quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Despedida de um doce homem - Marina Colasanti‏


Estado de Minas: 22/11/2012 
E assim, sem aviso prévio, sem possibilidade de despedidas, num susto quase, Alcione se foi. Tomou a barca na mesma terra sem mar em que havia chegado há 67 anos, soltou os pés do chão de Minas. Para trás ficaram as crônicas das segundas-feiras e as amizades de todos os dias. 

Era dois esse homem, porque o corpo de ossos largos e o olhar seguro lhe garantiam um jeito taurino de ser, enquanto a alma delicada e a ternura do sorriso lhe conferiam uma finura de donzela.

Eu lhe queria bem, e ainda lhe quero, embora já não possamos trabalhar juntos, e rir e conversar como fizemos tantas vezes.

Um dia – estávamos em Belo Horizonte para um encontro literário – me surpreendi ao vê-lo com uma aparência estranha, quase de vampiro. Estava mais pálido, e dos cantos da boca descia um rastro vermelho, de carne viva. Parecia coisa de cinema, mas era bem mais simples, embora absolutamente inusitado. “Foram as maçãs, – me explicou quando perguntei como ele havia se ferido daquele jeito –  dou dinheiro à empregada para ela comprar maçãs, ela enche uma vasilha que deixa em cima da mesa, e eu vou tirando e comendo”. Disse assim, minimizando com a maior naturalidade. Não disse, e eu soube depois por um amigo comum, que eram muitas maçãs por dia, bem mais do que o aconselhável, substituindo por vezes refeições inteiras. Alcione só descobriu o poder de acidez das maçãs quando sua boca rachou e ele procurou um médico.

“As mulheres, Marina – me disse de outra vez, e mais de uma vez, com tom entre melancólico e ressentido – só estão interessadas em homens ricos e bonitos.” Sabíamos os dois que não era isso o que queria me dizer. Se fosse, ele estaria cometendo uma indelicadeza, sendo eu a pessoa menos indicada para receber semelhante afirmação. O que estava me dizendo é que se sentia feio, que se sabia não rico e, sobretudo, que estava desejando tanto encontrar um amor. Dessa maneira transversal, tão mineira, me dizia ainda que tinha muito mais para oferecer do que beleza e dinheiro, bastava que alguém o olhasse com aquela atenção especial com que se olha quem se quer amar. Era essa delicadeza, essa busca de um olhar especial, que sua frase aparentemente agressiva encobria. 

Nossos encontros aconteceram sempre ao redor da leitura. Feiras de livros, congressos, encontros de professores, formação de leitores. Nesta frente de batalha, Alcione era bem mais que um soldado, era um general. Eu o vi em ação muitas vezes, comandando palco e plateia com voz profunda, trabalhando na justa medida seu humor morde e assopra, encantando públicos exigentes como o de Passo Fundo, de cuja Jornada Literária foi durante anos uma das lideranças. Tinha, para a literatura, vocação e fé.

A fé havia sido comprovada há tempos por um fato de que ele se orgulhava. Quando sua mulher estava grávida da sua filha Carolina, Alcione com frequência e regularidade se achegava à barriga e contava ou lia para ela contos de fadas. Fazia a leitura completa, em voz alta, seguro de ser ouvido. E ouvido foi, senão no significado, certamente no som das palavras. Pois, nascida a menina, bastava para acalmar seu choro ou para tranquilizá-la na hora do banho que o pai começasse a contar aquelas mesmas histórias com que a havia acalentado no ventre materno.

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