alternativas excludentes indemonstráveis:
ser ou não ser, finito ou infinito,
mortal ou imortal. E, como metafísica, incapaz de
pensar a complexidade do mundo contemporâneo.
Uma escrita pós-metafísica seria aquela capaz
de se manter tensionada em uma zona de indecidibilidade
em relação a essas polaridades.
Em outras palavras: seria uma escrita feminina.
O fechamento racional (logos) é o modo pelo
qual a linguagem reatualiza a fala do pai e cria um
liame natural entre voz e verdade, entre a presença
física do falante e a verdade dos enunciados.
Criou-se o que Derrida chama de metafísica da
presença. Portanto, toda metafísica é um fono-falo-
logo-centrismo. Uma lógica fálica apoiada em
um racionalismo fonocêntrico que privilegia a fala
e a presença em detrimento da escrita e do
pensamento in absentia. Nesse jogo, a escrita se
transformou na presença-fantasma de um pai
ausente. Por meio dela, o arquivo humano, em
sua infinita heterogênese e em sua incontornável
disseminação, continuou ao longo de milênios
sendo vivido como ausência, castração, falta de
um dado de consciência presencial. O pensamento
metafísico, que orientou o Ocidente, teria
nascido do recalque de um parricídio simbólico.
A fala e o falo paternos continuaram reverberando
de modo fantasmal na escrita, chancelando-a
com uma negatividade incurável.
O gigante empreendimento de Derrida consiste
em refazer o percurso do pensamento ocidental
não mais a partir dos seus centros emissores
de sentido, mas sim das franjas e bordas de enunciados
indecidíveis. Criou uma odisseia da marginalidade
intelectual que inclui todas as vozes
ausentes do festim masculino da razão e abandonadas
pela paternidade arcaica dos signos.
A racionalidade é o modo de apropriação e quiçá
de expropriação que o pensamento e a linguagem
empreendem sobre o mundo. Apenas uma
escrita que incorpore o devir-mulher em seu caráter
inapreensível será portadora da marca indecidível
da verdade. Derrida detecta em Nietzsche
essa escrita filosófica sui generis. E é dessas premissas
que Carla Rodrigues parte para analisar o
legado de Derrida para refletir sobre os gêneros.
A partir dos principais aportes epistemológicos
da desconstrução, Carla renomeia o próprio sentido
do vocabulário político que norteia o debate
sobre gêneros. E o faz reendereçando de modo
suplementar palavras amadas por Derrida ao
longo de toda sua vida: alteridade, dom, justiça,
lei, perdão, amizade, soberania e, sobretudo, hospitalidade
e responsabilidade.
Esse é um dos pontos mais fecundos de seu estudo,
pois consegue superar diversas aporias das
definições de feminino quando estas recorrem a
pressupostos biológicos. Ao pensar o gênero como
um processo de pura différance, um infinito
diferimento, também consegue escapar às tentações
de demarcar a singularidade feminina a partir
de contrastes com o masculino, o que a faria
refém de um regime de identidade prévio. Tampouco
se contenta em reservar para o feminino o
lugar vago de uma neutralidade ontológica.
Mas o que seria então o feminino? Um dos pontos
altos do estudo de Carla é a reconstituição do
diálogo de Derrida com um de seus mais assíduos
amigos e interlocutores: Emmanuel Lévinas.
Pensador da diferença ontológica a partir de
uma alteridade radical, apenas o Outro nos singulariza.
Se não há ética sem o confronto com um
primeiro rosto e sem os vestígios de sua epifania
inscritos em nós, não há singularização sem uma
face alheia que desenhe os contornos de nossas
fisionomias, sejamos homens ou mulheres.
Nesses termos, toda teoria de diferenciação
que pressuponha uma identidade substancial
anterior, à qual o movimento de diferenciação se
dirija, será uma teoria metafísica, ainda que a serviço
de causas feministas. Nesse ponto salta aos
olhos a importância do horizonte de reflexão de
Carla. Tanto do ponto de vista político e sociológico
quanto no que diz respeito à demanda de direitos
e à própria legitimação conceitual das mulheres
e do feminino no mundo atual.
A leitura que Derrida faz de Nietzsche e a que
Carla faz de Derrida encenam o próprio princípio
diferencial da escrita como uma apropriação inacabada.
Além disso, brindam-nos com um relâmpago
em comum. Em ambas, podemos entender
o feminino como o movimento centrífugo
que a verdade realiza em direção a zonas de indeterminação.
Esse êxodo ocorre justamente para
que a verdade seja ainda mais verdadeira.
Nesse caso, não se trata de pensar o feminino
de Deus, como o fez a psicologia analítica, eivada
de resquícios metafísicos. Mas sim de pensar
Deus como o modo absoluto do feminino. E o feminino
como um infinito processo de diferenciação,
para sempre em aberto. Ao definir-se como
uma nuance, Nietzsche estaria então se definindo
como uma mulher? Provavelmente não. Embora
nada nos impeça de aventar essa hipótese.
Prefiro, porém, outra interpretação. Ao se definir
assim, Nietzsche estaria se definindo como o
próprio Deus se definiria a si mesmo. O que é
bastante plausível em se tratando de Nietzsche. E
o que é bastante provável em se tratando de um
Deus que hospeda e acolhe todos os seus órfãos.
Ou seja: toda a Humanidade.
Rodrigo Petronio é autor, organizador e editor de diversas obras; mestre em Teoria da Literatura e em Filosofia da Religião