segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

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A culpa não é da fome
 
Fatores emocionais estão intimamente ligados ao grave sobrepeso da população. Por essa razão, atendimento psicológico é fundamental para compor o tratamento multidisciplinar


Luciane Evans
Estado de Minas: 17/02/2014






Não foi só a comida e a falta de exercícios físicos que levaram Graça Aparecida Domingos, de 45 anos, a chegar a 178 quilos. Com diabetes e pressão alta, a mulher, que sai de Ibirité, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, para ir à capital toda semana em busca de um psicólogo e nutricionista, diz que teve obesidade de grau 3 depois que seu marido assassinou a filha deles, de 1 ano e 3 meses, há 10 anos. "Com esse golpe da vida, não cuidei mais de mim. Tive depressão e descontava tudo na comida. Não tinha controle sobre isso. Só consegui me levantar quando meu ex-marido foi preso, há pouco tempo", revela. A história de Graça é um exemplo do que a medicina já considera como um dos passos no caminho da obesidade: os fatores emocionais.

Sem uma única causa definida, a obesidade é decorrente de questões multifatoriais, ou seja, ela é fruto de várias vertentes que podem estar agindo isoladamente ou em conjunto. Entre elas, está a ingestão aumentada de calorias, diminuição da atividade física, idade, fatores genéticos e emocionais. Mas o psíquico já se tornou para os médicos um dos gatilhos-chave para o excesso de peso.

"Os outros fatores podem ser controláveis se a cabeça estiver bem. Se não estiver sã, nada resolve. É claro que vai chegar a um ponto em que a pessoa vai precisar de uma cirurgia, mas, se a mente não estiver saudável, mesmo depois de um procedimento cirúrgico, o paciente volta a ganhar peso", comenta o professor do Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria Frederico Garcia.

Neste segundo dia da série especial do Estado de Minas “Muito além do peso”, a doença é analisada por especialistas sob o aspecto psicológico dos obesos com o grau mais elevado da doença e, consequentemente, o de maior risco de vida. Como o EM mostrou ontem, muitos mineiros, com diagnóstico para esse nível máximo da enfermidade, têm saído de suas cidades em busca de tratamentos psicológicos e nutricionais, já que dizem não encontrar esse tipo de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) nas localidades onde moram.

Quando atendidos na capital, muitos, inclusive, conseguem emagrecer mais de 30 quilos com ajuda dos profissionais. Por que esse atendimento é tão importante? Em que o tratamento psicológico pode contribuir para a perda de peso? "O que move esse paciente ao alimento não é fome", afirma o médico endocrinologista e doutor em endocrinologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Rodrigo Lamounier.

Considerando o problema complexo, Lamounier lembra que a genética tem um papel importante nesses casos, mas "não podemos atribuir o aumento no número de pessoas obesas no mundo a esse fator. A carga genética da população demora séculos para mudar, e há 20 anos estamos vendo uma explosão no número de casos de obesidade".

Ele ressalta que, muitas vezes, a alimentação tem mais a ver com a questão de preenchimento de outras coisas que não são a fome. "A pessoa preenche aquela angústia e vazio com a comida. Mas, à medida que vai perdendo o controle, começa a ser rejeitada pela sociedade, é vista como preguiçosa", comenta. Com isso, de acordo com ele, as pessoas que sofrem com a doença acabam se isolando cada vez mais. "É um círculo vicioso. Há a rejeição, surgem os problemas de limitação e outros decorrentes do sobrepeso. E ela desconta nos alimentos", analisa.


