O editado e o inédito
Uns apostam tudo no sistema no qual acreditam, os outros empenham suas vidas na busca de outro mundo possível
Frei Betto
Estado de Minas: 23/04/2014
Uns apostam tudo no sistema no qual acreditam, os outros empenham suas vidas na busca de outro mundo possível
Frei Betto
Estado de Minas: 23/04/2014
Meu amigo Alfredo não
entende por que continuo frade, crítico ao capitalismo e convencido de
que verdade e palavra de Jesus coincidem.
Não cabe na cabeça dele minha opção de não formar uma família e ter “desperdiçado” as oportunidades que a vida me ofereceu de sucesso profissional como leigo.
Aos 22 anos, fui assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa na montagem de O rei da vela, peça de Oswald de Andrade. Aprendi o ofício e fiquei tentado a dedicar-me de corpo e alma à direção teatral.
Aos 23, trabalhei como chefe de reportagem da Folha da Tarde, em São Paulo. E em 2004 renunciei à função de assessor especial da Presidência da República. Segundo Alfredo, “tivesse cabeça, você não estaria enfiado em uma cela de convento, vivendo de minguados direitos autorais e eventuais palestras remuneradas”.
Embora Alfredo e eu sejamos amigos, há entre nós enorme diferença no modo de encarar a vida. Ele é alto executivo de uma empresa multinacional, tem um casal de filhos, possui fazenda e casa de praia e adora passar temporadas em Nova York.
Em matéria de religião, ele cultiva um agnosticismo que não o impede de ser devoto de São Judas Tadeu e trazer no pescoço um cordão de ouro com a medalha de Nossa Senhora das Graças.
Repito sempre a Alfredo: “Você é um homem editado”. Devidamente moldado, como um boneco de gesso, pela cultura capitalista-consumista que respiramos.
Ele gosta de exibir roupas de grife, frequentar clubes sofisticados e restaurantes da moda e trocar de carro a cada 15 mil quilômetros rodados.
Prefiro ser um homem inédito. Não invejo o estilo de vida de Alfredo, nem duvido de que ele seja feliz assim. Recuso-me, porém, a submeter-me aos “valores” do sistema que exalta a competividade, e não a solidariedade, e gera tanta desigualdade social.
Minha felicidade estaria em risco se eu me deixasse possuir por bens materiais que me exigiriam cuidados constantes. Minha existência não é norteada por status, finanças ou patrimônio. É o sentido solidário que imprimo à vida que me faz feliz. Nem me considero mais feliz que a média. Felicidade não se compara.
O poço no qual sacio a minha sede é aberto ao transcendente. E me faz muito feliz não ter que me preocupar com bens materiais, pois nada possuo, exceto as roupas que visto, os livros que coleciono e um carro Fox básico que me foi presenteado.
Quem muito possui, muito tem a perder. Não é o meu caso. Meu bem mais precioso é também o de Alfredo e de todos nós – a vida. Sei que um dia haverei de perdê-la, como ocorre a todos. Alfredo fica horrorizado quando se toca neste tema. Ele quase se julga imortal. Porque terá muito a perder quando a morte chegar.
Essa diferença é marcante entre nós: o sentido que imprimo à minha vida justifica a minha morte. Não é o caso de meu amigo nem de homens e mulheres editados. Eles nutrem sempre a ambição de terem mais e mais. O necessário jamais é suficiente para eles. Não suportam a ideia de terem um futuro de quem mora de aluguel, anda de ônibus e vai ao shopping apenas para ver as vitrines e tomar sorvete.
O homem e a mulher editados são aqueles que apostam tudo no sistema no qual vivem e acreditam. O homem e a mulher inéditos olham além do próprio umbigo e ficam indignados com tanta miséria e injustiça. Empenham suas vidas na busca de outros mundos possíveis. Acreditam em ideais e utopia. E são felizes justamente por se sentirem como a cortiça na água, que nunca submerge. Por isso, raramente sofrem desilusões, temem o fracasso ou se enchem de medicamentos para evitar a baixa autoestima.
