sábado, 5 de abril de 2014

Faz sentido sentir - André di Bernardi Batista Mendes

Faz sentido sentir 
 
Professor de literatura na USP, Alcides Villaça lança Ondas curtas, seu quarto livro de poemas. Autor diz que trabalho criativo não compete com a crítica 
 
André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 05/04/2014


Rain room (2012), mostra apresentada no Museu de Arte Moderna de Nova York (Timothy Clary/AFP)
Rain room (2012), mostra apresentada no Museu de Arte Moderna de Nova York

Depois de O tempo e outros remorsos, de 1975, Viagem de trem, de 1988, e do infantil O invisível, de 2011, o poeta e crítico literário Alcides Villaça lança Ondas curtas, pela Editora Cosac Naify. Alcides capta a poesia que sugere um resumo de silêncios, fala de palavras que servem para remendar, fala dos nossos sustos diários. Alcides, que não compõe livros, mas simplesmente escreve poemas, transita com desenvoltura nas ambiguidades do mundo. Os poemas de Ondas curtas estão dispostos em seções temáticas: “Câmara de eco”, “Suas sombras”, “Playback”, “Notícias” e “Surdina”. Os vínculos e o ofício do professor, o amor pela música e pela literatura, lembranças da infância, tudo serve para a poesia deste bom poeta.

Em sua nova aventura literária, Alcides não atormenta o verso, não interfere no voo dos pássaros. O poeta aprendeu, com o tempo, com a experiência, a vivenciar a poesia no que ela traz de mais amplo. O poeta, assim, encontra similaridades, por exemplo, entre um cão e um menino, dentro do tempo, da memória, do sentimento: “o olhar do menino/ o olhar pensativo do menino/ sentado no cachorro.// (o menino sentado no cachorro/ esperou cinquenta anos/ para se olhar pensativo/sentado no cachorro)”.

Alcides não faz distinção entre alto e baixo, tudo são alturas, no plural, cão e menino, pedra e pau, fauna e floras. Mais é mais, faz de conta, pois faz sentido sentir, até aprendermos a navegar por aí. Alcides capta ondas de altas voltagens. Dos hinos todos, ficam somente as lembranças, uma sensação de pertencimento; mas isso é pouco, “nada nos explica”, já disse Drummond. Mais, ficarão os versos, quando fortes. Os poemas de Alcides não levantam bandeiras, mas sugerem ventos.

Intercalando grandes momento com alguns deslizes (bem poucos), os poemas de Ondas curtas mostram a força de um poeta pronto para o bom combate. Dizer que todo poeta sente é o mesmo que aceitar que a pedra dura. O poeta descaça rumos, finge de égua, ele fala de águas, conclama “os passarinhos do mundo/ que só quando cantam sabem de alimentar”.

O poeta faz brilhar quando renasce em nós nossas coisas esquecidas. Ele vai atrás do rumo que tomou o vento. A poesia de Alcides guarda armadilhas, joga sementes dentro de uma suposta e natural simplicidade. “A missão da poesia/ é muito precisamente/ ser/ o que/ não há/ fora/ da poesia”. É difícil lançar luzes sobre algo que não morre. Cabe também a música nesse rol de encontros e sortilégios.

Isso porque Alcides percebeu que tudo tem uma certa função no mundo. O poeta não impõe hierarquias e não desmerece as coisas poucas, que não são nada poucas. Alcides ensina que as almas são necessariamente carregadas de sumos. O poeta bebe dessa fonte, e fala, dentro de um êxtase, sobre tudo que respira. Alcides inventa para seus poemas musicalidades, acordes que dançam pelos meandros de uma subjetividade nada complicada, mas profunda: “o coração da poesia/ são as metáforas// Para inventá-la/ há que evitá-las”. O poeta não precisa do objeto em si, e confunde o leitor numa trama de rosas: “O assunto da poesia/ é outra coisa// Quanto mais idêntica a si mesma/ Mais familiarmente estranha”.

Ondas são apenas ondas, curtas, médias, altas de sal, sol e maresia. Barcos não são apenas barcos. A poesia de Alcides é inclassificável. É orgânica, vem do instinto, da lucidez que só o discernimento poético pode alcançar. É preciso um bom tempo de espera e maturação para que as maldades do mundo se transformem em dádivas. O poeta de Ondas curtas sabe que existem águas turvas, ruídos e “mil imagens calorosas”.

Alcides não é um só. Ele trabalha dentro do mistério: ele, assim , solta e fecha, ele tem humor, é notívago, é faminto, sonâmbulo, é pintor, com seus “dedos de água”, é sutil e seco, é ambíguo, e puro. Eis a síntese dessas ondas de mares, de alcance indefinido. O poeta tem certeza, mas só quando descobre o mundo. Alcides viu: existem signos que nunca se movem. Se existe pedra sobre pedra, o poeta deixa pedra sobre pedra. Não parece óbvio acatar, dizer que existe uma parcela de dor, que empurra o ir das horas. Poesia nunca foi e nunca será adorno. A poesia revela: somos feios, sujos e malvados. A poesia amplia as cores, conserva as árvores, renova, recria o que ainda não existe. A poesia regula, atualiza a máquina de produzir agoras, nada mais do que “a mecânica do livre respirar”. Alcides Villaça nasceu em Atibaia, em 1946. Cursou letras na USP, onde é professor de literatura brasileira desde 1973. É dele também o livro de ensaios Passos de Drummond, lançado em 2006.

ONDAS CURTAS
• De Alcides Villaça
• Editora Cosac Naify


Quatro perguntas para...

Alcides Villaça
Poeta e professor

Você, além de poeta, é crítico e professor de literatura. De que forma essas outras funções interferem na sua poesia?

Sou sobretudo professor de literatura, interessado tanto em compreender objetivamente a poesia como em fazê-la cantar com a beleza que lhe é própria. Às vezes o poeta que dorme em mim interfere um tanto sentimentalmente no trabalho do professor, e às vezes o professor e crítico tira um pouco do impulso mais natural do poeta. Mas não brigam muito, não.

De que forma você lida com as demandas do dia a dia e da inspiração? Você escreve diariamente, tem alguma rotina fixa voltada para a literatura, para a poesia?
Fiquei muito tempo sem escrever quase nada de poesia. Meu livro Ondas curtas compreende poemas que foram escritos espaçadamente ao longo dos últimos 20 anos. Agora estou escrevendo mais regularmente, interessado em compor algo mais orgânico e regular.

Você costuma reler ou, ainda, refazer os seus poemas?
Não como seria necessário. Não sigo o conselho de Drummond: conviver com os poemas, até lhes dar a forma definitiva.

Você tem trabalhos sobre Carlos Drummond e Ferreira Gullar. Quem são os grandes poetas brasileiros de hoje?
Depois da geração do Gullar, poeta que ainda está em franca atividade, surgiu muita gente boa, mas ainda é cedo pra falar em “grandes poetas brasileiros”, poetas “federais” (como já os chamou Drummond). Entre as dezenas de poetas que poderia citar como realizadores já provados destaco o nome de Orides Fontela, que nos deixou há alguns anos e nos legou uma poesia de rara concisão, beleza e profundidade.

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