sábado, 12 de abril de 2014

O duque no Twitter - José Castello

O Globo 12/04/2014

LA ROCHEFOUCAULD FOI UM HOMEM CONSCIENTE DOS RISCOS QUE ENVOLVEM A ARROGÂNCIA HUMANA

Presos na grande rede do tempo real,
onde as ideias se concentram e
se evaporam, quase não há mais
lugar para o pensamento profundo.
O argumento dominante é o de
que as pessoas não têm mais oportunidades
para pensar, que elas se tornaram secas
e objetivas, e que a mente se detém agora só nos
reflexos do imediato. Quatro séculos atrás, porém,
o duque de La Rochefoucauld, moralista e pensador
francês (1613-1680), já nos mostrava que é
possível pensar de forma igualmente espessa e
concentrada. Isso se evidencia em seus célebres
aforismos, relançados agora com o título de “Reflexões
ou sentenças e máximas morais” (Penguin/
Companhia das Letras, tradução e notas de
Rosa Freire D’Aguiar).

La Rochefoucauld foi um homem profundamente
engajado na vida francesa do século XVII. Conspirou
contra o primeiro-ministro Richelieu, foi exilado,
envolveu-se em intrigas da corte e participou
da Guerra Civil Francesa de 1648. Foi um homem
da vida — e não um intelectual de gabinete. Isso se
expressa na urgência de seus pensamentos, pressa
que não exclui, ao contrário exacerba, a profundidade.
Sim, é possível ser rápido e ser profundo ao
mesmo tempo, e La Rochefoucauld nos demonstra
isso. Afiados e vibrantes, seus aforismos desafiaram
o século XVII francês — se me permitem uma comparação
certamente imprecisa — com vigor semelhante
àquele com que, hoje, as mensagens postadas
no Twitter nos acossam.

“Nem sempre é por coragem e por castidade
que os homens são corajosos e as mulheres são
castas”, ele nos diz. “Nossas virtudes são apenas,
no mais das vezes, vícios disfarçados”. Caracteriza-
se o pensamento de La Rochefoucauld, antes
de tudo, pela impetuosidade. Não escrevia para
agradar, mas para fustigar. Com fervor, ele nos
admoesta a respeito das facilidades do pensamento,
das ideias automáticas e das conexões
simplistas. “A paixão faz muitas vezes do homem
mais hábil um louco, e hábeis os mais tolos”, escreve,
invertendo nossa maneira costumeira — e
preguiçosa — de observar o mundo. Apegado ao
poder da razão, a loucura, que a delimita, é um de
seus temas favoritos.

“Os loucos e os tolos só enxergam por seu humor”,
escreve. Mas a loucura pode ser também um
elemento sadio, tudo dependendo de como a usamos.
“Às vezes acontecem acidentes na vida dos
quais é preciso ser um pouco
louco para bem se safar”. A leitura
dos aforismos de La Rochefoucauld
se desenrola como
em um jogo. Não necessariamente
os lemos em linha
reta, mas dando saltos, buscando
conexões ocultas, procurando
sentidos esquecidos
— exatamente como fazemos,
se a utilizamos com sabedoria,
com a navegação na internet. La Rochefoucauld
trabalha por camadas: um aforismo expande,
corrige, esclarece o outro, como acontece em
mais esse pensamento sobre a loucura: “Há meios
de curar a loucura, mas não os há para endireitar
uma mente extraviada”.

Se soube pensar com firmeza, La Rochefoucauld
foi também um homem consciente dos riscos que
envolvem a arrogância humana e seu pensamento.
Levava em conta a parte imperfeita que nos
completa. “Se há homens cujo ridículo nunca se
revelou é porque não se procurou bem”, escreve,
exercitando outra de suas qualidades mortais: o
elegante humor. Pregava a ponderação e o equilíbrio.
A grandeza do caminho do meio é expressa
assim: “Nunca somos tão felizes nem tão infelizes
quanto imaginamos”. Pensador
radical, ele foi também um defensor
do bom senso como
tempero necessário à vida. “A
boa vontade é para o corpo o
que o bom senso é para o espírito”,
nos diz. Pregou a sábia
desconfiança e a aposta no
prudente silêncio. “O silêncio é
o partido mais seguro de quem
desconfia de si mesmo”. Diz,
em outro aforismo: “Falamos pouco quando a vaidade
não nos faz falar”.

Conhecia e incluía as múltiplas fragilidades do
homem, que ele expressa assim: “É uma espécie de
afetação observar que nunca a demonstramos”. O
senso do ridículo e também da impotência são elementos
fundamentais de suas ideias. Áreas perigosas,
em que um pequeno erro pode voltar-se contra
seu próprio autor. Admite: “Estamos tão acostumados
a nos disfarçar para os outros que afinal nos
disfarçamos para nós mesmos”. O que parece bom
pode ser mau, e o contrário também. Ensina todo
o tempo que não devemos nos apegar a nosso pequeno
poder, nem a nossas miseráveis vitórias:
“Se resistimos a nossas paixões, é mais por sua fraqueza
do que por nossa força”, nos adverte.

La Rochefoucauld conhecia os frágeis limites
de nossa sabedoria. “É mais fácil ser sábio para
os outros que para si mesmo”, aconselha. Mas
acreditava também na capacidade de transformação
do homem, crença expressa em um aforismo
como este: “A fraqueza é o único defeito
que não se consegue corrigir”. Ela pode nos levar
a avaliar erradamente o que somos, pode nos
conduzir a grandes e perigosos enganos. Diz:
“Há repreensões que elogiam e elogios que
amaldiçoam”. Daí a necessidade, em que ele
sempre insistiu, de que tomemos posse de nós
mesmos. Sim, nesse caso devemos conviver com
defeitos, imperfeições, até mesmo com abominações;
mas esta posse é o único caminho seguro
que a vida nos oferece. Escreve: “Mais difícil é
impedir que nos governem do que governar os
outros”. Ter defeitos, em si, não significa ser derrotado.
Diz La Rochefoucauld: “Há pessoas repugnantes
apesar de seu mérito, e outras que
agradam apesar de seus defeitos”.

Pensar, para La Rochefoucauld, era uma maneira
de escavar. Os pensamentos, porém, não caminham
na mesma direção. Como acontece hoje na
grande rede de computadores, eles se chocam, se
combatem, se desmentem, se ampliam. É preciso
aceitar essa instabilidade do saber se desejamos
viver com alguma plenitude. Diz o filósofo: “Poucos
são sábios o bastante para preferir a crítica útil
ao elogio que os trai”. Mesmo os bons pensamentos
podem resultar do mal, e não do bem: “Difícil é
julgar se um procedimento claro, sincero e honesto
é efeito da probidade ou da astúcia”. La Rochefoucauld
tinha imensa habilidade para não se deixar
enganar pelas próprias ideias. Que disparava,
em mensagens breves e certeiras, colocando-as à
disposição do mundo

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