sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Em tempos de seca Carlos Herculano Lopes‏

Em tempos de seca
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 14/02/2014


Cena 1 – Numa manhã dessas, de calor intenso e falta de chuva, com água escasseando em boa parte do país, no qual milhares de pessoas estão sentindo sede, da janela do seu apartamento, enquanto espera a hora de ir para o trabalho, o homem observa uma mulher que, no prédio em frente, com uma mangueira na mão, está regando o jardim, como faz todos os dias naquele horário. Há uns 20 minutos está ali, como se nada mais importasse. Aponta o jato em direção às plantas: uns coqueiros, uma porção de grama, duas ou três quaresmeiras que estão começando a florir, rosas de cores variadas, e deixa que a água escorra à vontade. Uma pequena enxurrada, aos poucos, vai se formando rua abaixo, até se perder em um bueiro.

Cena 2 – Mas logo em seguida, desviando sua atenção, os olhos daquele homem, que está prestes a sair, pois o trabalho o espera, se voltam para um senhor negro, que com um saco nas costas, como também ocorre todas as manhãs, como se cumprisse um ritual, vai chegando devagar. Atravessa a rua, não se importa em observar se vem carros ou não, e se posta debaixo da marquise do prédio vizinho. Espreguiça, abre o saco, do qual retira alguns papelões, estende-os na calçada, improvisa um travesseiro com o material que sobra e se deita. Não sem antes acender um cigarro de papel, que começa a fumar. Às vezes, mas não é sempre, costuma conferir os trocados que ganha de um e outro. Pelo que o homem já ouviu dizer à boca pequena, já tentaram expulsá-lo dali, como também alguns outros hóspedes do local.

Cena 3 – De repente, quebrando a rotina da rua, mas dando sequência a uma situação que nas imediações está ocorrendo cada vez com mais frequência, como de resto em toda a cidade, da qual a paz há muito já se despediu, um rapaz surge correndo com uma bolsa na mão. Atrás dele vem outro, que também está em disparada. E no encalço dos dois uma moça muito alta, de cabelos negros e usando calça jeans, aos gritos de “pega ladrão, pega ladrão”. Duas ou três pessoas param, olham para a direção em que seguiram os assaltantes, conversam com a mulher e se vão, como se nada tivesse acontecido. Uma ambulância, com a sirene ligada, passa em seguida e o homem, depois de conferir o relógio, deixa a janela.

Última cena – Na saída do prédio, depois de comentar com o porteiro sobre o futebol, que é assunto rotineiro entre os dois, o homem quer saber a respeito do assalto acontecido há pouco. “Aqueles dois rapazes, como o senhor viu, de vez em quando descem aqui correndo. Já são manjados na rua, mas ninguém faz nada. É brincadeira, não?”. Em seguida, desviando o assunto, pede a opinião do homem sobre as chances que o Atlético terá esse ano na Libertadores da América, da qual foi o último campeão. “Sei não, sei não, a maré não está para peixe”, o outro responde, atravessa a rua e vai para o trabalho, também cumprindo um ritual que já se repete há mais de 30 anos. A mulher, no prédio ao lado, como se nada mais lhe importasse, continua a despejar água no jardim. Alguns milhares de litros já se foram. 

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