Editoras especializadas em cultura africana e afrobrasileira conquistam mercado no país. Novas publicações ampliam cenário de estudos acadêmicos e revelam autores de ficção
Walter Sebastião
Estado de Minas: 19/05/2014
Para Íris Amâncio, da Nandyala, é preciso informação de qualidade para subverter o lugar subalterno reservado aos negros no Brasil |
Com a lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e culturas africana e afrobrasileira nas escolas, vem aumentando no mercado editorial o número de publicações dedicadas a estes temas. Seja em literatura de ficção ou em pesquisas acadêmicas de várias especialidades. Com 100 títulos já lançados e priorizando a produção de autores negros está a mineira Editora Nandyala. Uma pioneira, com 40 anos de existência e extenso catálogo no setor, é a carioca Pallas Editora. Ambas trabalham para que adultos e jovens leitores tenham novas referências sobre os temas definidos na lei, com qualidade editorial e a partir de um olhar menos estereotipado. Mas praticamente todas as editoras brasileiras têm lançado novos títulos
voltados para a literatura e estudos na área abarcada pela legislação.
Mais visibilidade
“A cultura afrobrasileira é muito presente na nossa vida. Mas não prestamos atenção”, continua Mariana Warth, de 35 anos. O exemplo, aponta, vai da comida à infinidade de palavras de origem africana, como farofa, moleque, quindim, fofoca, sapeca. Termos vindos do Dicionário banto do Brasil, de Nei Lopes, lançado pela Pallas, só um exemplo de dedicação à afrobrasilidade. O primeiro livro publicado pela editora, no início dos anos 1970, foi Iemanjá, rainha do mar, uma antologia de contos. É daquele ano o volume Ação afirmativa em questão: Brasil, Estados Unidos, África do Sul e França, organizado por Ângela Randolpho Paiva.
Até os anos 1970, recorda Mariana Warth, temas ligados à afrobrasilidade eram vistos com preconceito. “A Pallas foi vanguarda ao romper com esta situação”, afirma. Ela lembra que o assunto está presente no catálogo desde que o pai criou a empresa. A mãe, a historiadora Cristina Fernandes Warth, ampliou o tema com abordagens acadêmicas e pesquisas. Na editora desde 2002, Mariana tem se dedicado aos jovens leitores, inclusive porque não havia nada para eles no mercado. “Espero que nossa atividade signifique a transformação cultural pela qual os movimentos e militantes vêm lutando há muito tempo”, resume.
Uma dica de Mariana Warth para quem quer conhecer o trabalho da Pallas é o livro Uma escuridão bonita, do moçambicano Ondjaki, com ilustrações de Antônio Jorge Gonçalves, considerado um dos melhores lançamentos de 2013 para jovens leitores pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
Conhecimento Na língua dos nyaneka-khumbi, de Angola, nandyala significa “nascida em tempos de fome”. A palavra foi adotada em 2007 como nome de livraria pela professora de literatura Íris Amâncio e pela pedagoga Rosa Margarida de Carvalho Rocha, para traduzir o a necessidade de conhecimento das africanidades. O propósito da livraria era contribuir para a quebra de um imaginário estereotipado e racista em torno da questão.
A boa recepção ao romance No fundo do canto, de Odete Semedo, da Guiné-Bissau, editado sem muita expectativa, fez a Nandyala mudar de direção: deixou de ser livraria e tornou-se editora. No fim de 2013, sob coordenação apenas de Íris Amâncio, a editora comemorou o centésimo título publicado, em catálogo que abrange literatura e textos acadêmicos. “Para o que começou como sonho de educadoras, chegar a 100 obras, com recorte editorial específico, é um grande momento”, celebra Íris.
O carro-chefe da editora são as africanidades, entendidas como diversidade étnico-racial, a postura de pensar o negro em suas várias dimensões, como sujeito histórico em termos culturais, sociais e artísticos. Foco que tem se ampliado para questões de gênero, para a temática indígena e da sustentabilidade. Há um carinho especial pela literatura de países de língua portuguesa. “O literário, por circular em vários espaços, oferece potencial mais amplo de conhecimento do que a pesquisa acadêmica”, acredita Íris.
A constatação de que existe desconhecimento da literatura produzida por autores negros, sejam africanos ou brasileiros, vem junto à avaliação crítica da situação no Brasil. “Temos de considerar a hipótese de que exista racismo editorial no mercado de livros, vindo da herança colonial portuguesa”, suspeita Íris Amâncio, que conclui relacionando autores e livros que admira, entre brasileiros e estrangeiros: As falas da aranha, de Edimilson de Almeida Pereira; Poemas da recordação e Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo; Só as mulheres sangram, de Lia Vieira; Ualalape, do moçambicano Ungulani Baka Khosa; As andorinhas, de Paulina Chiviane, também moçambicana; e Midju du Fogu, do cabo-verdiano Pedro Matos.
DEPOIMENTOS
“O aumento do catálogo de títulos dedicados às africanidades permite conhecer outras vivências sociais, históricas, raciais. Estamos no século 21, marcado por respeito às diferenças e à diversidade ”, afirma Íris Amâncio, coordenadora editorial da Nandyala. “A editora dá ênfase na condição de intelectual, invertendo e subvertendo o lugar de subalternização a que o negro foi colocado na série histórica”, explica Íris.
“Livros sobre a cultura africana, afrobrasileira e negra fortalecem e disseminam formação, informação e discussão de questões que são muito da nossa sociedade”, concorda Mariana Warth, da Editora Pallas, para quem deve-se valorizar vivências brasileiras e não ficar associando a comunidade negra a miséria e a pobreza. “Isso dificulta a identificação”, observa.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Eduardo de Assis Duarte - Professor da Faculdade de Letras da UFMG
Como o senhor explica o crescimento de publicações ligadas às culturas africana e afrobrasileira?
Além da lei 10.639, está havendo uma abertura crítica na academia, de maneira geral, para literaturas situadas fora do cânone ocidental, para as falas periféricas. Seja a produção de países periféricos ou das periferias, no sentido cultural, social e institucional, como a de imigrantes e minorias. Acho positivo. Novas vozes estão se manifestando, vão se ampliando focos de análise, renovando-se pontos de vista, avaliações e julgamentos. Importante neste processo é recordar o trabalho de editoras como Selo Negro, Nandyala. A Pallas e a mineira Mazza Edições foram pioneiras, fizeram trabalho de fundação. Foi um ato de coragem. Elas se lançaram na aposta por autores que estavam em momento de descrédito ou eram desconhecidos.
O senhor acredita que tais publicações podem ter impacto sobre a literatura e a vida social?
Tem impacto sim. Literatura forma mentalidades, ensina, tem o poder de produzir debates, questiona o estabelecido, não é só arte pela arte. É difícil terminar de ler a última página de um bom livro sem se sentir transformado. E o que estamos vendo não é só publicação de obras literárias, mas também de estudos sociológicos, históricos e antropológicos, que abarcam ampla visão da África, que precisa ser estudada com mais profundidade.
Qual a contribuição do que vem sendo publicado nos últimos anos?
A vantagem de se preocupar com ponto de vista étnico, no que toca à literatura brasileira, é que se descobrem dezenas de autores negros não estudados, que não foram levados em consideração pela academia e instituições de ensino. Existe, há mais de 150 anos, toda uma produção de autoria negra completamente ausente das histórias da literatura. Como Maria Firmino dos Reis e Luiz Gama. São do século 20 muitos outros: Adão Ventura, Oliveira Silveira e, vivos, Cuti (Luiz Silva) ou a mineira Conceição Evaristo, que vendeu 20 mil exemplares do romance Ponciá Vicêncio e o livro está em segunda edição nos Estados Unidos. Conseguir isso não é para qualquer um.
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