terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Palco e paixão [Cássio Scapin] - Carolina Braga

Palco e paixão
 
Cássio Scapin traz a Belo Horizonte o monólogo Eu não dava praquilo, baseado em depoimento de Myriam Muniz, corajosa defesa da verdadeira arte de representar



Carolina Braga
Estado de Minas: 07/01/2014


O palco nu reforça a importância das palavras e da performance do ator: o teatro é personagem central do monólogo (João Caldas/Divulgação)
O palco nu reforça a importância das palavras e da performance do ator: o teatro é personagem central do monólogo


Popularidade nunca foi o forte de Myriam Muniz. Aliás, a atriz que hoje dá nome a um dos principais prêmios de fomento ao teatro no Brasil era totalmente avessa à mídia. Um paradoxo para quem viveu de contar histórias nos palcos e nas telas. Mas quem construiu uma carreira com tal envergadura não poderia ficar restrita ao circuito fechado dos cults. Na verdade, em tempo de muita superficialidade e culto da fama, muita gente anda precisando conhecer o que Myriam Muniz pensava sobre teatro.

Foi essa resolução que inspirou o ator Cássio Scapin a montar Eu não dava praquilo, monólogo que entra em cartaz amanhã, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), onde faz temporada até dia 19. Quando a atriz morreu, em 2004, algumas amigas se juntaram e decidiram editar um depoimento gravado em vídeo de modo caseiro. Uma das cópias chegou na mão de Scapin.

“O ponto que me pegou é a relação que ela tinha com o ofício, algo que está se perdendo. Hoje há uma valorização midiática. Não que antes não tivesse, mas isso deveria vir como consequência e não em primeiro plano. O mais importante era o trabalho do ator, o que ele queria dizer, muito mais do que esse ego superfaturado que o mercado exige”, analisa o ator.

Emocionado com o que ouviu, Cássio Scapin mostrou o vídeo para o poeta e dramaturgo Cássio Junqueira. “Quando ele me mostrou o depoimento gravado, já sabia tudo praticamente de cor. Ia repetindo o discurso, quase fazendo a personagem. Vendo-o atuar, falei: ‘Faz isso no teatro, é genial’”, conta Junqueira. Foi assim que nasceu texto do espetáculo. Imediatamente, o nome de Elias Andreato surgiu para a direção. “Nunca fui amigo da Myriam. Conheci-a superficialmente e fiquei muito sensibilizado pela simplicidade do discurso. A paixão dela pelo teatro me tocou muito e falei: ‘Faça nem que seja na sala da sua casa’”, conta o diretor.

Inspirado em falas da própria Myriam Muniz e entrevistas com familiares, além da biografia Giramundo – O percurso de uma atriz, organizado por Maria Thereza Vargas, Eu não dava praquilo sintetiza o pensamento teatral da atriz. Às ideias dela são somados fragmentos das obras de Adélia Prado e Clarice Lispector. A montagem é, na verdade, uma crítica a quem escolhe o caminho nos palcos como uma simples fonte de ganho e fama.

“Isso é um fenômeno mundial, tem tanto no teatro como nas artes plásticas: o mercado se sobrepujou à essência. Acho que entramos em uma dinâmica de mundo violenta. O pão feito em casa perdeu um pouco de valor”, pondera o ator. Scapin e Muniz nunca foram amigos, mas a admiração dele pela atriz surgiu no tempo em que ainda era estudante. “Ela era muito feérica. Fiz um curso com ela, eram mais ou menos seis alunos na sala, mas dava aula como se estivesse 100. Tudo era muito grande”, lembra. Desde aquela época, Scapin se impressionou com o modo como ela lidava com o ofício e expunha suas ideias.

Lugar nenhum Indicado ao Prêmio Shell de Melhor Ator e vencedor do APCA na mesma categoria em 2013, Cássio Scapin se diz realizado em poder fazer um espetáculo em que o que está sendo dito tem uma relação íntima com o que pensa. Em 2014, o ator completa 30 anos de carreira profissional. Com a experiência de ter participado de mais de 30 projetos no teatro, 12 na televisão e outros tantos no cinema, surpreende-se com o modo como as pessoas consomem arte hoje em dia.

“Você vê como se fosse qualquer coisa. Com as novas tecnologias, conseguir estar ali é um sacrifício. As pessoas não conseguem desligar os aparelhos. Querem estar em todos os lugares e não estão em nenhum. É uma dinâmica do mundo. Como vamos puxar esse freio de mão para voltar do tamanho do humano?”, questiona. Eu não dava praquilo faz provocações nesse sentido.

O nome do espetáculo é referência a uma frase constante no depoimento da atriz. Para o dramaturgo Cássio Junqueira, o espetáculo revela um processo de construção de personalidade muito intenso. “Ela estava disposta a ir às últimas consequências. Expunha-se para se descobrir, tentava por um caminho, por outro e assim foi se achando. Só se consegue fazer isso com uma sinceridade muito rara”, conclui.

EU NÃO DAVA PRAQUILO
De amanhã ao dia 19. De quarta a sexta, às 20h; sábado, às 18h e 20h; domingo, às 19h. Centro Cultural Banco do Brasil. Praça da Liberdade, 450, (31) 3431-9400. R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).


O lugar do ator


Eu não dava praquilo não tem cenário mirabolante nem figurino especial. É basicamente um platô e uma cadeira. “Primeiro pela própria linguagem do teatro. Preencher aquela caixa toda com um monte de alegorias enlouquece o espectador e ele não vai conseguir focar em absolutamente nada”, detalha o diretor Elias Andreato. A escolha foi deixar o ator o mais livre possível. “É sobre uma atriz que morreu fazendo o que mais gostava. Quanto mais neutro e disponível para qualquer outra possibilidade, mais interessante para o ator”, diz.

A parceria entre Elias Andreato e Cássio Scapin vem de longa data. Fizeram juntos, entre outros trabalhos, Visitando o sr. Green, de Jeff Baron, com Paulo Autran. No caso de Eu não dava praquilo, além de ser mais um monólogo para a extensa lista do gênero que ambos têm no currículo, a peça também tem a função de resgatar a memória recente da história do teatro brasileiro.

“A história do teatro brasileiro se resume ao TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), Arena e Oficina. Daí surgiram os grandes atores. Ninguém sabe mais o que significa isso. Se você vai em qualquer escola de teatro, as pessoas só têm noção do que é novela. Desse ponto de vista, Eu não dava praquilo é um oásis para quem gosta de teatro e se dedica a ele”, comenta Andreato.

Para não se influenciar, diferentemente de Cássio Scapin, o diretor preferiu não ver o depoimento gravado de Myriam. Nem por isso ficou livre dela. “Tive muitos sonhos. Ela cuspia no meu pé, lavava o meu caixão. Eu pensava: ‘Ai meu Deus, nem conheci essa mulher’. Mas fui tinhoso”, brinca. Para Andreato, Eu não dava praquilo toca o espectador porque fala de paixão. “É isso que mobiliza qualquer criatura na face da Terra”.


Vida dedicada às artes


Myriam Muniz em Nina, filme dirigido por Heitor Dhalia (Columbia/Divulgação)
Myriam Muniz em Nina, filme dirigido por Heitor Dhalia

Myriam Muniz nasceu em São Paulo, em outubro de 1931. Estudou e praticou enfermagem no Hospital Samaritano, mas ao perceber “que não dava praquilo”, foi tentar a vida de bailarina, integrando o Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo. Mais uma vez, percebeu que dançar não era a dela. Em 1958, matriculou-se na Escola de Arte Dramática de São Paulo. Estreou como atriz profissional em 1961 e passou a trabalhar com Augusto Boal, Zé Celso Martinez Correa e Antônio Abujamra. Participou do Teatro de Arena e fez parte do corpo artístico da Cia. Dulcina de Moraes.

Na década de 1970, passou a diversificar suas atividades. Em 1975, foi uma das fundadoras do Teatro-escola Macunaíma, centro experimental de formação teatral. Dedicou-se à direção de shows musicais, entre eles Falso brilhante, de Elis Regina. No cinema, estreou em Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. O último trabalho na telona foi em Nina (2004) de Heitor Dhalia. Na televisão, participou das minisséries Dona flor e seus dois maridos (1998) e Os Maias (2001). A atriz morreu em 18 de dezembro de 2004. Em 2006, a Funarte instituiu o Prêmio de Teatro Myriam Muniz, para estímulo e fomento à produção e à pesquisa de artes cênicas em todo o país.

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