terça-feira, 22 de outubro de 2013

Maria Esther Maciel - A tradutora cega e o cão poliglota‏


Estado de Minas: 22/10/2013 





Não resisto à tentação de comentar um interessante episódio ocorrido no meu último dia em Frankfurt, quando fui – com a crítica literária Flora Süssekind – à Universidade de Goethe para uma discussão sobre literatura brasileira contemporânea. Chegar ao local do evento já foi uma aventura e tanto. Mas nada comparável ao que se passou depois.

Tão logo achamos o lugar, fomos recebidas por uma das organizadoras, que falava espanhol. Pediu que a acompanhássemos, pois queria nos apresentar à pessoa que faria a tradução simultânea de nossas falas para o alemão. Fomos, assim, ao auditório do evento, onde se encontrava uma mulher alta e loura, acompanhada de um cão labrador preto. Logo vi que ela era cega. O cachorro era seu guia. Com gentileza e certa reserva, ela disse que também acabara de chegar, pois vivia numa outra cidade (não me lembro do nome agora) e tinha ido a Frankfurt especialmente para fazer a tradução de nossas palestras. Falando um português correto, com um sotaque bastante peculiar, contou-nos um pouco sobre sua relação afetiva com o Brasil e a nossa língua. Disse que, por enquanto, só trabalhava com traduções orais, mas que seu objetivo era tornar-se uma tradutora também de livros.

O cão, segundo ela, se chamava Vuelvo. “Vuelvo Carvalho”, acrescentou, dizendo que o nome completo estava escrito na coleira. Disse ainda que o amigo compreendia – além do alemão, é claro – o português, o inglês e o espanhol. Foi a primeira vez que conheci um cachorro poliglota. Perguntei, em tom de brincadeira, em que língua ele latia, e ela respondeu, rindo: “Ele late em alemão, mas às vezes se arrisca nas outras línguas”. Afável e com um jeito maroto, o cão parecia, de fato, compreender tudo o que se falava ao seu entorno, independentemente do idioma. Às vezes, a tradutora se comunicava com ele através de gestos com as mãos. Será que Vuelvo entendia também a linguagem dos sinais? É provável que sim. Mas não perguntei. O fato é que essa situação toda me comoveu. O cão poliglota e a tradutora cega tornaram aquela tarde inesquecível.

De volta ao Brasil, pus-me a pensar no que escrever para a coluna desta semana, pois não queria repetir o tema da anterior. Depois de me inteirar das notícias sobre o país, achei que seria uma boa ideia celebrar o centenário de Vinicius de Moraes, poeta que sempre prezei. Mas a história dos cães beagles usados como cobaias por uma empresa brasileira me desviou desse intento. Afinal, sou contra experiências com animais em laboratórios e sempre procuro usar produtos de empresas que não adotam tais recursos. Já estava decidida a abordar o tema, quando me lembrei mais uma vez do impressionante cão da tradutora alemã. Um cachorro que se dedica a acompanhar e guiar uma cega com tanta devoção, sendo capaz também de entender (latir?) várias línguas, só mostra o quanto os cães têm um poder de compreensão da vida e das coisas do mundo. Merecem nosso respeito e admiração.

Assim, movida por essa lembrança recente de Frankfurt, concluí que destacar a amizade recíproca entre o cão-guia e a mulher cega seria uma forma indireta de protestar contra a história dos cães cobaias aprisionados num laboratório da cidade de São Roque. O contraste entre as duas situações não deixa de dizer muito também sobre nós, humanos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário