“Você é minha primeira cliente”, prosseguiu, sempre sorridente, o balconista. “Aceita uma sugestão?”, e antes da resposta apontou para um dos cerca de 300 livros dispostos nas estantes, todos iguais, com uma capa branca que exibia um chapéu estilizado e o título: Livro do Desassossego. “Este aqui”, disse, arrancando risadas dos presentes. A cliente sorriu – uns segundos depois, diga-se de passagem, por culpa do atraso da tradução. “Pensando melhor, acho que recomendo este”, continuou o comerciante, e entregou-lhe outro exemplar, idêntico ao primeiro e a todos os demais.
Antes de ir embora, Ana Maria ainda posou com o livro, já devidamente assinado por Christian Kjelstrup (pronuncia-se “cheustrup”), o livreiro showman. Durante os cinco dias que passou em Lisboa, a rotina do editor e tradutor norueguês foi essa, a de receber de braços abertos e câmera na mão as centenas de visitantes da sua Livraria do Desassossego. Além de vender apenas um livro (e de uma só editora), Kjelstrup conversava com quem por ali passasse, contava histórias e fazia amigos.
Há cerca de quinze anos, o nórdico de 40 anos, hoje pai de três filhos, começou a desenvolver uma paixão pelo poeta falecido em 1935. Ainda estudante de literatura, deparou-se com o texto que mudaria sua vida. “O Livro do Desassossego não é um livro comum, com enredo, conflito e resolução. Fala de sensações, experiências, da vida como ela é, sem subterfúgios”, justifica. A partir daquele momento investiu-se da missão de tornar Pessoa conhecido na Noruega. Começou pelos amigos, depois criou um grupo de leitura, e anos mais tarde teve a ideia de levar o poeta a desconhecidos.
No tempo livre entre suas traduções e críticas literárias, Kjelstrup era uma espécie de “Testemunha de Pessoa”. Batia de porta em porta, oferecendo trechos de sua leitura preferida. “Queria chacoalhar um pouco as coisas, mudar a maneira como a literatura chega às pessoas.” O resultado quase sempre era positivo. “Alguns achavam que eu estava louco, mas em geral as pessoas se mostravam receptivas”, conta. Lia um trecho e, se o interlocutor demonstrasse interesse, apresentava o autor. “Lembro em particular de uma sexta-feira. Fui recebido por um casal que estava abrindo umas cervejas, se preparando para ir à discoteca. Deixaram-me entrar e passamos a noite toda conversando sobre Pessoa e literatura.”
Num domingo, ao cruzar com torcedores caminhando em direção ao estádio, o norueguês teve uma epifania. Telefonou a um clube local e conseguiu o contato de um fabricante de cachecóis na Turquia. Encomendou 100 deles – em vez do nome de um time, a palavra PESSOA, gravada em grandes letras – e os vendeu com facilidade.
O passo seguinte foi a livraria efêmera. Um dia, passeando por Oslo, Kjelstrup viu uma placa de ALUGA-SE num pequeno estabelecimento. Telefonou e perguntou se podia ter o espaço por apenas uma semana. Entre 27 de março e 2 de abril de 2014, as portas da Livraria do Desassossego foram abertas para vender apenas um livro, a tradução norueguesa do Livro do Desassossego. No primeiro dia foram vendidos cinquenta exemplares. No segundo, com a ajuda dos jornais e da televisão, 250. No dia seguinte, recebeu a visita dos príncipes e despachou mais de 500 volumes. No total, espalhou pela cidade uns 1 500 exemplares da obra e fez dela um best-seller. Uma editora decidiu publicar mais 500 exemplares e destacou na capa: “O melhor livro do mundo.” O autor da frase? Christian Kjelstrup, editor.
Anotícia da atípica livraria chegou a Portugal, e a Casa Fernando Pessoa chamou o editor para contar sua experiência. Foi quando ele teve a ideia de procurar em Lisboa um local para abrir sua loja fugaz. “Cheguei a temer pela reação das pessoas e a me perguntar se tinha o direito de tentar promover a obra de Pessoa em sua própria terra, mas a resposta foi maravilhosa, todos foram muito calorosos comigo.”
Em termos comerciais, o projeto “alfacinha” ficou aquém do de Oslo. Foram cerca de 250 livros vendidos, mas a iniciativa teve impacto midiático e Kjelstrup, graças também a seu carisma, ficou conhecido na cidade. Durante a semana em que esteve em Lisboa, o norueguês conheceu a agitada noite da capital, foi à praia e fez a via-crúcis de Pessoa: visitou sua tumba, os bares e cafés que frequentava, os locais onde trabalhou e viveu, o bondinho que sempre pegava.
Estrela principal de uma homenagem organizada na Casa Pessoa, o livreiro norueguês atraiu cerca de 300 interessados, alguns deles especialistas na obra do poeta. E arrancou aplausos diversas vezes, como quando contou que um repórter quis saber o que perguntaria a Pessoa caso o encontrasse pelas ruas da cidade. “Acho que não perguntaria nada, eu apenas o convidaria para tomar um absinto no Martinho da Arcada.” O encontro no mítico café não aconteceu, mas o editor pode dizer que dormiu com o poeta, ou quase. Foi convidado para passar uma noite no quarto que reproduz a última casa em que ele morou. “Me lembro de fechar os olhos e aparecerem muitos rostos. Seriam os heterônimos? As pessoas que conheci em Portugal? Alucinações etílicas? Não sei”, contou.
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