"A pessoa preenche aquela angústia e vazio com a comida. Mas, à medida que vai perdendo o controle, começa a ser rejeitada pela sociedade, é vista como preguiçosa", Rodrigo Lamounier, endocrinologista

Alimentação, sedentarismo e o lado psíquico influenciam

Uma decepção como a de Graça, com a morte de seu bebê, de acordo com o psiquiatra Frederico Garcia, pode ser considerada o transtorno de estresse adaptivo, em que o paciente passa por uma perda e isso o faz comer mais. Ele afirma que são vários os pontos que desencadeiam a obesidade, sendo o primeiro a má alimentação, depois a vida sedentária e o terceiro psíquico. "Há muitas pessoas que sofrem de hiperfagia bulímica, que é a forma patológica de comer. Quando ela tem crises, come sem ter prazer, até chegar a sensação de empazinamento. Ela para de comer e tem mal-estar, e espera ter a sensação de vazio para comer tudo de novo. A outra situação é a depressão e a ansiedade. No caso da primeira, algumas pessoas têm aumento do apetite e, como estão deprimidas e não conseguem sequer se levantar por causa disso, vão se fechando, sem ir a uma academia ou se movimentar. Hoje, para diagnosticar uma depressão, um dos sintomas avaliados é justamente o aumento no apetite", acrescenta Garcia.

No transtorno de ansiedade, segundo o psiquiatra, o paciente tem uma sensação de medo de que algo vai ocorrer de errado. "Muitas vezes, ele tem alteração no apetite e do metabolismo, o que pode causar a obesidade", diz. Por essa quantidade de fatores psíquicos que podem levar a um aumento de peso, Garcia defende que para um tratamento da obesidade, antes de tudo, é preciso discriminar sua causa. "Se for um problema endócrino, como hipotiroidismo, deve ser tratado como tal. Mas, se é uma obesidade secundária, o certo é tratar o transtorno psquiátrico antes da obesidade ou de pensar em cirurgia."

REDES SOCIAIS Um fenômeno que tem contribuído para melhorar os transtornos psicológicos em obesos com grau 3 da enfermidade é, segundo a psicóloga voluntária no Núcleo Mineiro de Obesidade (Nuobes) Sandra Vaz Lisboa, as redes sociais. "Os obesos já se sentem excluídos da sociedade e encontraram em páginas como Facebook um ‘lugar’ onde podem ser o que querem. Mas há riscos nisso. Há ali muitos grupos de discussões que mostram obesos que emagreceram rápido após a cirurgia, que perderam tantos quilos e outras histórias. Quem não conseguiu o mesmo resultado se sente frustrado e isso é um perigo", comenta a psicóloga.

Sandra morou 13 anos nos Estados Unidos, onde trabalhou com a educação dos pacientes. "Vejo que no Brasil não existe um programa eficiente para a perda do peso. Há medicamentos, atividades físicas e nutricionistas. Mas como fazer isso? Como falar para um obeso sobre isso?", comenta. De acordo com ela, existem estratégias para esse tratamento. "Todos que atendo falam sobre depressão e ansiedade. Eles se sentem excluídos da sociedade, sentem que as pessoas estão rindo deles e, assim, não se sentem à vontade de ir a uma academia ou caminhar nas ruas. E vão se fechando e evitando os amigos, e o que sobra a eles para serem felizes? Comida. A psicologia tem que fazer um caminho de volta para essas pessoas, propor metas e socializar esses pacientes", diz.

Problema multifatorial

A obesidade não é considerada uma doença mental. É uma enfermidade multifatorial, na qual aspectos hereditários, metabólicos, ambientais, comportamentais e psicológicos interagem de um modo ainda não totalmente compreendido pela medicina. Veja quais os transtornos psicológicos que podem ajudar a desencadear a obesidade severa:


GLOSSÁRIO

» Estresse adaptativo


Indica um evento ou acontecimento que exige do indivíduo uma reação adaptativa
à nova situação. No caso do obeso, a não superação do ocorrido pode desencadear a compulsão por comida.

» Hiperfagia


É um episódio em que o indivíduo com bulimia tem ataques de excesso alimentar, incluindo na maioria das vezes doces e alimentos com alto teor calórico, tais como sorvetes ou bolos. Durante esse episódio o indivíduo perde o controle, seguido de uma calma repentina. Essa calma é sempre seguida de raiva de si mesmo. No caso do obeso, muitos vomitam e esperam a sensação de vazio para comer tudo de novo.

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