sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A liberdade cantou - Ângela Faria

A liberdade cantou Assinada por detentos em Itaúna, revista A Estrela mostra que há poesia por trás das grades


Ângela Faria
Estado de Minas: 05/12/2014


 (Fotos feitas por detentos da Apac de Itaúna )
“Obrigado pela visita!” estampa a foto na página dupla que fecha a revista A Estrela. Não tenha medo, deixe o preconceito de lado, cruze as grades, mergulhe nessas 32 páginas e conheça o mundo dos 19 detentos da Associação de Proteção ao Condenado (Apac), em Itaúna, na Região Centro-Oeste do estado. Por incrível que pareça, os textos e as fotos produzidos ali revelam o imenso – e sagrado – poder da liberdade.

“Nem me lembro mais das grades” diz um trecho de Da rotina se fez o verso, rap de Mano Marcelo. Na foto ao lado, um rapaz toca violão e canta, emocionado. Rogério Augusto de Morais era dono de carreta, foi preso e um incêndio destruiu o outro caminhão, ganha-pão da família. Artesão, ele inventa as imensas carretas de madeira que encantam a garotada. Everton Delilano da Silva chegou a desenhar Nossa Senhora, imagem que foi parar no Vaticano. Afundou no mundo das drogas, acabou preso e voltou ao lápis na Apac, ilustrando cartas enviadas pelos colegas. Foi ele quem criou o logotipo de A Estrela.

Tem até “propaganda eleitoral gratuita”. Um cartaz bem-humorado, parecido com esses que jovens artistas costumam espalhar por BH, diz: vote 71. “Presidente: Wescley – Pela legalização da maconha”, prega. Mas ele fala sério: “Temos 600 mil pessoas presas no Brasil, 55% por causa do tráfico de drogas. Essa é a causa de cerca de 80% dos homicídios no país. A solução é legalizar!”.
 (Fotos feitas por detentos da Apac de Itaúna )

BORDADO “Rabiscos de uma vida” exibe corpos como suporte para as artes visuais. Deus está no pescoço, tatuado, ao lado de um revólver. Tribais, palhaços, Volverine e figuras demoníacas surgiram do paciente trançar de agulhas sobre a pele. A tinta veio de chinelo colorido e prestobarba derretidos. Máquina de tatuar é proibida, assim como as próprias tatoos. Relatos vieram de outras prisões, assim como o incrível escorpião-colar no torso de um dos rapazes. A galeria de cores é ambulante.

Fotos do dia a dia ilustram o dicionário, celebração do quanto a língua portuguesa é livre, apesar das grades e do “bom tom”. No “Houaiss” da Apac, sinônimo de linguiça é sonho de noiva. Tem mais – lâmpada: sol; isqueiro: dragão; cinzeiro: boca suja; carta: chorona; Bíblia: palavra; rádio: papagaio; chinelo: táxi; dia de visita: Natal; ovo frito: disco voador; câmera fotográfica: rouba cena; portão de saída: blindado. Mas nem tão blindado assim...

Todo o conteúdo da publicação – textos e fotos – foi produzido pelos detentos durante curso realizado em outubro e novembro, a cargo da jornalista Natália Martino, do fotógrafo Leo Drumond e do designer Gabriel Reis, ambos da Nitro Imagens. O plano é levar o projeto a outras unidades prisionais. A revista homenageia o periódico homônimo que circulou na década de 1940, editado na Penitenciária Central do Distrito Federal, no Rio de Janeiro.

Hoje à noite, A Estrela será lançada em BH, com leilão de parte das fotos e venda de exemplares. A renda será destinada à Apac de Itaúna e ao pagamento das edições. Dentro daquelas celas, a liberdade cantou. E, como diz Gonzaguinha, é bonita, é bonita e é bonita!
 (Fotos feitas por detentos da Apac de Itaúna )

OS AUTORES

Antônio Tadeu Azevedo, Braulio Wesley da Silva Prado, Éverton Deliano da Silva Fraga, Felipe Márcio Leite, Flávio Pereira Vilela, Jadir Lázaro Cândido da Silva, João Paulo Siqueira de Souza, John Caetano Silva Maia, Júnio Claudinei da Silva, Marco Túlio Teixeira Lourenço, Michael Marlon Dias de Jesus, Paulo Eduardo Neves, Rafael Matos Percope, Raimundo Eustáquio Júnior, Ronaldo Martins dos Santos, Rubens Marcelo Izaías, Thairone Lucas Alves Duarte, Tiago Ismael Silva e Valdemir de Jesus Wescley Mariano Lopes.
A ESTRELA
Lançamento de revista com textos e imagens produzidos por homens privados de liberdade. Hoje, às 19h. Nitro Imagens, Rua Joaquim Linhares, 207, Bairro Anchieta. Preço da revista: R$ 26. Haverá leilão de fotos. 

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