O homem inédito é apenas alguém que não se deixa editar por nenhuma força – política, econômica, religiosa – que insiste em fazer dele o que não é. O homem e a mulher editados apreciam autoajuda. O homem e a mulher inéditos preferem o outroajuda.
Não cabe na cabeça dele minha opção de não formar uma família e ter “desperdiçado” as oportunidades que a vida me ofereceu de sucesso profissional como leigo.
Aos 22 anos, fui assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa na montagem de O rei da vela, peça de Oswald de Andrade. Aprendi o ofício e fiquei tentado a dedicar-me de corpo e alma à direção teatral.
Aos 23, trabalhei como chefe de reportagem da Folha da Tarde, em São Paulo. E em 2004 renunciei à função de assessor especial da Presidência da República. Segundo Alfredo, “tivesse cabeça, você não estaria enfiado em uma cela de convento, vivendo de minguados direitos autorais e eventuais palestras remuneradas”.
Embora Alfredo e eu sejamos amigos, há entre nós enorme diferença no modo de encarar a vida. Ele é alto executivo de uma empresa multinacional, tem um casal de filhos, possui fazenda e casa de praia e adora passar temporadas em Nova York.
Em matéria de religião, ele cultiva um agnosticismo que não o impede de ser devoto de São Judas Tadeu e trazer no pescoço um cordão de ouro com a medalha de Nossa Senhora das Graças.
Repito sempre a Alfredo: “Você é um homem editado”. Devidamente moldado, como um boneco de gesso, pela cultura capitalista-consumista que respiramos.
Ele gosta de exibir roupas de grife, frequentar clubes sofisticados e restaurantes da moda e trocar de carro a cada 15 mil quilômetros rodados.
Prefiro ser um homem inédito. Não invejo o estilo de vida de Alfredo, nem duvido de que ele seja feliz assim. Recuso-me, porém, a submeter-me aos “valores” do sistema que exalta a competividade, e não a solidariedade, e gera tanta desigualdade social.
Minha felicidade estaria em risco se eu me deixasse possuir por bens materiais que me exigiriam cuidados constantes. Minha existência não é norteada por status, finanças ou patrimônio. É o sentido solidário que imprimo à vida que me faz feliz. Nem me considero mais feliz que a média. Felicidade não se compara.
O poço no qual sacio a minha sede é aberto ao transcendente. E me faz muito feliz não ter que me preocupar com bens materiais, pois nada possuo, exceto as roupas que visto, os livros que coleciono e um carro Fox básico que me foi presenteado.
Quem muito possui, muito tem a perder. Não é o meu caso. Meu bem mais precioso é também o de Alfredo e de todos nós – a vida. Sei que um dia haverei de perdê-la, como ocorre a todos. Alfredo fica horrorizado quando se toca neste tema. Ele quase se julga imortal. Porque terá muito a perder quando a morte chegar.
Essa diferença é marcante entre nós: o sentido que imprimo à minha vida justifica a minha morte. Não é o caso de meu amigo nem de homens e mulheres editados. Eles nutrem sempre a ambição de terem mais e mais. O necessário jamais é suficiente para eles. Não suportam a ideia de terem um futuro de quem mora de aluguel, anda de ônibus e vai ao shopping apenas para ver as vitrines e tomar sorvete.
O homem e a mulher editados são aqueles que apostam tudo no sistema no qual vivem e acreditam. O homem e a mulher inéditos olham além do próprio umbigo e ficam indignados com tanta miséria e injustiça. Empenham suas vidas na busca de outros mundos possíveis. Acreditam em ideais e utopia. E são felizes justamente por se sentirem como a cortiça na água, que nunca submerge. Por isso, raramente sofrem desilusões, temem o fracasso ou se enchem de medicamentos para evitar a baixa autoestima.
O homem inédito é apenas alguém que não se deixa editar por nenhuma força – política, econômica, religiosa – que insiste em fazer dele o que não é. O homem e a mulher editados apreciam autoajuda. O homem e a mulher inéditos preferem o outroajuda.
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